A Notícia
Joinville, SC, 21 de agosto de 2002
Suplemento "Anexo"


Ser escritor no Brasil é uma espécie de tragédia

Ponto de vista é de catarinense Cristovão Tezza,
que completa hoje 50 anos de vida

Marco Anselmo Vasques
Especial para o Anexo

Florianópolis ­ O escritor catarinense Cristovão Tezza, radicado em Curitiba desde sua infância, completa hoje 50 anos de vida e mais de 30 dedicados à literatura. Nascido em Lages, em 21 de agosto de 1952, ainda menino mudou-se para Curitiba, onde fez uma opção pela literatura. Ele costuma dizer que foi escritor muito antes de saber escrever, pois, aos 13 anos, já andava pelas redações dos jornais, com o caderno de
poesias, à procura de uma publicação. O tempo devorou a ingenuidade. Jovem, integrou um grupo de artistas coordenado pelo Rio Apa. Nele, Tezza se oficializou como dramaturgo da comunidade que viveu o sonho da sociedade alternativa, em Antonina (PR). Em 1975, em andanças pela Europa, começa a escrever o livro de contos "A Cidade Inventada". De lá para cá, escreveu: "Gran Circo das Américas" (1979); "O Terrorista Lírico" (1980); "Ensaio da Paixão" (1986); "Trapo" (1988); "Aventuras Provisórias" (1989); "Juliano Pavollini" (1989), reeditado neste ano pela Editora Rocco; "A Suavidade do Vento" (1991); "O Fantasma da Infância" (1993); "Uma Noite em Curitiba" (1995) e seu último romance "Breve Espaço entre Cor e Sombra" (1998). Após uma pausa de quatro anos, para a elaboração da tese de doutorado, Tezza promete retornar.

Anexo - Fale um pouco sobre o seu processo de criação e a transformação que ele sofreu no decorrer de sua vida literária?

Cristovão Tezza - Sou um escritor extremamente metódico. Aliás, isso não mudou, desde o primeiro romance, "O Papagaio que Morreu de Câncer", dos meus 18 anos, texto que já foi ao fogo, com justiça. Aprendi a escrever literatura com a mão, e não a máquina, por influência do Rio Apa, que escreveu todos os livros dele a mão. Naqueles anos da comunidade, isso também era significativo: escrever a mão era uma atitude diante do mundo das máquinas, uma opção pelo artesanato, digamos assim. Depois, tornou-se um hábito poderoso ­ escrever a mão permite a lentidão exata da literatura. Escrevo por dia ­ quando começo um romance ­ em torno de quatro a cinco parágrafos, em letra miúda. A máquina de escrever de ontem ou o computador de hoje são inúteis diante desse ritmo. O importante é manter o ritmo ­ com esses parágrafos por dia, ao fim de um ano tenho um romance quase pronto... Num segundo momento, passo para o computador. Sempre que deparo com algum trecho ou capítulo muito complicado, cheio de nós, que não me satisfaz, volto para o texto manuscrito para reescrevê-lo com calma. Sou um bom datilógrafo, daqueles raros que usam os dez dedos! Lembro que aos 13 ou 14 anos fiz por conta própria um curso de datilografia a partir de um velho manual, usando a máquina portátil que tinha sido do meu pai. Em um mês, eu já datilografava de olhos vendados. O resultado é que a minha mãe, ao descobrir minhas novas habilidades, me arrumou um emprego no dia seguinte!
Só um reparo: escrevi todos os meus livros a mão, exceto "O Fantasma da Infância". Naquela época, eu havia comprado um computador XT, daqueles antigos, uma verdadeira carroça, mas decidi aprender a linguagem DOS. Daí enfrentei o romance no teclado. Acho que alguma coisa dessa experiência passou para o livro, para as desventuras de André Devinne, preso naquele porão, escrevendo seu livro. Bem, mas o original impresso ainda em impressora matricial ficou tão rabiscado na revisão que mais parece um manuscrito... Foi uma experiência única.

