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JORNAL RASCUNHO
NOVEMBRO DE 2002
Um sentido ao caos
Marco Anselmo Vasques
Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, no dia
21 de agosto de 1952. Ainda menino mudou-se para Curitiba, onde
decidiu ser escritor. Cristovão costuma dizer que foi escritor
muito antes de saber escrever, pois aos 13 anos já andava
elas redações dos jornais, com o caderno de poesias,
à procura de uma publicação. O tempo devorou
a ingenuidade e Tezza continou perseguindo a escritura até
atingir a maturidade.
Quando jovem passou a integrar uma sociedade alternativa de artistas
coordenadas por Rio Apa. Nesta comunidade, Tezza se oficializou
como dramaturgo do grupo que viveu o sonho da sociedade alternativa,
na cidade litorânea de Antonina, no Paraná. Tezza
ainda andaria pela Europa, seria relojoeiro, mas em 1975, ainda
em andanças pela Europa, começa a escrever o livro
de contos A cidade inventada. De lá para cá
escreveu: Gran Circo das Américas (1979); O terrorista
lírico (1980); Ensaio da Paixão (1986);
Trapo (1988); Aventuras provisórias
(1989); Juliano Pavollini (1989), reeditado neste
ano pela editora Rocco; A suavidade do vento (1991); O
fantasma da infância (1993); Uma noite em Curitiba
(1996) e seu último romance Breve espaço entre
cor e sombra (1998). Após uma pausa de quatro anos,
para a elaboração da tese de doutorado, Tezza promete
retornar.
Você passou nos anos de chumbo (década de 70)
por várias experiências alternativas, tanto na literatura
junto a Rio Apa, quanto no modo de vida em comunidades hippies.
Dessas experiências, hoje, temos os livros O Terrorista
Lírico e o Ensaio da Paixão, e mais adiante
o fechamento de um ciclo de sua trajetória literária
com o livro Trapo. Este ciclo retrata toda uma geração.
Fale sobre esses anos iniciais de sua trajetória literária,
como se deu a descoberta da escrita e sobre esta geração
e sua luta.
Costumo dizer que fui escritor antes mesmo de saber escrever.
Lá pelos meus 13, 14 anos, eu tinha um projeto firmemente
estabelecido de ser escritor, ainda que só escrevesse poesia
adolescente de péssima qualidade - na verdade, nunca fui
precoce. E sou alguém cuja formação se deu
nos anos 60 e 70, em que o ato de escrever tinha um forte conteúdo
político, ético e existencial. Ser artista era antes
de tudo "tomar um atitude". O Brasil vivia sob uma ditadura
militar e qualquer projeto artístico acabava por bem ou
por mal tomando esse fato como referência.
No meu caso, "ser do contra" era ser contra tudo - vivi
plenamente a utopia dos grandes sonhos da transformação
da vida que fazia parte do imaginário de boa parte da minha
geração. Foi uma época em que vivi muito
e escrevi pouco. Comecei trabalhando em teatro com movimentos
de vanguarda da Curitiba daqueles anos, 67 e 68 (com Denise Stocklos,
por exemplo), fazendo de tudo, de iluminador a sonoplasta. Depois
me engajei ativamente da comunidade de teatro alternativo que
o Wilson Rio Apa mantinha em Antonina, uma pequena cidade do litoral
do Paraná. O teatro, na verdade, foi minha porta de entrada
para a literatura. Em 1974 passei um ano perambulando na Europa.
Tentei todas as formas de sobrevivência alternativa - de
curso na marinha mercante até curso de relojoaria! - de
1968 a 1977. Aliás, mantive uma pequena loja de consertos
de relógios em Antonina, em 77, até me decretar
falência. Depois, fui para o Acre, onde finalmente, aos
25 anos, fiz meu vestibular de letras. Ainda não havia
escrito nada consistente, além, talvez, de alguns poucos
contos (depois publicados em "A cidade inventada", pela
CooEditora, em 1980). Meus três romances de juventude foram
para o fogo, com justiça.
Começava um "segundo tempo" da minha vida, em
que a literatura, não mais o teatro, passava a perigosamente
a tomar conta de mim, de uma forma mais sistemática. Escrevi
um breve exercício narrativo, "Gran Circo das Américas"
(Brasiliense, 1979), um livro para jovens. Em seguida, "O
terrorista lírico", publicado em 1981 pela Criar Edições,
editora que eu ajudara a fundar (como, aliás, participei
também da cooperativa de escritores que fundou a CooEditora
- tive também minhas experiências como editor). O
terrorista lírico era um romance um pouco mais ambicioso,
mas ainda de formação, digamos assim. Meu personagem
era uma espécie de "Unabomber", ou um Bin Laden
ateu, que resolve dinamitar a cidade em que vive. É um
livro de juventude pela sua alegoria mais ou menos revolucionária
(mas não direcionada; o Raul Vasquez do livro não
representa nenhum modelo ideológico a ser seguido); e também
começava a minha maturidade na medida em que eu colocava
problemas que não conseguia resolver, nem tecnicamente,
como escritor, nem como visão de mundo.
