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Abril de 2003 - Nº 30


A SUAVIDADE DE CRISTOVÃO TEZZA

O autor de Trapo fala sobre a reedição do livro A Suavidade do Vento e sobre a suavidade e a rigidez da cidade que é a alma de sua literatura

Melissa Crocetti

O romancista Cristovão Tezza é conhecido pelos personagens com características psicológicas extremamente complexas. Em A Suavidade do Vento - publicado originalmente em 1991 e relançado pela Editora Rocco este mês -, o protagonista, Josilei Maria Matôzo, um professor de português que mora em algum vilarejo no interior do Paraná, se vê envolvido em uma realidade tragicômica, limitada e angustiante. Quase sem amigos, sentindo-se sempre deslocado, o personagem acaba se tornando prisioneiro de suas próprias mentiras, em um enredo no qual ele só consegue se reconhecer na escrita. Histórias instigantes como essa - outros exemplos são o livro Trapo e Breve Espaço entre Cor e Sombra - fazem a gente pensar que se trata de um escritor meio ranzinza, pensativo, envolto em um mundo de fantasmas. Sempre tive a impressão que escritores eram pessoas que viviam além da realidade, felizardos que se dividem em dois mundos. Talvez isso se deva, falando de Curitiba, a Dalton Trevisan, o vampiro que jamais fala com jornalistas e que se mantém como um mito inacessível. Mas, no caso de Tezza, o espírito de sua criação literária não se confunde com sua personalidade.

Natural de Lages, Santa Catarina, chegou a Curitiba aos oito anos. Desde então se diz um completo apaixonado pela cidade, tanto que a alma de sua literatura está nas ruas, nos espaços e nas pessoas daqui. Diverte-se com o jeito curitibano, dizendo que somos rotulados como polacos, mas na verdade somos mulatos.

Adora o jeito-educado-curitibano-de-ser, de não furar filas e sempre pedir licença, e deixa claro que para ele a cidade é muito mais forte que as pessoas. "Um baiano depois de uma semana aqui já não visita ninguém sem ligar antes para avisar." Professor do Departamento de Língüística da Universidade Federal do Paraná e ficcionista desde os 13 anos, acaba de terminar o doutorado. A tese, Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo, deve ser lançada em maio, também pela Editora Rocco, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Nessa entrevista ele passeia por vários assuntos: a solidão sempre presente em sua obra, o lugar do escritor, o comportamento dos anos 60, a passividade do individualismo da juventude de hoje, a universidade, as referências e as experiências de vida.

O livro Breve Espaço entre Cor e Sombra fala sobre a solidão. Em A Suavidade do Vento ela também está presente, só que de forma mais sutil. Interessa a você investigar a solidão?

Nunca pensei nisso objetivamente, mas acho que a solidão é uma deusa injustiçada na vida contemporânea. A pior coisa que pode acontecer com alguém é a solidão, ela é detestada, odiada. E eu não acho assim. Acho que a solidão é uma coisa interessante. E está faltando um pouco de solidão para as pessoas, está faltando introspecção.

Então não foi uma coisa pensada.

Não. Você falou agora e me lembrei. A própria literatura é uma atividade meio fora de lugar porque é uma arte solitária. Escrever um livro é um dos raros momentos em que você fica sozinho. Veja, para escrever um romance desse aí (A Suavidade do Vento), fiquei um ano e meio, dois anos.., duas, três, quatro horas por dia. É um tempo em que você está só: você e os fantasmas. Então é um exercício de solidão.

Você fez parte do livro O Lugar do Escritor, do Eder Chiodetto. Para você, qual o lugar do escritor?

Acho que tem alguma coisa com solidão mesmo. Principalmente porque a literatura não é uma atividade solicitada ardentemente pela sociedade. Brinco sempre dizendo que não tem anúncio nos jornais pedindo escritores, poetas ou "precisa-se de um romancista". Até tem um livro meu que começa justamente com isso aí, com um anúncio para escritores. Então é uma atividade não solicitada. Por isso que quem se mete nessa área é uma coisa estranha, afinal tem tantas outras coisas que todo mundo quer...

