RADAR - REVISTA DE CULTURA
Imprensa Oficial do Estado do Paraná JULHO/AGOSTO DE 2002

ENTREVISTA: CRISTOVÃO TEZZA
Márcio Renato dos Santos

Cristovão Tezza (1952) nasceu em Lages (SC) e vive em Curitiba desde o início da década de 1960. Publicou 12 obras de ficção, com destaque para Trapo, Juliano Pavollini e Uma noite em Curitiba, tendo recebido em 1998 o "Prêmio Machado de Assis", da Fundação Biblioteca Nacional, na categoria Romance, por Breve espaço entre cor e sombra. Aspectos de sua obra e discussões sobre literatura dão o tom desta entrevista exclusiva que Tezza concedeu à revista Radar.

O que o levou para a literatura, mais especificamente para a ficção longa?

Bem, o que leva alguém à literatura ou à arte em geral é desses mistérios difíceis de decifrar. No meu caso, acho que foi um envolvimento, desde cedo, com a geração contestatória dos anos 60 e 70 que me formou. Contestação política contra a ditadura militar, contestação poética contra o que difusamente eu entendia por "sistema", e um certo desejo partilhado de mudar o mundo. A literatura, e junto com ela o teatro, entravam aí, nos meus 13 ou 14 anos, antes mesmo que eu soubesse escrever. Um pouco mais tarde, passei da poesia para a narrativa, que sempre senti como a minha linguagem, ou o meu desejo.

No início da sua carreira, você escreveu contos, reunidos em A Cidade Inventada, mas depois não voltou a esse gênero. Há algum projeto de escrever ficção curta?

Na verdade cheguei a escrever três longos romances, entre os 18 e os 20 e poucos anos, todos imprestáveis. Como se eu resolvesse "aprender a escrever", para então me tornar escritor, comecei a trabalhar nos contos de A cidade inventada, que fui escrevendo e reescrevendo de 72 a 78. A maior parte foi escrita durante o tempo em que vivi na Europa, em 75. É um livro de exercícios - quer dizer, isso digo agora. Mas todos os meus temas estão ali, em semente. Depois, nunca mais escrevi contos - acho que não é a minha praia. Tenho eventualmente publicado algum conto, mas são todos "vampirizados", refeitos e transformados deste meu primeiro livro.

Em Trapo, houve a intenção de fazer um acerto de contas com a geração Leminski?

Não consigo escrever um livro com uma intenção determinada - a intenção exige uma objetividade, uma frieza, uma ciência que está longe do que escrevo. Trapo foi um livro escrito quase que "ao vivo" - era de mim, da minha formação, da minha geração, dos meus amigos, de todo o universo de referências que gravitava em torno da minha vida e da minha formação, era disso que eu falava. Não como confissão ou como derramamento emocional, que são péssimos conselheiros literários, mas com um razoável grau de empatia. E foi um modo de exorcizar minha própria geração. Mas, é claro, isso também eu digo agora, vinte anos depois. No momento, era mistério e prazer.

Você escreve textos críticos sobre outros escritores. Isso é um exercício que contribui para o ficcionista?

Não. São duas atividades completamente distintas. Aliás, relutei bastante a aceitar convites para escrever críticas literárias, ou resenhas, como se, aceitando, o ficcionista estivesse cometendo traição contra ele mesmo... Pensando melhor, percebi que no Brasil há um certo preconceito contra escritores "críticos". Acho ótimo que escritores participem, quando têm essa veia, da crítica contemporânea. Nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, isso é muito comum. Aqui parece que nossa clássica marca de cordialidade tem uma certa dificuldade para lidar com a diferença. No meu caso, pesa o lado acadêmico, que também gosto de alimentar. Uma outra coisa que me atrai é a síntese da resenha, esse gênero em geral amaldiçoado. Bem dosadas, as 60 linhas da resenha são um ótimo meio de cruzar crítica e jornalismo para o chamado "leitor comum", que, afinal, é o melhor leitor do mundo.

E a poesia? Como você se relaciona com ela?

Houve uma época em que fui poeta, como todo mundo - a poesia é uma face imprescindível de quem escreve. Hoje sou um bom leitor de poesia, ainda que não esteja acompanhando a produção contemporânea como gostaria. O tempo vai ficando curto. E a poesia foi, afinal, o tema central da minha tese de doutorado - a discussão da natureza de sua singularidade com relação à prosa. É uma área teórica que me fascina.

Qual é o seu território de leituras?