Em seguida (1981), escrevi o Ensaio da paixão, agora
retomando, já à distância, os meus anos de
formação no teatro e na vida. Meu universo literário
se amplia para uma outra dimensão; não mais um ou
dois personagens vivendo uma situação, mas dezenas
de personagens fantásticos, transitando da realidade para
a fantasia, naquela ilha louca tentando implantar um sonho. Ao
mesmo tempo, todo o universo militar dos anos 70, o contraponto
sombrio, está presente. É um livro cheio de influências
- desde o próprio projeto teatral do Rio Apa, nascido na
comunidade dos anos 60, e que ele recriou durante vários
anos naquelas Paixões das Dunas, fazendo do teatro mais
um acontecimento que uma peça fechada -, até a retomada
do imaginário libertário da minha geração,
da revolução armada que cantava Chico Buarque e
Geraldo Vandré, aos hippies da paz e do amor que ouviam
Jimi Hendrix e Janis Joplin. Também tem, como toque da
época, o "realismo fantástico" que marcou
a literatura latino-americana dos anos 70. Mas o olhar do livro
já é o olhar da distância, que, final, é
o olhar do escritor. O Ensaio da paixão é um romance
que, aos trancos e barrancos, digamos assim, marcou minha passagem
para a minha literatura mais madura.
Depois, em 1982, escrevi Trapo. Agora eu descobria o mundo
urbano, o universo de marca realista que tomaria conta dos meus
textos. O choque de gerações aqui tem uma outra
medida, mais especificamente literária. O personagem Trapo
é um publicitário - talvez a profissão mais
"integrada" do nosso mundo - mas é pela linguagem,
e pela atitude (Trapo é um suicida), que ele marca a sua
geração. E o professor Manuel, o seu contraponto
no livro, e aquele que conta a história, é um homem
à antiga, conservador na arte e na vida. Talvez eu estivesse
representando a minha própria crise, entre o impulso iconoclasta
que de algum modo é a chave de toda obra de arte, e o impulso
conservador que, afinal, mantém a vida em pé. É
nesse território tenso que o romance se sustenta - pelo
menos é assim que vejo (lembrando, é claro, que
o autor é sempre péssimo comentarista de seus próprios
livros!). Mas é preciso lembrar também que, até
então, eu era um escritor puramente mental, cheio de textos
na gaveta. Meus livros iniciais não tiveram repercussão
nenhuma; o Ensaio da paixão só foi publicado em
1985, numa edição também sem alcance; e Trapo,
depois de mais de 20 recusas de editoras, só seria editado
em 1988 pela Brasiliense, quando então eu fui "lançado"
no cenário brasileiro, digamos assim. Só então
eu começava a sentir um pouco mais a outra ponta da literatura
- essa dádiva rara que são os leitores.
O ambiente familiar, nos seus primeiros anos de vida, foi
propício ao surgimento do amor pela escrita? E, retomando
a juventude, que autores exerceram fascínio sobre você?
Eu tive a sorte de nascer numa casa em que havia livros. Esse
simples fato - livros nas prateleiras, na mão das pessoas,
sobre a mesinha de cabeceira, abertos com a lombada para cima
quando a leitura se interrompe por alguns minutos - já
faz uma bela diferença na formação de alguém.
Mas como eu nunca fui precoce, confesso que minha paixão
pelos livros - e daí quase que simultaneamente pela escrita
- nasceu mais da infelicidade do adolescente do que da felicidade
da criança. Quando criança, digamos, até
os 10 anos, minha experiência com a palavra era quase que
exclusivamente escolar, portanto meio traumática. Eu preferia
mesmo era vagabundear ali pela praça Joca Neves, em Lages,
roubando pêra, jogando bolinha de gude, andando de perna
de pau. Num outro momento, de 1961 em diante, estou em Curitiba,
e aí minha vida mudou brutalmente. Já de cara levei
pau no exame de admissão ao ginásio, que existia
naquele tempo - fui reprovado em português, prova de redação,
eliminatória. Nem fiz as outras! Assim, foi mais por revolta
do que por obediência que comecei a ler obsessivamente,
começando por Monteiro Lobato, daí aos poetas românticos
brasileiros (eu sabia Castro Alves de cor), depois Erico Verissimo,
Jorge Amado. Em outro momento, li muito teatro (aos 17 anos eu
já participava de uma comunidade de teatro alternativo,
sob a direção do Wilson Rio Apa - e esse era um
tempo de leitura compulsiva, de tudo que caía na mão).
Alguns livros marcaram, ainda que a memória se esfumace
tanto tempo depois. A Antologia Poética de Carlos
Drummond de Andrade; O Estrangeiro, de Camus; Os irmãos
Karamázov, de Dostoiévski; Lord Jim,
de Joseph Conrad; Angústia, de Graciliano Ramos;
Intruso no pó, de William Faulkner (que li sob o
título "O mundo não perdoa", uma tradução
portuguesa); O tempo e o vento, de Erico Verissimo; várias
peças dos americanos Tenessee Williams, Edward Albee e
Arthur Miller; Trópico de câncer, de Henry
Miller, Quatro Quartetos, de T.S.Eliot; O imoralista,
de André Gide. Tempo sujo, de Jamil Snege, e
A revolução dos homens, de W. Rio Apa, para
citar dois escritores próximos da Curitiba de minha formação.