Anexo - Você vive em Curitiba desde os 8 anos. Como você avalia o quadro cultural da cidade? E como ela influenciou você?

Tezza ­ Ficando na literatura, que é o meu terreno, eu diria que Curitiba tem uma vitalidade extraordinária ­ talvez intensidade seja a palavra certa ­ ainda que, como tantos outros centros do País, tenha dificuldade para se mostrar, para sair da concha, para aparecer. Claro, aparece a Curitiba "oficial", digamos assim, mas essa Curitiba ocupa praticamente todos os espaços e a cidade real simplesmente desaparece. Repetindo o lugar-comum, pode-se dizer que Curitiba, ao contrário do resto do Estado, é tímida, introspectiva, fechada. Talvez seja por essa timidez que se criou com tanta facilidade um carimbo oficial para a cidade, como quem preenche um vazio. A vitalidade de que eu falava está sintetizada na figura de Dalton Trevisan, um escritor poderosíssimo que é também um mestre de escritores. Todo bom contista brasileiro dos anos 70 em diante deve alguma coisa a ele, pelo menos uma elipse... Quanto à minha formação, sou filho da Curitiba dos anos 60, início dos anos 70, em que havia uma boa agitação cultural que desapareceu completamente nos anos 80 e início dos 90, e que agora reaparece, já, é claro, "integrada", o que é sinal dos tempos. Além da experiência comunitária com o teatro e o ideário do Rio Apa, também lembro da importância de Jamil Snege, um escritor que teve influência na minha formação, de conversa e de leitura. Lembro que "Tempo Sujo", novela do Jamil de 67 ou 68, me marcou muito. Aliás, sou leitor atento de tudo que ele escreve até hoje. No mais, Curitiba me moldou inteiro, de uma forma inexplicável ­ quem quer que viva aqui por mais de dois ou três anos vai se tornando inextricavelmente curitibano até o fim dos seus dias. Não há solução nem salvação. O que, afinal, se temos um bom olhar, resulta em ótimo material literário.

Anexo - Alguns de seus personagens são retomados em outras obras (D. Izolda aparece em "Trapo" e "A Suavidade do Vento"; "Juliano Pavollini" sai do romance homônimo e tem moradia em "O Fantasma da Infância"; Pablo pula tragicamente do "Ensaio da Paixão" para "Aventuras Provisórias". Que força os trazem novamente? Seria uma herança balzaquiana?

Tezza ­ Bem, a idéia de fazer concorrência com o registro civil, que animava Balzac, é fascinante. Mas no meu caso nunca houve essa concepção de conjunto, que marcou, por exemplo, a literatura de William Faulkner, para falar de alguém do século 20. O que acontece é que, às vezes, um personagem não se esgota em um só livro. Isso aconteceu com Pablo, que é um figura meio arquetípica, uma marca de geração. No caso, ele foi retomado dentro do mesmo universo original, embora sob um olhar completamente diferente. Em "O Fantasma da Infância", a concepção original não tinha nada a ver com "Juliano Pavollini". Mas, no momento em que o André Devinne "segundo", digamos assim, aparece, eu percebi que na verdade ele era uma espécie de reencarnação do Juliano Pavollini. Juliano já continha toda a história anterior que eu precisava para o André Devinne. Sem que eu soubesse, o Juliano já prepara o enredo de "O Fantasma da Infância". Afinal, a última frase do Juliano é algo como "ando com algumas idéias na cabeça". Mas, é claro, "O Fantasma" tem outro aspecto radicalmente diferente do "Juliano", que é a concepção narrativa, uma história dentro da outra. E, como observou Wilson Martins, não há rigorosamente nada no livro capaz de garantir qual é a história "verdadeira". Já a Izolda aconteceu por acaso ­ eu achei que a sua pensão, muito antes do "Trapo" chegar lá, seria o espaço ideal para o angustiado Mattoso, de "A Suavidade do Vento".