Eu leio de tudo, mas durante períodos específicos tenho naturalmente me concentrado em algumas áreas. Nos últimos anos, por exemplo, li muita teoria - que é um tipo de leitura que exige um modo muito particular de recepção, uma leitura mais organizada, sistemática. Quando estou escrevendo um romance, gosto de ler poesia, que é uma forma poderosa de sugestão. Mas o tempo todo estou lendo ficção, sempre com uma pilha de livros em torno. Sou também um bom leitor de jornais, hoje via internet - em geral de manhã dou aquela passada cruzada sobre o que está acontecendo e me detenho aqui e ali no que me interessa.

Você acabou de defender sua tese de doutorado, um trabalho de quatro anos. Durante este período escreveu também ficção?

Não, infelizmente não tenho essa capacidade de lidar com duas linguagens ao mesmo tempo. A teoria me absorveu por completo. De qualquer modo, isso fez parte de um projeto pessoal - depois de Breve espaço entre cor e sombra, que foi lançado em 1998, eu quis mesmo parar minha ficção durante um tempo, respirar um pouco. Assim, mergulhar na teoria não me fez mal. Quer dizer, isso é mais uma esperança que uma afirmação... Bem, a literatura não se perde nunca - ela está aqui, fermentando na minha cabeça.

Existe alguma razão de ordem prática para um escritor optar por seguir a
carreira de professor de língua portuguesa?

No Brasil quase nenhum escritor é só escritor - são jornalistas, médicos, advogados, publicitários, professores. No meu caso, sempre consegui aos trancos e barrancos dirigir a minha vida para colocar a literatura em primeiro lugar. Depois de tentar a marinha mercante, participar de comunidade alternativa, viver de bicos e fazer curso de relojoeiro, acabei tardiamente professor. Só fiz vestibular aos 25 anos e dei minha primeira aula aos 32. Mas não me arrependo - acho que foi a profissão exata para eu escrever minha literatura, sem me sentir esmagado por algum trabalho sem ligação comigo. Gosto de dar aulas, estou permanentemente em sintonia com a linguagem dos meus alunos (que têm sempre a mesma idade - só eu envelheço!) e ao longo dos anos desenvolvi um material didático, em parceria com Carlos Alberto Faraco, que se transformou em livros, Prática de texto e Oficina de texto. São dois livros que me agradam. E agora terminei minha tese. Mas não sei se me sentiria tão bem dando aulas de literatura. Prefiro mesmo trabalhar com língua portuguesa.

Por quê? A literatura não seria um tema mais próximo para as suas aulas?

Talvez justamente por isso, porque ela está próxima demais - prefiro deixá-la como território livre da minha cabeça, sem a disciplina e a organização didática que as aulas exigem. É melhor deixar a literatura no escuro.

Ensaio da paixão, um livro de sua primeira fase criativa, quando havia influência do universo utópico de Wilson Rio Apa, foi reeditado em 98. Agora, a Rocco acaba de relançar Juliano Pavollini. Existem outros projetos de reedição de seus primeiros livros, como O terrorista lírico?

A Rocco tem o projeto de relançar os livros que foram publicados pela Record. Saiu agora o Juliano. O próximo será A suavidade do vento. E depois O fantasma da infância. Quanto a O terrorista lírico, não sei se seria o caso de reeditá-lo. Acho que minha literatura madura começa com o Ensaio da paixão (mesmo assim, mexi bastante no livro para reeditá-lo, embora não modificasse sua estrutura). Tenho até um certo receio de reler meus primeiros livros. O terrorista lírico é uma idéia interessante, aquele Bin Laden tupiniquim dinamitando prédios, mas tecnicamente é uma narrativa frágil, insegura. Dei o passo maior que as pernas, que é o que todo escritor tem de fazer sempre - mas isso só vale quando dá certo!

No mundo todo, é possível manter uma carreira editorial publicando um livro a cada dois ou três anos. Essa perspectiva também existe no Brasil?

Bem, depende do que entendemos por carreira editorial. Publicar um livro de ficção a cada dois ou três anos é perfeitamente possível - aliás, foi o que fiz, desde meu primeiro livro. Já viver desses livros, aí a conversa muda. É uma questão de aritmética. Na média, os ficcionistas razoavelmente conhecidos, publicados por editoras grandes, levam de um a três anos para esgotar uma edição de 3000 exemplares. Isso explica por que os escritores são sempre alguma coisa a mais - ou, parodiando Ortega y Gasset, são eles mesmos mais as suas circunstâncias... Mas o fato de o escritor, hoje, representar um valor social mais simbólico do que concreto - todos amam a literatura mas quase ninguém lê - também nos dá uma liberdade interessante. É nesse sentido que eu vejo o ato de escrever basicamente como uma atividade ética. O segredo é que o trabalho do escritor não é solicitado pela sociedade. Não há anúncio nos jornais procurando poetas ou romancistas. Escrever é uma escolha minha, unilateral, solitária, independente, intransitiva. Como cidadão, o desprezo ao livro, à palavra escrita, me horroriza; mas como escritor, não tenho o direito de exigir que me leiam. Assim, todo leitor é uma dádiva.