Dois ou três livros de Nietzsche. Cem anos de solidão,
de Gabriel Garcia Márquez. Enfim, são cacos marcantes
da memória, nessa viagem sem volta que é o mundo
da escrita.
A que você atribui tantas recusas ao livro Trapo? Trapo
(o personagem), no seu ritmo frenético e rebelde de vida,
levado ao extremo com o suicídio rivaliza com o professor
Manuel, homem comedido e pacato e vinculado as tradições.
Acha que o fato do personagem, de certa forma, personificar alguns
poetas das décadas de 60 e 70, os chamados marginais (Ana
Cristina César, Torquato Neto, Paulo Ramos Filho entre
muitos outros que tiveram o mesmo fim de Trapo) teria de algum
modo interferido nisso?
Às vezes eu até tenho vontade de atribuir minhas
dificuldades iniciais de publicar (cheguei a ter 4 romances simultaneamente
na gaveta) a alguma conspiração universal contra
mim - ou, no caso do Trapo, a alguma censura à visão
de mundo do que eu escrevia. Mas a realidade é mais simplória,
mais prosaica. A primeira dificuldade se deve ao fato de eu ter
nascido "fora do eixo" Rio - São Paulo. Não
é fácil romper essa barreira editorial. No meu caso,
também pelo fato de Santa Catarina e Paraná não
contarem com editoras de literatura com expressão nacional.
Também pelo fato de nos anos 70 e 80 o espaço local
(falo por Curitiba) para a literatura era praticamente inexistente.
Assim, não havia degraus intermediários em que um
escritor pudesse avançar consolidando seu trabalho. Acho
que hoje esse espaço local é muito maior. Outra
dificuldade eram as sucessivas crises econômicas (que aliás
continuam!). Editar um autor inédito representava um custo
enorme e um lance arriscado, com a inflação devorando
tudo. Eu lembro das primeiras prestações de contas
que eu recebia das editoras: eram hilariantes. A cada seis meses
(o prazo padrão daquele tempo; hoje os pagamentos são
trimestrais), os dez por cento do autor viravam farelo. Não
havia também uma política sistemática de
editar autores novos por parte das grandes editoras. Hoje isso
também está mudando, e têm aparecido muitos
autores novos, até mais do que a distribuição
ou as livrarias possam dar conta de divulgar. A barreira, hoje,
é menos das editoras e muito mais da distribuição
e dos pontos de venda. Sem falar, é claro, da falta de
bibliotecas públicas, de uma política mais forte
e direta de incentivo à leitura. Enfim, a demora que meus
livros sofreram foi mais um reflexo das dificuldades econômicas
daqueles anos do que qualquer outra coisa. Se houve um terreno
em que a censura oficial da ditadura não teve efeito inibidor
visível foi o do livro; pelo contrário, freqüentemente,
pela liberdade editorial, as edições se viam vítimas
a posteriori da proibição mais arbitrária
e absurda, como Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, para lembrar
o caso mais chocante.
Quanto ao tema - o fato de Trapo personificar um aspecto da geração
mais criativa, e trágica, dos anos 70 e 80 -, acho que
ele é um fator importante da empatia que esse romance exerce
sobre as gerações mais novas.
O crítico de literatura Wilson Martins diz que a partir
do livro Trapo e Aventuras Provisórias algo novo surge
no que se refere à linguagem e à criação
dos seus personagens. Parece-nos que isso vai se afirmar com a
publicação de Juliano Pavollini, posto que o mundo
dos personagens de Aventuras Provisórias ainda retoma a
trilogia anterior. Como você avalia estas mudanças?
O autor é sempre um pouco suspeito para falar de sua própria
obra, mas eu vejo as coisas da seguinte forma: acho que Trapo
representou um ponto de amadurecimento da minha literatura. Dizendo
de outra forma, com Trapo eu encontrei a minha própria
linguagem, o mundo e a visão de mundo que, para o bem ou
para o mal, dão consistência ao que eu escrevo. Nesse
sentido, o fato de Aventuras provisórias retomar um personagem
do Ensaio da paixão, por exemplo, não é relevante.
O Pablo do Aventuras já é um personagem substancialmente
diferente do Pablo do Ensaio da paixão. O Ensaio é
um livro mais ou menos alegórico, simbólico, que
mexe com a mitologia de uma geração. A força
dos mitos está presente a cada momento do Ensaio. No Trapo,
que escrevi em seguida, ainda há uma "mitologia de
geração", digamos assim, mas já muito
tênue; meu olhar já toma uma outra direção,
indidualista, solitária, psicológica, reflexiva,
fragmentária. Os sonhos - que afinal sustentam o Ensaio
da paixão - desaparecem. O mundo urbano, que é mundo
sem raízes, passa a ser o elemento central do que escrevo.
O Aventuras retoma tematicamente o "sonho alternativo",
mas os mitos que o sustentam desaparecem. Em qualquer caso, ficou
uma experiência essencial do Ensaio, a marca do teatro -
meus romances têm sempre um toque de "palco",
de gente que fala em voz alta, num sentido que se faz no limite
difícil entre as pessoas.
Como é o seu convívio com os personagens? De que
forma eles brotam?