E como você entrou nessa área?

É uma boa pergunta. Foi lá pelos 13,14,15 anos...

Qual o marco zero do Tezza ficcionista?

Algum momento entre os 13 e 15 anos. Fiz uma história, A Revolução das Formigas, cheguei a levar o original para uma gráfica lá, a ter provas. Mas felizmente ele nunca foi para frente. Felizmente. Seria um livro do qual eu iria me arrepender para o resto da vida.

Li alguma coisa dizendo que você começou com poesia e foi para ficção quando resolveu ser autodidata em datilografia.

Exatamente. Mas na minha geração, final dos anos 60, a atividade artística tinha uma coisa meio.., era uma performance. Você não produzia um objeto de arte: você era um artista, fazia teatro, escrevia poemas, era contra o sistema. Na verdade, você tinha um projeto de vida, Isso é uma coisa bem anos 60. Você pega, por exemplo, o trabalho da Denise Stoklos. A primeira peça de teatro em que trabalhei foi como sonoplasta de uma peça da Denise Stoklos. E hoje ela não faz teatro, ela tem uma missão a cumprir. E essa era a minha formação, isso me marcou muito. Hoje, claro, eu perdi qualquer traço messiânico, mas isso, de certa forma, foi o princípio do meu trabalho.

Perdeu os seus traços messiânicos?

Ah. sim. Era o projeto alternativo dos anos 70 - na verdade, sou da geração setenta. A geração dos anos 60, imediatamente anterior, tinha projetos politicos muito claros. Quando você falava de teatro, tinha um ideário romântico, natureba, aquela coisa de viver integrado à natureza, de recusar o sistema, fiz cada loucura.., eu era um hippie, basicamente um hippie. E isso era um projeto existencial mesmo.

Você vivia cercado de agitadores estudantis. Você ainda vê isso hoje, até pelo fato de você dar aula para jovens?

Tem uma diferença fundamental, que é a polarização da minha geração pela ditadura militar, que era muito mais evidente. Não existia muita escolha do ponto de vista ético. O que um jovem de 17, 18, 19, 20 anos fazia em 1968? Tinha que ser contra a ditadura, e isso era uma escolha ética. E criava-se uma espécie de energia coletiva de transformação. Que ia desde o meu projeto de fazer teatro em Antonina até um cunhado meu que estocava armas, em Foz do lguaçu, para derrubar o governo. Então eram projetos diferentes, mas havia uma dimensão de utopia de transformação. Agora, hoje eu não vejo a coisa tão romanticamente. A polarização está emburrecendo o mundo e o efeito das ditaduras é exatamente isso. Há uma piora geral em tudo, um atraso. Porque no projeto político o que se queria era tirar uma ditadura e botar outra. Era tirar e fazer um paraíso socialista sobre a Terra. E o outro projeto, apolítico, digamos, que era naturalista, aquela idéia de se voltar contra o sistema, que era um anarquismo moderado, era um projeto que acho meio selvagem também. Então à medida que fui envelhecendo o mundo foi ficando mais estreito, mas um pouco mais nítido também. Agora, voltando para a sua pergunta. Hoje você não tem essa energia coletiva toda na direção de transformação. Quer dizer, os jovens são mais individualistas, têm um certo tipo de independência, é uma coisa mais fragmentada. Não há certamente aquele senso coletivo que havia. Depois a juventude mudou tanto que tem outras interferências, a liberação sexual, de comportamento. Hoje há um estado de liberdade quase que endêmico, comparado a minha geração. Tenho uma filha de 20 anos, e a liberdade que ela tem, que sempre teve lá em casa, é uma coisa impensável nos anos 60 para a minha irmã ou para aquela geração.

E como você lida com a liberdade da sua filha de 20 anos?