Há um conflito recorrente em sua obra entre o mundo da arte e os compromissos cotidianos. Esse seria um dos dramas do homem moderno, de quem é cobrado um sucesso profissional em detrimento de seus sonhos de realização pessoal?

A palavra-chave talvez seja "inadequação". Minha literatura parece que tem por objeto o que eu chamo de "homem inadequado", essa sensação de carência, de falta, de incompletude, que afinal define a nossa condição. A arte seria um dos modos de transcendência, talvez o mais poderoso - a arte nos completa, é verdade; o problema é que nós não somos "objetos de arte", nós não temos permanência. Ao fim da obra, voltamos ao início. Entre uma coisa e outra, as formas do sonho: literatura, pintura, música...

No começo, a cidade em seus livros era um espaço anônimo, onde prevalecia um conceito abstrato da urbe. A partir de Trapo, a cidade passou a ter nome, ganhando espessura. Como se deu essa mudança e o que ela representa literariamente?

É verdade - com Trapo, parece que minha literatura chegou ao momento presente, a uma espécie de realidade concreta. Comecei a "cantar a minha aldeia", por assim dizer. Meus personagens passam a se mover numa geografia próxima, quase íntima: a Generoso Marques, a Santos Andrade, a rua XV. Percebi, súbito, que isso ampliava brutalmente meu universo literário, por paradoxal que seja. Foi uma mudança puramente instintiva, uma espécie de descoberta. Os livros que eu teria de escrever estavam aqui ao meu lado, e eu não sabia. O segredo é estar maduro para enfrentar um chão tão próximo sem que o texto desabe pelo sentimentalismo ou pelo confessionário. É preciso sempre manter o pé atrás. O prosador é um desconfiado; ele não tem a fé do poeta. Não sei o que a mudança representou literariamente. Seria preciso tomar alguma distância até para avaliar o papel da cidade, e da nossa violenta urbanização, na literatura brasileira mais recente.

A sua ficção tem pontos de contato com duas outras artes, o teatro e a pintura. As suas experiências nessas áreas ajudaram a desenvolver o seu estilo ou sua maneira de ver a literatura?

O teatro foi uma influência muito forte na minha literatura. Afinal, foi pela porta do teatro que eu entrei no mundo da arte. Participei de movimentos de teatro de vanguarda na Curitiba de 68, 69 - fui sonoplasta da primeira peça de Denise Stoklos -, participei daquelas montagens delirantes do Ari Pára-Raio, e em seguida integrei a comunidade dirigida por W. Rio Apa em Antonina, que me marcou profundamente. Li e escrevi muito teatro nesse tempo. Alguns dos meus livros têm essa "marcação" cênica. Lembro que quando Ariel Coelho montou Trapo, numa adaptação teatral para mim inesquecível, marcante, com Marcos Winter fazendo o personagem central, o texto se transplantou para o palco quase sem modificação. A sala do professor Manuel, no livro, é um palco perfeito! Muito do que escrevo vai se fazendo pelo diálogo, pelo espaço entre as pessoas, pela noção de tempo do teatro. Já a pintura é uma curtição pessoal. Nos meus 18, 20 anos, cheguei a fazer cópias primárias de quadros famosos - tenho até hoje um Van Gogh e um Matisse aqui em casa. Mas nunca tive nenhum projeto nem talento nessa área. A influência na literatura talvez se resuma numa frase: o meu mundo é visual. Escrevo o que vejo. A minha frase é antes um olhar que um pensamento.

Quais são os seus novos projetos de ficção?

Cheguei a pensar que nunca mais escreveria ficção, mas o desejo voltou. Estou começando a me sintonizar com um novo romance. É um processo lento. Já comprei 500 folhas amarelas, daquelas fininhas, e duas canetas esferográficas de escrita fina. A próxima etapa é montar uma pasta com umas 100 folhas. Em seguida, vem a compulsão de arrumar meu escritório, limpar gavetas, jogar papel fora. Finalmente, a primeira linha escrita. Daí começa a viagem. Estou curioso.