Essa é uma das coisas mais misteriosas de quem escreve,
acho eu. Para mim, eles surgem sempre de uma situação
dramática, de um instante de tensão que fica às
vezes anos cozinhando na minha cabeça. Nesse primeiro momento,
eles são parte de um "enredo", de algo que veio
antes e que virá depois, mas de que eu não sei nada
ainda - tenho apenas um instante presente. Num momento seguinte,
começa a se erguer essa biografia imaginária, e
tudo imaginariamente, apenas na minha cabeça. Quando começo
afinal a escrever, já tenho o livro inteiro na memória
- ou, melhor dizendo, o fantasma de um livro, uma mera seqüência
de fatos. Essa seqüência inicial nunca se concretiza
de fato. Basta eu começar a escrever e parece que há
um rearranjo geral de todos os aspectos, do nome dos personagens
ao desenrolar da fábula. Em geral, levo de um a dois anos
escrevendo um romance, sistematicamente, um pouco todos os dias.
Tenho uma convivência normalmente bastante agradável
com os personagens. Mas permanece sempre uma sensação
fantasmagórica, um sentido de falta, uma incompreensão
de raiz - eu jamais consigo entendê-los completamente. Eles
são ao mesmo tempo seres inexistentes e seres concretos,
reais, presentes, que falam, pensam, vivem e reagem do mesmo modo
e sob a mesma urgência que eu próprio vivo, ainda
que não tenham (no sentido estrito) nenhum parentesco comigo.
Como você define a arte de escrever e a magia que envolve
este conviver com seres que não são ("no sentido
estrito") você, mas participam do cotidiano de um escritor?
Sinceramente: não sei. O ato de escrever, para mim, envolve
a minha vida de forma completa. Não apenas o momento específico
de pegar a caneta (escrevo literatura à mão) e escrever
- mas o projeto (se é que chegou a ser um projeto no sentido
normal da palavra) inteiro de uma vida que foi ganhando sentido
à medida que escrevia e se escrevia. O que é engraçado:
porque a gente acaba sendo escrito pelo que escreve. No meu caso,
nunca saio inteiro do outro lado do livro, digamos assim, como
quem atravessa um túnel escuro. Assim, muitos livros depois,
nunca me tornei um profissional de letras, isto é, alguém
que tem o domínio seguro do seu ofício e trata dele
com distância e frieza, como quem faz um objeto de arte
(uma peça de cerâmica, digamos). Gostaria muito,
mas não consigo - há um envolvimento que me leva
junto, mesmo sabendo que a literatura não é o espaço
ideal para o derramamento emocional, para o desabafo, para nada
disso. É preciso sempre manter um pé do lado de
fora enquanto se escreve. Enfim, é muito difícil
falar sobre isso porque eu não compreendo como funciona.
O livro Juliano Pavollini inaugura um outro momento de sua obra?
Seria nesse romance que começará a existir uma aprofundamento
maior da psicologia dos personagens?
Talvez. Já é lugar comum falar assim, mas de fato
o autor é a pessoa menos indicada para falar de sua obra.
Não temos a necessária distância, e acabamos
sempre falando em causa própria. Bem, acho que, no plano
da investigação psicológica, a passagem se
deu do Ensaio da paixão em diante. Em Trapo¸ Aventuras
provisórias e Juliano Pavollini, meus personagens já
estão completamente sozinhos, não partilham mais
nenhuma vida solidária ou mundo coletivo. Já desembarcaram
do grande sonho e a utopia mais ou menos irracionalista que alimentou
os anos 60 desapareceu do meu horizonte literário. Nesse
sentido, Juliano é feito da mesma matéria do Trapo
e do narrador de Aventuras provisórias. Talvez passe essa
impressão (de ser um livro psicologicamente mais completo)
pelo fato de a narrativa estar inteira concentrada nele - e num
sentido inclusive biográfico, desde a infância, o
que não existe nos outros livros, ou existe apenas fragmentariamente.
Como surgiu o livro A Suavidade do Vento , talvez (ao lado de
Trapo) a sua obra mais perturbadora?
É uma história engraçada a deste livro.
Ele é uma espécie de cruzamento de muita coisa -
mas basicamente a solidão do ato de escrever. Num primeiro
momento eu pensei apenas numa sátira, num livro de humor.
Mas algumas coisas foram surgindo (como os monstros), que, ao
contrário do que eu planejava, se tornaram mais sinistros
e tensos que puramente engraçados. O Mattoso, declaradamente
uma "invenção" do narrador, vai tomando
corpo, ganhando estatura, autonomia, e um grau de sofrimento quase
insuportável. Ao mesmo tempo, é uma síntese
da literatura, no que ela tem de mais dura - o fato de que ela
não significa mais nada para ninguém. Mattoso escreve
para de certa forma se sentir humano, se sentir parte da comunidade
humana, mas a realidade concreta do seu livro acaba por destruí-lo,
rompe todos os laços já fracos que ele tinha com
o mundo. É como o seu livro - que ninguém leu -
fosse recebido como uma declaração de guerra. Como
fábula, isso é reforçado pela mitologia da
cidade pequena, mas uma cidade nova, sem história, uma
cidadezinha bruta e tosca, uma cidade sem tempo de ter memória.
A desistência de Mattoso, ao contrário do que parece,
é uma forma de grandeza, a grandeza possível. Mattoso
é uma encruzilhada ética.