Muito bem, não tenho nenhum problema, acho ótimo. Acho que criança tem que ter referência. Às vezes, eu me achava até um pai autoritário, não por essa coisa de comportamento, mas com relação a ter referência. Tenho um filho com Síndrome de Down, o Felipe, e quando ele nasceu foi como se a minha vida começasse de novo. Você começa a pensar em coisas que você nunca tinha pensado. De filhos, de referência... Então acho que a criança precisa ter pai, mãe, referência, porque não acredito em inocência infantil, aquela idéia de que o homem é um bom selvagem. O homem é um péssimo selvagem, é horroroso: deixado à solta, ele é uma tragédia.

Mudando de assunto, como é o seu processo de criação? É verdade que você escreve em um quartinho de um metro quadrado...

Na verdade tem quatro metros quadrados, é dois por dois. Escrevo à mão. A capa do A Suavidade do Vento é um manuscrito meu. É uma segunda edição, eu mudei de editora e fiz umas modificações no texto. Esse é o único livro da literatura brasileira cuja capa é o manuscrito do próximo livro...

Sobre o que é esse próximo livro?

É sobre um fotógrafo, mas ele não tem nome ainda. Estou com umas quarenta páginas.., é que estou fazendo uma reforma na cozinha lá em casa e com essa greve da Federal estou dando aula em janeiro. fevereiro... agora que estou fechando as notas. Então não consegui me concentrar no livro, estou esperando dar uma parada.

Dá para você contar o que você sabe sobre esse novo personagem?

Por enquanto não. Dá para dizer que se passa aqui em volta, aqui na Rua Dr. Faivre. Dei um salto absoluto porque o Breve Espaço Entre Cor e Sombra tem partes que se passam em Nova York e outras em Roma, outras em Curitiba, é uma história toda internacional. Esse aqui começa ali no Hospital das Clínicas, pega a Comendador Macedo, passa pela Pracinha do Avião...

Você disse uma vez que Curitiba o deixa tenso.

Não, já passei dessa fase. Acho que em em certo momento sim. Curitiba é especialista nisso. Nunca conheci ninguém que dê certo aqui que, em algum momento, não tenha tido vontade de chutar as canelas da cidade.

Mas isso com lugares, pessoas ou espaços?

Com relação a espaço. Gosto muito de Curitiba, não saio daqui por nada. A alma da minha literatura está inteira na cidade. Para quem vem dos anos 70 e 80, Curitiba é uma cidade arquiconservadora, inclusive como espaço. Começou a se abrir mais dos anos 90 para frente. Se você pensar, cheguei a ter quatro livros publicados e, se você for fazer um levantamento dos jornais daqui, não vai encontrar nada sobre O Terrorista Lírico. A Cidade Inventada, O Ensaio da Paixão. Eu não existia na cidade. Só comecei a existir aqui quando os meus livros passaram a ser editados em São Paulo.

É o eterno ranço com o que é feito aqui.

E em certa forma e até injusto dizer que é daqui, porque isso acontece em qualquer lugar, talvez com poucas exceções. Porto Alegre tem uma certa vida autónoma, aliás, certa não, uma vida autónoma muito forte, o escritor pode ser bem vendido, bem lido no Rio Grande do Sul, e o resto do mundo não saber dele. E está cheio de gente assim lá. O Estado absorve a produçao local, dá espaço, e isso é impossível aqui. A gente não tem nem editora. Então tem esse bloqueio. Mas, fora isso, essa questão mais provinciana de Curitiba é porque é uma cidade nova, tem 300 anos, mas é muito nova em relaçao à história. É uma cidade em que as atraçêes turísticas têm menos de 15 anos. A única coisa antiga que sobrevive é a Universidade Federal, o que dá um traço oficial à cidade. É como se você definisse São Paulo pela USP. Não é. E ficou como símbolo da cidade, então tem esse lado conservador. O que literaríamente é fantástico, até pelo fato de não ser um Brasil típico. Como diz o Wilson Martins, é um Brasil diferente.

E os novos escritores de Curitiba?

