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Uma conversa com
Cristovão Tezza
entrevistado em Curitiba, em setembro de 2000, por Aleph Ozuas,
Daniel Serravale e Sigval Schaitel
Entrevista
concedida ao site
www.ciberarte.com.br
Ciberarte: Vários escritores já estão
desenvolvendo trabalhos na Internet - Stephen King, que lançou
seu livro na rede, também João Ubaldo Ribeiro ou
Mário Prata. Qual a sua relação e da sua
produção como escritor com a Internet?
Cristovão Tezza: A Internet é um caminho.
No Brasil a distribuição e venda do livro está
na pré-história. As livrarias são um horror.
Normalmente o livro é caríssimo, da editora ao consumidor
tem um custo da distribuição e do atravessador.
Quando você compra pela Internet, fica muito mais barato,
você corta esse custo. É um espaço tanto para
vender, para viabilizar o objeto livro (do que as livrarias tradicionais
não estão dando conta), quanto como uma nova mídia.
Até uma maneira assim de ficção científica,
em que você encomenda o livro e ele é impresso especialmente
para você. O livro é feito sob demanda, não
existe mais estoque e barateia brutalmente o custo. Acho que em
pouco tempo isto deve ser realidade. Então eu não
tenho medo nenhum. Acho que a Internet vai reforçar o livro
em vez de destruí-lo. Primeiro, porque multiplica os pontos
de venda ao infinito. Hoje se tem muito mais opção
de comprar livro, e muito mais rapidamente, uma bibliografia fantástica
disponível. Eu sou um grande consumidor de livro. Compro
na Amazon, Submarino, Cultura... Eu freqüentemente visito
esses sites. É um multiplicador, um espaço fantástico.
Ciberarte: Muitos tecnólogos dizem que o livro eletrônico
irá substituir o livro impresso...
Tezza: Aí tem muita fantasia. O que se imaginava
que seria o mundo de hoje em 1950, calçadas rolantes e
todo aquele imaginário, se vê que tudo deu para trás.
Em compensação, hoje tem coisas muito mais fantásticas,
a própria Internet, o computador. Não se previa
isso. O que se previa era um mundo mecânico, não
um digital, a sofisticação mecânica e não
a digital. O livro, no mundo todo e principalmente no Brasil,
ainda é um objeto de consumo restrito. Eu não consigo
imaginar que vai todo mundo ter uma tabuletinha digital no bolso.
É claro que vai ter livro eletrônico, mas serão
formas que estarão sendo usadas paralelamente. O livro
de bolso, de fácil transporte, pode conviver perfeitamente
com ele. Mas eu não me vejo lendo nessas telas.
Ciberarte: Você tem alguma pretensão de fazer
algum trabalho na Internet?
Tezza: Não. Eu vejo a Internet pragmaticamente.
Como escritor é um modo de divulgar o trabalho. Por exemplo,
eu tenho livros na Record que estão praticamente em final
de estoque e uma coisa que às vezes me passa pela cabeça
é como viabilizar isto via Internet, não mais registrando
livro. Fazer um site com um banco de livros de literatura brasileira,
barateando a produção, sob demanda, ou mesmo mandando
arquivos. Isso é uma certa fantasia, em que eu penso eventualmente.
Mas não me apavoro em nada, acho que isso só pode
multiplicar as possibilidades.
Ciberarte: Como é que você escreve?
Tezza: Então, curiosamente, eu escrevo à
mão. Todos os meus livros eu escrevi à mão.
Na verdade só teve O Fantasma da Infância
que foi escrito com um XT que não tinha nem winchester,
era com dois disquetes, aquele antigo Word para DOS. (Depois,
claro, vou mexendo no papel, mas a primeira versão foi
no computador. ) Depois voltei a escrever à mão.
Eu tenho um ritmo que é de escrever 3 ou 4 parágrafos
por dia e tanto faz estar com o computador ligado o dia inteiro
ou não. Eu acho mais maleável o texto escrito à
mão, para mexer, rever, voltar 3 páginas... Você
ainda tem uma simultaneidade que o computador não dá.
O computador na verdade fez renascer o pergaminho, funciona com
a mesma lógica, é aquele giro e você precisa
ser um expert em Word para ter a rapidez que se tem virando duas
páginas do papel e ver o que escreveu lá atrás.