Foi um livro que me deu prazer, muito prazer - como se, escrevendo-o,
eu exorcizasse toda a dificuldade de quem escreve, desde escrever,
até conseguir uma editora, e, não menos importante,
encontrar um leitor, um único que seja. Além disso,
foi a primeira vez que eu ganhei uma bolsa para escrever, a Bolsa
Vitae de Literatura. Durante um ano fui (bem!) pago para escrever
um romance. O livro A suavidade do vento, publicado pela Record
e já esgotado, será em breve reeditado pela Editora
Rocco. Fiz uma pequena revisão no texto, suprimindo algumas
referências a Clarice Lispector, que, na releitura, achei
excessivas. Agora sintetizam-se todas na epigrafe, tirada da Clarice
de A paixão segundo G.H.: "Desisto, e eis que na mão
fraca o mundo cabe". É uma bela frase; além
disso, um verso alexandrino. Se quebramos em "desisto",
continua como um decassílabo perfeito, com cesura na sexta
sílaba. Este livro tem outro detalhe interessante: foi
traduzido para o inglês por Alan Clarke, sob o belo título
de The dust and the darkness - "o pó e as trevas",
o nome do livro de Mattoso. O tradutor tentou-o na época
vender para alguma editora americana, mas não conseguiu.
É a maldição de J. Mattoso!
Uma das temáticas exploradas com bastantes constância
em suas obras é o próprio ato de escrever - no caso
de A Suavidade do Vento e O Fantasma da Infância, a escrita
chega, de certa forma, a nortear a narrativa. Fale um pouco sobre
esta perspectiva e o que isso revela do escritor Cristovão
Tezza ao leitor?
É verdade. Parece que o tema do texto está presente
em todos os meus livros, cada um à sua maneira. Mas não
é nenhuma procura consciente - acontece. Afinal, literatura
é texto; ela interage com o mundo inteiro, exterior, a
chamada "realidade", é claro, mas, igualmente,
a literatura é um objeto próprio. Ela é uma
das dimensões da vida e do mundo. É um lugar comum
dizer isso, mas é verdadeiro: a literatura tenta dar um
sentido ao caos que são a vida e o mundo "reais",
sob a perspectiva de um olhar narrativo, um olhar afinal "organizador".
Mas, é claro, esse olhar não é nem onisciente,
nem definitivo - ele é inseguro, impreciso, incerto, muitas
vezes declaradamente mentiroso (como o de Juliano Pavollini, por
exemplo). Apesar de tudo isso, ou talvez justo por isso, a literatura
dá luminosidade à vida, dá uma nitidez difícil
de encontrar sem o universo da linguagem. Mas estou divagando
- é que não sei exatamente o que esse tema (o do
ato de escrever) pode dizer sobre mim.
Você costuma dizer que nunca foi precoce, no entanto já
está à beira de uma dezena de obras (se contarmos
as produzidas na juventude, incluindo as peças teatrais,
chegaremos próximo a duas dezenas). Trapo foi escrito em
1982, quando você tinha apenas 30 anos - embora só
tenha sido publicado em 1988. Isso não demonstra uma certa
precocidade?
Bem, eu sempre brinco com essa coisa de precocidade porque há
um certo imaginário que vê a figura do escritor como
um gênio desde criancinha, escrevendo obras-primas já
aos dez anos, coisas assim. Eu acho que há poetas precoces
- é só pegar o romantismo brasileiro e a gente vê
que eles morriam todos antes dos 25 anos, já com obras
altamente significativas. Mas na prosa o processo é muito
mais lento e penoso. Minha produção de juventude
era fraca - no caso do teatro, havia todo um envolvimento com
a comunidade que, é claro, muda a régua de avaliação.
Um texto de teatro é ele mais o grupo, as circunstâncias,
a montagem, a direção, etc. Não dá
para avaliar na frieza do texto pelo texto. Mas eu não
republicaria nada do que escrevi naqueles anos. É uma produção
que se consumiu nela mesma, no momento presente, na "atitude"
que era fazer teatro nos anos 60 e 70. Já a literatura,
para mim, é um trabalho que amadureceu dos trinta anos
em diante, e - espero! - continua amadurecendo.
Fale um pouco sobre o seu processo de criação e
a transformação que ele sofreu (se é que
sofreu) no decorrer de sua vida literária?
Sou um escritor extremamente metódico. Aliás, isso
não mudou, desde o primeiro romance, "O papagaio que
morreu de câncer", dos meus 18 anos, texto que já
foi ao fogo, com justiça. Aprendi a escrever literatura
com a mão, e não à máquina, por influência
do Rio Apa, que escreveu todos os livros dele à mão.
Naqueles anos da comunidade, isso também era significativo:
escrever à mão era uma atitude diante do mundo das
máquinas, uma opção pelo artesanato, digamos
assim. Depois, tornou-se um hábito poderoso - escrever
à mão permite a lentidão exata da literatura.
Escrevo por dia - quando começo um romance - em torno de
quatro a cinco parágrafos, em letra miúda. A máquina
de escrever de ontem ou o computador de hoje são inúteis
diante desse ritmo. O importante é manter o ritmo - com
esses parágrafos por dia, ao fim de um ano tenho um romance
quase pronto...