A literatura aqui, em geral, é muito lenta. Eu estou começando a aparecer agora com mais de 50 anos e mais de dez livros publicados. O processo para você ser absorvido é muito lento. Você tem em Curitiba o Dalton Trevisan, o Jamil Snege - que sempre fez a opção tímida, e muito curitibana, de só editar aqui -, tem o Karam, o Roberto Gomes... de fato estou falando nomes todos com mais de 10,15 anos... Mas não sei te dizer novos nomes. Sei que tem o Rascunho (caderno de literatura do Jornal do Estado), por exemplo, que tem muita gente nova, até ex-alunos meus que escrevem. Ali tem uma geração nova fantástica: tem que amadurecer e depurar.

Quais são as suas referências?

Gosto de jazz e blues, gosto de MPB. Na literatura tenho aquela formação clássica que todo mundo tem. Tenho uma lista que dou para os meus alunos... Agora eu fiquei quatro anos fora por causa do meu doutorado, fiquei sem dar aula, daí voltei para aula meio às pressas, mas é uma lista atualizada.

Qual é a tese?

É um trabalho teórico sobre o Bakhtin e o formalismo russo. Chama-se Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo.

Você sempre fala que Rubem Fonseca é uma referência forte.

Eu li muito. Acho que a linguagem dele é muito despojada, limpa, principalmente o Rubem Fonseca contista. E isso aí foi uma coisa que me pegou. Depois ele foi um contista que falava de um universo que fez parte da minha formação, nos anos 70 e anos 80. Depois parei de ler o Rubem Fonseca, acho que era uma coisa mesmo de formação. Até cheguei a fazer algumas resenhas para a Folha de S. Paulo e para o Estadão sobre alguns livros dele. Acho que agora ele é um maneirista e tem todo o direito de ser. É um sujeito que tem uma obra completa, então se diverte com a literatura e escreve livros em que ele imita ele mesmo. E não é ruim de modo nenhum. Acho que ele é um belo formador de leitores e tem todo o direito de se divertir com a literatura.

E sobre adaptações. Qual foi a sua impressão quando Trapo foi adaptado para o teatro?

Gostei muito. Acho que o Anel Coelho era um diretor perfeito para a peça porque ele era daqui de Curitiba, com quem eu convivi muito tempo, fui colega dele no Estadual, e foi uma montagem em que ele teve uma sensibilidade extraordinária para pegar alguns lances. Fiz a adaptação e ele foi cortando, porque o escritor é a pior pessoa para adaptar, porque você acha que tudo é necessário, e no teatro não é assim. Mas gostei muito. Foi uma experiência alucinante aquela montagem.

Quando você começou a dar aulas aqui na Federal?

Aí é a segunda parte da minha vida, em 86 fiz concurso aqui. Eu era um desempregado, o primeiro carimbo que tive na minha carteira de trabalho foi como professor universitário.

Qual o grande encanto em dar aula?

Primeiro foi a descoberta da linguagem como ciência. digamos assim. Fiz curso de Letras com o Carlos Alberto Faraco, que abriu a minha cabeça. Porque eu tinha uma visão puramente intuitiva sobre as questões de linguagem que eu, como escritor, queria entender e não conseguia resolver. E que por conta própria não iria chegar em lugar nenhum. Aquelas áreas que sem formação em lingüística você acaba descobrindo a roda de novo, com muita dificuldade, uma roda torta, quadrada... é só ver escritores falando em questões de linguagem. É uma coisa engraçadíssima, como se diz besteira... ou mesmo jornalistas. Então, para mim, foi uma revolução. Fui lentamente saindo da pura intuição para um outro nível de compreensão das coisas.

Como é a vida de professor universitário?

Apesar de todos os pesares, acho que foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida para o meu projeto de escritor, pela questão de ter aquele mínimo de estabilidade econômica. Se eu fosse fazer publicidade, se fosse ser jornalista, acho que não iria agüentar o tranco pra me manter no meu projeto literário.



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