Anexo ­ "Uma Noite em Curitiba" demonstra uma determinada ironia acerca da educação (algo já presente em "Trapo" e "A Suavidade do Vento". Qual avaliação você faz da educação em nosso País?

Tezza ­ A presença de alguns professores nos meus livros tem uma explicação simples ­ passei a vida inteira entre professores, sou filho de professores, convivo com eles e toda a minha vida "real", digamos assim, diz respeito ao trabalho do professor. Assim, é natural que em alguns livros eles sejam protagonistas. Talvez eu não conheça nenhuma outra profissão tão bem como essa... Mas, é claro, esse é só um aspecto superficial, o lado biográfico dos personagens. A sua densidade depende de outras variáveis. Veja: o Rennon de "Uma Noite em Curitiba" não tem absolutamente nada a ver com nenhum dos dois outros, o Manuel de "Trapo" e o Mattoso de "A Suavidade do Vento". E esses dois também não têm nada em comum.
Sobre a educação brasileira? Tenho uma visão mais otimista que catastrófica. Ela é muito menos do que o País precisa, é óbvio, mas ela é muito melhor do que as indicações sociais do Brasil prometiam. Isto é, o lógico seria que ela fosse muito pior do que realmente é. Pense na universidade pública brasileira ­ com todos os problemas, ela continua sendo a grande referência do ensino superior brasileiro e ainda é uma das instituições fundamentais do Brasil. E o ensino público em geral, básico e médio, já há décadas vive o desafio de dar conta de uma massa imensa de brasileiros que estão entrando na escola, uma massa que estava completamente alijada dos anos 60 e 70 para trás. Assim, aquele chavão preguiçoso que vive repetindo que "naquele tempo, sim, a gente tinha um ensino de qualidade" esquece de lembrar que "naquele tempo" só uma faixa muito estreita ia à escola. A escola pública atendia, de fato, à elite brasileira, no máximo as classes médias. Pagamos o preço da massificação ­ o ensino não é bom, é verdade, mas há muito mais gente indo à escola hoje. Mas, é claro, o País precisa de muito, muito mais. Ainda sobre os professores: sem nenhum desejo de fazer média com a minha profissão, tenho uma admiração profunda pelo trabalho do professor, que, afinal, pelo Brasil afora (e não falo da elite universitária, mas da grande massa que enfrenta o ensino básico), freqüentemente debaixo de pancada, carrega nas costas essa tarefa insana que é civilizar a população brasileira. A educação é a pedra de toque fundamental para qualquer esperança. Não há nada de novo nisso, mas é sempre bom repetir: para quem fala em "desenvolvimento sustentado", pensando em números, lembremos que sem educação absolutamente nada se sustenta.
Assim, a ironia que transparece nos meus romances são a marca de minha ficção, a ironia que transita nas relações humanas, e não, digamos, uma "crítica institucional" ­ que, é claro, é matéria de outra linguagem que não a da literatura; a linguagem do ensaio, da ciência, da sociologia, da historiografia.

Anexo ­ O que é ser escritor no Brasil?

Tezza - Do ponto de vista prático, digamos assim, é uma tragédia ­ um escritor iniciante diria que temos poucos leitores, dificuldades de publicação, pouco espaço na mídia, etc. Do ponto de vista ético ­ que deve ser o território da atividade do escritor ­ escrever no Brasil é uma espécie de privilégio, o que exige uma certa generosidade para compreender o País. O fato é que o escritor é sempre escritor e mais alguma coisa, e sua "vida real" está nessa outra coisa, digamos assim. Sou escritor e professor; há escritores e jornalistas, e daí por diante. São pouquíssimos os escritores que vivem de escrever literatura. Nesse sentido, o sentimento de exclusão, que é mais ou menos a essência de quem pratica arte ­ o fato "estar do lado de fora" ­ passa a ser mais forte ainda. Aprendi a desenvolver um certo lado "zen" da minha personalidade para não me deixar envenenar por aquilo que justamente deve nos libertar de alguma forma: a arte.

Marco Anselmo Vasques, poeta e diretor teatral



voltar