Num segundo momento, passo para o computador (como antes passava
para a máquina de escrever), e daí a coisa vai mais
rápida. Mas sempre que deparo com algum trecho ou capítulo
muito complicado, cheio de nós, que não me satisfaz,
volto para o texto manuscrito para reescrevê-lo com calma.
Sou um bom datilógrafo, daqueles raros que usam os dez
dedos! Lembro que aos 13 ou 14 anos fiz por conta própria
um curso de datilografia a partir de um velho manual, usando a
máquina portátil que tinha sido do meu pai. Em um
mês eu já datilografava de olhos vendados. O resultado
é que a minha mãe, ao descobrir minhas novas habilidades,
me arrumou um emprego no dia seguinte!
Só um reparo: escrevi todos os meus livros à mão,
exceto "O fantasma da infância". Naquela época
eu havia comprado um computador XT, daqueles antigos, uma verdadeira
carroça, mas decidi aprender a linguagem DOS. Daí
enfrentei o romance no teclado. Acho que alguma coisa dessa experiência
passou para o livro, para as desventuras de André Devinne,
preso naquele porão, escrevendo seu livro. Bem, mas o original
impresso ainda em impressora matricial ficou tão rabiscado
na revisão que mais parece um manuscrito... Foi uma experiência
única.
Você relutou em chegar à universidade. Iniciou o
curso de Letras, no Paraná, aos 25 anos, em que a universidade
contribui para sua formação?
É verdade. Resisti o quanto pude a entrar para a universidade,
que eu via como a pior coisa que poderia acontecer a um escritor.
Até hoje ainda não sei se estava certo naquela época
ou não! Até curso de relojoaria fiz para tentar
sobreviver à margem. Os japoneses acabaram com a minha
profissão e em pouco tempo eu já tinha consertado
todos os relógios mecânicos de Antonina. Tinha o
projeto de casar, nenhum dinheiro e nenhuma perspectiva. Pedi
emprego a um irmão que vivia no Acre e fui para lá,
casado e cheio de esperanças. Na verdade foi lá,
por acaso, que entrei na universidade. Fiz vestibular, passei,
e vivi um ano no Acre, trabalhando num escritório de advocacia
e dando aulas em cursinhos. Cansado da selva, voltei para Curitiba,
entrei na UFPR e estou lá até hoje, agora como professor.
Bem, e passei um tempo em Florianópolis, onde fiz meu mestrado.
Dei aulas na UFSC, como auxiliar, durante dois anos, de 84 a 86.
Retomando a pergunta: quando entrei para a universidade, como
aluno, eu já me sentia um escritor completo, suficientemente
arrogante para achar que a universidade não tinha nada
para me ensinar. De fato, na área de criação
ela não me ensinou nada - e nem é essa mesmo a função
dela. Posso dizer que eu tocava a literatura por conta própria,
o que faço até hoje. Mas numa área a universidade
foi crucial para a minha formação: a área
de lingüística. Os cursos de lingüística
que fiz com o professor Carlos Alberto Faraco nos primeiros anos
da minha formação foram muito importantes, um salto
na minha cabeça para entender os processos da linguagem
e de seu estudo. É o tipo de percepção que,
sem professor, você não chega a lugar nenhum - leva
muito tempo para a gente descobrir a roda de novo. É interessante
como a área da lingüística é desconhecida
mesmo para quem trabalha com a linguagem, como escritores e jornalistas.
Basta ver o festival de bobagens que se tem dito por aí
em torno dos estrangeirismos, sobre as supostas ameaças
à língua portuguesa, etc. Uma pequena introdução
à lingüística mostraria como o que se chama
língua padrão é uma construção
histórica e política; que toda língua é
um conjunto extremamente rico de variedades; que há uma
distinção substancial entre linguagem escrita e
linguagem falada, que obedecem a gramáticas parcialmente
diferentes; que nenhuma língua civilizada se fez sem empréstimos
estrangeiros, que são sinais de vitalidade, de transformação
e de intercâmbio cultural. A própria noção
de "variedade", que é a marca do uso concreto
da língua, parece não é percebida mesmo por
aqueles que trabalham diariamente com a linguagem, como os escritores
e jornalistas. Claro que isso em nada afeta o domínio da
escrita - mas a ignorância lingüística ajuda
a reforçar todo tipo de preconceito e de limitação
para entender a nossa linguagem.
Enfim, na área da lingüística a universidade
abriu um caminho imenso para o meu trabalho acadêmico. Aliás,
hoje sou autor, como professor Faraco, de dois livros sobre produção
de texto para universitários e estudantes do ensino médio:
Prática de texto, da Editora Vozes, e Oficina de texto,
que estamos refazendo para também sair pela Vozes em breve.
Também a universidade abriu caminho para eu conhecer a
obra teórica do pensador russo Mikhail Bakhtin, uma figura
absolutamente extraordinária, sobre quem defendo em breve
(9 de agosto) minha tese de doutoramento: "Entre a prosa
e a poesia - Bakhtin e o formalismo russo".
Você viveu em Curitiba desde os 8 anos de idade. Como você
avalia o quadro cultural da cidade? E como ela influenciou você?