O computador é bem menos ágil para isso, por incrível
que pareça. Agora, para a formatação final
é fantástico. Da segunda versão em diante
eu já faço no computador, passo e aí vou
mexendo.
Ciberarte: E como é o seu processo de construção
de uma narrativa longa?
Tezza: É um processo bastante demorado. Leva cerca
de dois anos de gestação na cabeça a idéia
do livro. Eu preciso ter várias coisas. Primeiro, motivação
de uma cena ou de uma situação dramática,
literária, que me pegue. Minha segunda preocupação
é um roteiro: preciso ter um esqueleto narrativo, mesmo
que eu abandone esse esqueleto. Não consigo começar
um livro sem saber onde ele vai parar. Preciso ter um final, que
quase nunca dá certo, porque muda no meio do caminho, mas
eu não saio da terra sem essa âncora. E, finalmente,
o mais importante para começar a escrever, é um
linguagem. Preciso de uma frase concreta na cabeça, eu
tenho que ter um início do livro que me dê a consistência
de uma linguagem. Essa linguagem me diz exatamente quem é
o narrador, qual é o registro do livro, onde é que
ele trabalha. Por exemplo, Uma noite em Curitiba, eu estava
há um ano escrevendo até que surgiu aquele "escrevo
este livro por dinheiro...". Então eu já tinha
um personagem inteiro na frase. Quem diz isso já tem toda
uma visão de mundo, uma maneira, uma postura com relação
ao leitor, um tipo de ironia, um cinismo, exatamente o caráter
do personagem inteiro ali.
E o personagem é meio Frankenstein. Ela vai tomando corpo,
começa por essa linguagem e na medida em que você
está escrevendo começa a ver o personagem. Esse
ver é uma atitude puramente mental, porque curiosamente
eu não sou um escritor descritivo com relação
aos meus personagens. Eu acho graça, as pessoas lêem
o Trapo e me dizem assim "gostei tanto do professor
Manoel, aquele velhinho gordinho". Onde é que está
escrito que ele é gordinho? E outros dizem assim "parece
que vejo aquele professor aposentado, magrinho". Naturalmente
que é sugestão. O leitor escreve o livro junto.
E é o mesmo processo meu, eu tenho uma figura na cabeça.
Mas você só passa para o leitor aqueles detalhes
que são estritamente necessários. No caso, ele era
careca. É o único dado da aparência física
que se sabe do professor Manoel. Assim como o Trapo era cabeludo,
mas não tem descrições. E todos os meus personagens
têm mais ou menos isso. Na verdade é um estado mental
que eu tenho na cabeça, um tipo de um temperamento, um
caráter e uma linguagem. A linguagem é o fundamental,
eu tenho que ter uma linguagem que revele imediatamente quem é
o sujeito, e tem que ser coerente na estrutura romanesca.
Ciberarte: Em Uma noite em Curitiba você usa
uma narrativa epistolar, lembra Choderlos de Laclos (Relações
Perigosas). É uma solução para a narrativa,
é um estilo seu?
Tezza: Foi uma coisa que acabou acontecendo na minha literatura.
Talvez em função primeiro da minha história
pessoal. Eu fui um grande escritor de cartas, no tempo em que
se escreviam cartas, hoje só se escreve e-mail, é
só bilhete. Mas eu passei anos escrevendo cartas. Eu viajei
muito, passei um ano na Europa. As cartas eram meus relatos, as
cartas pessoais eram assim pré-literatura. Eu levava muito
a sério os meus relatos. Eu gostava de escrever, gostava
de trocar correspondência, com os meus amigos. Minha mulher,
a Beth, tem mais de 80 cartas minhas do tempo que eu passei fora.
Carta para mim foi a porta de entrada para a literatura. Não
que fosse consciente, nem me passava pela cabeça, mas depois
de um certo momento o gênero carta começou a entrar.
