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Anais da 4ª Jornada de
Estudos Lingüísticos e Literários
Editora Edunioeste, Cascavel, 2002.
Entrevista com Cristovão Tezza
- Quais os rumos da literatura brasileira atual?
É uma pergunta difícil. Tudo indica que está
havendo entre nós, na prosa, um renascimento (depois de
uma certa depressão ocorrida ao longo dos anos 70 e 80),
em dois sentidos. Tanto escritores consagrados têm publicado
regularmente - e até republicado obras significativas dos
anos 60 e 70, como Carlos Heitor Cony e Moacyr Scliar, para ficar
em dois exemplos bastante visíveis - como há uma
nova geração de escritores aparecendo significativamente,
no conto e no romance. Claro que o levantamento dessa produção
é um trabalho de especialista, isto é, acompanhar
o que tem saído e desse conjunto traçar algumas
linhas gerais. Como não é o meu caso, posso dar
apenas um depoimento particular. Participei recentemente, como
jurado, da categoria romance do concurso "Redescoberta da
Literatura Brasileira", da Revista Cult, e a quantidade de
bons trabalhos que chegaram às minhas mãos me deu
a impressão desse renascimento. Dá mesmo para traçar
um panorama temático, e perceber que esse renascimento
não significa propriamente nenhuma ruptura radical com
o passado. Pela amostra do concurso, nossa nova literatura parece
de certo modo respeitosa com a própria história.
Dos temas, é visível a permanência do mundo
rural e de sua mitologia como fonte literária, e um crescimento
da presença do universo urbano, mas bastante atravessado
por uma tradição da narrativa (e do mundo) norte-americano,
talvez até por influência do peso de Rubem Fonseca.
Também está bastante presente uma literatura intimista
- que podemos chamar de "feminina" (uso o termo apenas
pela lembrança de Clarice Lispector, cuja influência
é visível), um intimismo que faz da memória
fragmentária o seu foco principal. E também a memória
social - deu para sentir no conjunto a crescente presença
da história recente da ditadura militar brasileira como
objeto da ficção, uma ficção ainda
tomada pelo mito e pela pouca distância histórica.
Finalmente, há uma presença respeitável de
uma metaliteratura, "literatura sobre literatura", de
grande preocupação formal - o que também
não é uma novidade entre nós, mas um prolongamento
das inquietações técnicas que afinal são
um aspecto importante da narrativa moderna. Mas é bom frisar
que esse levantamento temático não traz em si nenhum
critério de valor, apenas de temas; encontrei trabalhos
de qualidade em cada uma dessas linhas.
No caso da poesia, não tenho acompanhado de perto a nossa
produção para dizer alguma coisa. A impressão
que eu tenho - e é só uma impressão - é
que a poesia brasileira está momentaneamente numa espécie
de limbo, ou de recesso, numa situação parecida
com o que aconteceu com a prosa nos anos 70. Não por falta
de produção; na verdade, acho que nunca se publicou
tanta poesia como hoje, mas, curiosamente, por falta de "presença".
E além disso, a memória de Drummond, Bandeira, Cabral,
para citar nossos maiores poetas, ainda é grande demais.
Parece que a nossa voz poética ainda não se livrou
dessa sombra enorme. Acho também que é de se pensar
sobre a presença da poesia na música brasileira,
o fato de que parte da nossa produção poética
migrou para a música popular, onde tem uma vitalidade enorme.
Mas isso, é claro, é outra discussão.
- Como você vê concilia o trabalho de professor
com o de escritor? Em que medida o professor interfere na universo
do autor?
Bem, o tempo foi me dando o "know-how" para preservar
meu espaço de escritor... O meu projeto pessoal sempre
foi o de escritor; posso dizer que manobrei e dirigi minha vida
(na medida em que alguém tenha esse poder, sempre frágil...)
para defender meu trabalho de escritor sobre todos os outros "chamados",
digamos assim. E encontrei na atividade de professor duas coisas:
o prazer de dar aulas e o trabalho com a linguagem. Fez parte
da minha "defesa" do escritor, curiosamente, me tornar
professor de língua portuguesa, e não de literatura.
Assim, a ficção continua no "quarto escuro",
que é onde deve ficar, pelo menos para mim.
- Qual sua opinião sobre o ensino de literatura?
Pelo que eu disse antes, não sou a pessoa indicada para
responder. Não tenho prática como professor de literatura,
e sem a gente sentir na pele esse trabalho, é difícil
avaliar. Apenas repetir o óbvio, que nunca é demais:
o ensino da literatura é um espaço absolutamente
vital na formação dos leitores e no próprio
processo civilizatório humanista. A ficção
e a poesia têm um poder extraorinário de transformação
pessoal e são capazes de revelar dimensões da nossa
vida que nenhuma outra criação tem. A literatura,
pensando bem, foi o espaço que restou para a solidão
e para o silêncio, valores que, bem dosados, são
fundamentais para a vida - isso em meio a um mundo que faz do
mimetismo visual (e barulhento!) o seu valor maior. Ler um livro
continua a ser, pelo que ele nos exige, uma das atividades mais
sofisticadas do mundo.
- Na sua obra é recorrente o tema da duplicidade. Por
que essa recorrência?
Não sei. O que eu sei é que o primeiro momento de
formação de um escritor é aquele em que ele
descobre a sua própria linguagem (naquela medida estreita
em que a linguagem possa ser "própria"). E esse
momento aconteceu comigo, talvez, ao escrever o romance Trapo
- quando eu percebi que uma voz romanesca só se iluminava
diante de outra. Essa duplicidade reapareceu em muitos outros
livros meus, às vezes pela presença de diferentes
pontos de vista sobre o mesmo fato (como em Uma noite em Curitiba),
às vezes pela própria articulação
do personagem, que fala diante de um "leitor" virtual
(como a psicóloga em Juliano Pavollini). As palavras nunca
estão sozinhas; elas só existem em relação
com outros pontos de vista. Mas isso foi acontecendo na minha
escrita de uma forma meio instintiva. É a própria
linguagem do livro que vai mais ou menos escolhendo o seu caminho.
- Como é seu processo de criação literária?
Antes de tudo, é lento - tanto biograficamente (nunca fui
precoce; meus livros mais maduros só começaram a
acontecer mesmo lá pelos meus 30 anos, e o que escrevi
antes me soa dolorosamente ruim, visto daqui...), como caso a
caso, digamos assim. De uma cena, de uma centelha, de uma idéia
original qualquer, seguem-se um, dois, três anos de ruminação
silenciosa e mais ou menos errática. Às vezes esqueço
durante meses, depois a idéia volta, mais firme. Até,
que, afinal, ela ganha uma linguagem, isto é, uma frase
concreta, um início, um ponto de vista e um ponto de partida.
Daí para a frente o livro desata mais ou menos rapidamente.
De seis meses a dois anos - uma primeira versão manuscrita
(sim, ainda escrevo à mão!), e as subseqüentes
no computador. E, uma vez começada a viagem, me transformo
numa espécie de funcionário público de mim
mesmo: todas as tardes (ou noites, dependendo da disponibilidade
da época - ou mesmo de madrugada, no caso do Trapo), escrevo
de três a quatro horas, de segunda a sexta, mesmo que o
dia não renda mais que um parágrafo. Mas eu preciso
"estar ali".
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