Ficando na literatura, que é o meu terreno, eu diria que
Curitiba tem uma vitalidade extraordinária - talvez intensidade
seja a palavra certa - ainda que, como tantos outros centros do
país, tenha dificuldade para se mostrar, para sair da concha,
para aparecer. Claro, aparece a Curitiba "oficial",
digamos assim - mas essa Curitiba ocupa praticamente todos os
espaços e a cidade real simplesmente desaparece. Repetindo
o lugar comum, pode-se dizer que Curitiba, ao contrário
do resto do Estado, é tímida, introspectiva, fechada.
Talvez seja por essa timidez que se criou com tanta facilidade
um carimbo oficial para a cidade, como quem preenche um vazio.
A vitalidade de que eu falava está sintetizada na figura
de Dalton Trevisan, um escritor poderosíssimo que é
também um mestre de escritores. Todo bom contista brasileiro
dos anos 70 em diante deve alguma coisa a ele, pelo menos uma
elipse... Quanto à minha formação, sou filho
da Curitiba dos anos 60, início dos anos 70, em que havia
uma boa agitação cultural na cidade, uma agitação
que desapareceu completamente nos anos 80 e início dos
90, e que agora reaparece, já, é claro, "integrada",
o que é sinal dos tempos. Além da experiência
comunitária com o teatro e o ideário do Rio Apa,
também lembro da importância de Jamil Snege, um escritor
que teve influência na minha formação, de
conversa e de leitura. Lembro que "Tempo Sujo", novela
do Jamil de 67 ou 68, me marcou muito. Aliás, sou leitor
atento de tudo que ele escreve até hoje. No mais, Curitiba
me moldou inteiro, de uma forma inexplicável - quem quer
que viva aqui por mais de dois ou três anos vai se tornando
inextricavelmente curitibano até o fim dos seus dias. Não
há solução nem salvação. O
que, afinal, se temos um bom olhar, resulta em ótimo material
literário.
Alguns de seus personagens são retomados em outras obras
(D. Izolda aparece em Trapo e A Suavidade do Vento; Juliano Pavollini
sai do romance homônimo e tem moradia em O Fantasma da Infância;
Pablo pula tragicamente do Ensaio da Paixão para Aventuras
Provisórias. Que força os trazem novamente? Seria
uma herança balzaquiana?
Bem, a idéia de fazer concorrência com o registro
civil, que animava Balzac, é fascinante. Mas no meu caso
nunca houve essa concepção de conjunto, que marcou,
por exemplo, a literatura de William Faulkner, para falar alguém
do século XX. O que acontece é que às vezes
um personagem não se esgota em um só livro. Isso
aconteceu com Pablo, que é um figura meio arquetípica,
uma marca de geração. No caso, ele foi retomado
dentro do mesmo universo original, embora, como eu disse antes,
sob um olhar completamente diferente. Em O fantasma da infância,
a concepção original não tinha nada a ver
com Juliano Pavollini. Mas, no momento em que o André Devinne
"segundo", digamos assim, aparece, eu percebi que na
verdade ele era uma espécie de reencarnação
do Juliano Pavollini. Juliano já continha toda a história
anterior que eu precisava para o André Devinne. Sem que
eu soubesse, o Juliano já prepara o enredo de O fantasma
da infância. Afinal, a última frase do Juliano é
algo como "ando com algumas idéias na cabeça".
Mas, é claro, O fantasma tem outro aspecto radicalmente
diferente do Juliano, que é a concepção narrativa,
uma história dentro da outra. E, como observou Wilson Martins,
não há rigorosamente nada no livro capaz de garantir
qual é a história "verdadeira". Já
a Izolda, aconteceu por acaso - eu achei que a sua pensão,
muito antes do Trapo chegar lá, seria o espaço ideal
para o nosso angustiado Mattoso, de A suavidade do vento.
Uma Noite em Curitiba demonstra uma determinada ironia acerca
da educação (algo já presente em Trapo -
professor Manuel e A Suavidade do Vento - os amigos professores
de J. Matoso). Qual avaliação você faz da
educação em nosso país?
A presença de alguns professores nos meus livros tem uma
explicação simples - passei a vida inteira entre
professores, sou filho de professores, convivo com eles e toda
a minha vida "real", digamos assim, diz respeito ao
trabalho do professor. Assim, é natural que em alguns livros
eles sejam protagonistas. Talvez eu não conheça
nenhuma outra profissão tão bem como essa... Mas,
é claro, esse é só aspecto superficial, o
lado biográfico dos personagens. A sua densidade depende
de outras variáveis. Veja: o Rennon de Uma noite em Curitiba
não tem absolutamente nada a ver com nenhum dos dois outros,
o Manuel de Trapo e o Mattoso de A suavidade do vento. E esses
dois também não têm nada em comum.
Sobre a educação brasileira? Pois tenho uma visão
mais otimista que catastrófica. Ela é muito menos
do que o país precisa, é óbvio, mas ela é
muito melhor do que as indicações sociais do Brasil
prometiam. Isto é, o lógico seria que ela fosse
muito pior do que realmente é. Pense na universidade pública
brasileira - com todos os problemas, ela continua sendo a grande
referência do ensino superior brasileiro, e ainda é
uma das instituições fundamentais do Brasil. E o
ensino público em geral, básico e médio,
já há décadas vive o desafio de dar conta
de uma massa imensa de brasileiros que estão entrando na
escola, uma massa que estava completamente alijada dos anos 60
e 70 para trás. Assim, aquele chavão preguiçoso
que vive repetindo que "naquele tempo sim, a gente tinha
um ensino de qualidade", esquece de lembrar que "naquele
tempo" só uma faixa muito estreita ia à escola.