O fato de morar em Curitiba, longe dos centros culturais, ajuda o escritor a manter o distanciamento e a solidão necessários para a produção literária?

Eu teria de ter vivido um bom tempo em São Paulo ou Rio para comparar, mas acho que não há relação. É uma coisa que depende mais do temperamento do escritor. Curitiba, é verdade, nos empurra para a solidão e a introspecção. É uma cidade mais mental do que física. Também é verdade que aqui estamos longe do famoso eixo Rio-SP, mas o Brasil inteiro está longe dele. Talvez o fato de Curitiba não representar na área da cultura uma presença alternativa forte - como, digamos, Porto Alegre, ou Salvador - nos dê uma certa angústia provinciana, um caipirismo engraçado (ou o peito estufado de um ufanismo postiço, ou essa autofagia saborosa, a nossa caricatura mais fiel). Mas, no fim das contas, Curitiba é um teste poderoso para o escritor, porque não costuma dar resposta fácil a nada e a ninguém. Curitiba é uma pedra.

Dalton Trevisan se fixou nos pobres diabos de uma Curitiba ainda semi-agrária. Já os seus personagens são de uma classe média urbana. Esta diferença reflete a mudança de um modelo literário de ficção no Paraná?

Sinceramente, não sei - o levantamento de um eventual modelo literário da ficção paranaense, se é que ele existe a ponto de se tornar referência, é trabalho de crítica e de historiografia. É preciso distância para avaliar. Falando de Curitiba, que é o meu mundo literário, eu diria que o ponto em comum é menos o tema e a faixa social dos personagens e mais uma certa sensibilidade especial para ver o mundo. Dalton Trevisan é o grande eixo, uma espécie de arquétipo da cidade. Uma visão de mundo que já estava em Newton Sampaio, nos anos 30, e que prossegue hoje, em cada esquina. Sinto que minha obra absorve essa atmosfera, mesmo sem conseguir defini-la exatamente.

Quando lidos fora do estado, nossos escritores são identificados como "paranaenses". Dalton é o contista curitibano. Mas ninguém fala de Rubem Fonseca como escritor mineiro ou carioca. Esse vínculo com o lugar em que se mora atrapalha a avaliação da obra?

Dalton Trevisan é um dos grandes mestres da literatura brasileira. Ele é o "contista curitibano" no mesmo sentido que Jorge Amado é, digamos, o romancista baiano, e Erico Verissimo o gaúcho. Acho que é um modo de dar nitidez imediata às literaturas produzidas fora do eixo Rio-São Paulo. Não, não acho que isso atrapalhe a avaliação. Mesmo porque à medida que o escritor vá sendo publicado, conhecido e respeitado fora de sua região, o fato de ele ser, digamos, de Curitiba ou Recife é apenas uma informação, não uma limitação.

Você está satisfeito com seus livros, ou pensa, seguindo o exemplo de Dalton Trevisan, reescrevê-los?

É difícil um escritor estar satisfeito plenamente com os seus livros. Sou um prosador desconfiado. Mas tenho uma defesa contra essa insegurança - terminado o romance, eu me livro dele quase imediatamente, como de um parente incômodo. Levo muito tempo, às vezes anos, para voltar a lê-lo, já com a cabeça fria. Às vezes gosto, às vezes nem tanto, mas não a ponto de mexer neles. A exceção foi o Ensaio da paixão, que reescrevi para a nova edição da Rocco. Mas era um caso especial, limítrofe, entre um tempo e outro da minha vida, e não mexi no coração do livro. Na reedição do Trapo, não mudei uma vírgula - apenas corrigi algumas gralhas tipográficas. Na do Juliano Pavollini, retifiquei o nome do estádio do Coritiba, que era Belfort Duarte nos anos 60, como me lembrou o Paulo Venturelli (aliás um atleticano, como eu); e, graças à observação do Guido Guerra, de Salvador, corrigi a letra dos primeiros versos de Normalista, do Nelson Gonçalves, que o personagem ouve num momento do romance. É mesmo "minha linda normalista", e não "minha querida normalista", como estava... Fora esses detalhes, não consigo mexer em mais nada; é como uma linguagem que não me pertence.

Sartre dividiu a vida dele em dois movimentos: ler e escrever. Como se dá isso com você?

Acho que do mesmo modo. Pensando bem, absolutamente tudo que faço desde os meus 12, 13 anos passa pelo filtro da palavra lida e, quase que em seguida, escrita. Ler o mundo e escrevê-lo - não há como escapar.



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