A escola pública atendia, de fato, a elite brasileira,
no máximo as classes médias. Pagamos o preço
da massificação - o ensino não é tão
bom, é verdade, mas há muito mais gente indo à
escola hoje. Mas, é claro, o país precisa de muito
mais.
Ainda sobre os professores: sem nenhum desejo de fazer média
com a minha profissão, tenho uma admiração
profunda pelo trabalho do professor, que afinal, pelo Brasil afora
(e não falo da elite universitária, mas da grande
massa que enfrenta o ensino básico), freqüentemente
debaixo de pancada, carrega nas costas esse trabalho insano que
é civilizar a população brasileira. A educação
é a pedra de toque fundamental para qualquer esperança.
Não há nada de novo nisso, mas é sempre bom
repetir: para quem fala em "desenvolvimento sustentado",
pensando em números, lembremos que sem educação
absolutamente nada se sustenta.
Assim, a ironia que transparece nos meus romances são a
marca de minha ficção, a ironia que transita nas
relações humanas, e não, digamos, uma "crítica
institucional" - que, é claro, é matéria
de outra linguagem que não a da literatura; a linguagem
do ensaio, da ciência, da sociologia, da historiografia.
O cinema, a pintura e sobretudo o teatro são bastante
presentes em sua obra. Qual sua relação com estas
artes?
Uma vez eu disse que "só escrevo o que vejo"
- o que de fato é verdade. Minha literatura tem uma marca
visual muito forte, ou um elemento de composição
visual. O teatro foi minha primeira e talvez mais duradoura influência,
o que marcou outro traço do meu texto, que é a presença
forte da fala e do diálogo, e uma certa intuição
para o espaço entre as pessoas, no seu momento vivo e presente.
Lembro que quando Trapo foi adaptado para o teatro - numa montagem
dirigida por Ariel Coelho, com Marcos Winter no papel principal,
e com Imara Reis e Cláudio Mambert como Izolda e professor
Manuel - o trabalho de passar o texto para o palco foi muito fácil
e direto. Trapo é um livro inteiro "cenográfico":
a sala do professor Manuel, por exemplo, é um palco perfeito.
Bem, o próprio Ensaio da paixão é inteiro
uma representação teatral. A arquitetura de A suavidade
do vento - prólogo, primeiro ato, entreato, segundo ato,
cortina - é uma seqüência teatral, ainda que
o livro seja um dos meus textos mais "literários".
A pintura e as artes visuais em geral são outra influência
forte na minha vida. Na juventude, cheguei a praticar cópia
de pintores famosos - que eu chamava brincando de "falsificações".
Tenho até hoje um Van Gogh e um Matisse aqui em casa, que
eu mesmo pintei, porque fica mais barato... Mas claro que, como
pintor, eu não sobreviveria nem pintando paredes. Aquilo
era só mesmo uma brincadeira caseira de 30 anos atrás.
Bem, e sempre tive amigos pintores, durante anos, o que de algum
modo me aproximou desse universo do ponto de vista das pessoas,
mais do que das obras. Um pintor amigo meu é o Mano Alvim,
de Florianópolis, por quem tenho grande admiração.
Aqui em Curitiba acompanho há muitos anos o trabalho do
Carlos Dala Stella, a quem devo muito das minhas intuições
no terreno da pintura. Toda essa experiência de certa forma
é recriada em Breve espaço entre cor e sombra, meu
último romance.
Você exerce duas atividades, como escritor, bem distintas:
escreve romances e, ao mesmo tempo, resenhas críticas que
têm aparecido no caderno Mais! da Folha de S. Paulo e na
Revista Cult. É possível conciliar o escritor e
o crítico?
Bem, de fato no Brasil não temos a tradição
do escritor crítico, isto é, de alguém que
escreve romances e ao mesmo tempo debate na imprensa temas literários,
critica obras, etc. Note que essa é uma particularidade
nossa; nos Estados Unidos, ou na Europa, por exemplo, é
muito freqüente a participação crítica
do escritor, assumindo pontos de vista, discutindo com outros
autores, etc. Aqui há uma certa tradição
de cordialidade, para ver pelo lado bom, ou compadrio, para ver
pelo lado ruim... É que o espaço dedicado à
literatura brasileira já é tão pequeno, que
os autores acabam por sentir que seria uma espécie de "traição"
sair por aí falando mal dos colegas, como se fizéssemos
parte de um sindicato. Bem, como escritor, a última coisa
que me interessa é pertencer a um sindicato. Acho que os
escritores poderiam perfeitamente assumir mais publicamente seu
lado crítico. Quando fui convidado a escrever resenhas,
relutei um pouco - como se fosse impossível estar dos dois
lados do balcão ao mesmo tempo, digamos assim. Mas acho
que tenho um olhar crítico que pode eventualmente ser útil.
Além do mais, nesse caso pesa o meu lado "professor",
minha formação acadêmica. Não acho
que devo reprimi-la.
MARCO ANSELMO VASQUES é poeta e diretor teatral
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