Tem um outro aspecto que é a questão do narrador
do séc. XX, a implosão do narrador totalitário,
onisciente, que hoje não se sustenta mais, toda palavra
é uma palavra relativa, uma entre outras. O discurso é
anti-totalitário por excelência. O leitor sempre
lê o romance com um pé atrás. Você pode
ler um livro em que você não concorde nada com o
narrador, e no entanto o livro seja irresistível. Você
pode ler um livro de um sujeito mau-caráter, você
pode ler a história de um assassino, você pode ver
um policial do ponto de vista de alguém que "não
presta" e no entanto você lê, porque um dos pressupostos
do romance é estar avisando ao leitor: "desconfie
do que está escrito aqui." Então, nesse sentido,
a noção de primeira pessoa se aprofunda, não
é só uma noção gramatical, como no
Ligações Perigosas. Esse ponto de vista único
que se apresenta é uma noção de subjetividade
mesmo. E a carta tem um aspecto interessante: ela tem um leitor
único, nítido, para quem se escreve. E isso dá
uma estrutura muito sólida do ponto de vista romanesco.
O professor Renon de Uma noite em Curitiba escreve para
a Sara, e aquela imagem da Sara, o que ele queria com ela, o tipo
de relação é muito nítido. E isso
vai determinar grande parte da linguagem dele: ele não
está escrevendo para o leitor do livro, está escrevendo
para ela.
Ciberarte: E esse fato torna o livro ainda mais atraente
para o leitor.
Tezza: Exatamente. Você vira um voyer, entra na intimidade
de alguém.
Ciberarte: E o caso da italiana do Breve espaço
entre cor e sombra?
Tezza: Ela escreve para o Tato, mas é uma construção
muito pessoal. Na verdade é uma auto-análise, um
processo confessional que se convencionaliza como forma literária.
Não é bem uma 'carta pessoal'. As cartas do professor
Renon são estritamente pessoais. Ele fala um pouco para
si mesmo, tem sempre aquela pose ou aquela relação
com ela, de montar sua própria imagem, de discutir as questões
pessoais. No caso da italiana a coisa é mais ampla: ela
só esteve com o Tato por um dia, ele é uma figura
distante.
Ciberarte: A relação pai e filho está
sempre presente em seus romances...
Tezza: A família é um tema poderoso. A família
burguesa, para falar à la séc. 19, é um tema
muito forte na literatura moderna. No meu caso, o tema família
aparece em quase tudo que escrevi. Eu pertenço a uma geração
extremamente problemática com relação à
família, a geração 70, 68. A primeira coisa
que eu fiz foi fugir de casa com 16 anos. Hoje, a geração
subseqüente, dos anos 80, 90, já tem uma relação
muito mais tranqüila com isso. Eu vejo com meus filhos. É
mais descansado, não é aquele choque que era. A
geração dos 70 foi extremamente problemática
com relação à sociedade, à política,
aos velhos padrões. Hoje em dia há uma homogeneidade
muito maior. O mundo é extremamente mais liberal. Infinitamente
mais liberal. Eu sou de 52, em 68 eu tinha 16, 17 anos. Era um
choque violento e nascer para o mundo era recusar tudo.
Ciberarte: Os choques da relação pai e filho
têm algo de autobiográfico?
Tezza: Bem, meu pai morreu quando eu tinha sete anos. Obviamente
muitas das coisas que eu escrevo, que qualquer escritor que escreve,
é autobiográfico. O escritor que disser que não
tem nada de autobiográfico está mentindo, porque
a grande matéria-prima do escritor é ele mesmo.
Mas não autobiográfico no sentido literal do termo.
Não consigo reconhecer nada no que eu escrevi que possa
dizer "isso é uma estrutura autobiográfica".
Essa relação não tem. Mas tem muitas coisas
da vida pessoal que você acaba transformando e colocando
nos livros, que transparece mesmo à revelia.
Ciberarte: E essa questão das drogas, que também
é sempre uma presença nos seus romances?
Tezza: Engraçado, duas formas na história
da minha vida: nos anos 60 a droga era um valor positivo na juventude,
era uma libertação. Não se falava em cocaína,
na época não existia, a maconha era a grande droga.
Mas o que ela representava: você lia Herman Hesse, Aldous
Huxley, puxava um fuminho e dizia que a utopia e o paraíso
estavam logo ali, um mundo natural, o céu e o inferno,
as portas da percepção, aquela idéia de que
as drogas abrem a cabeça, um monte de mitos que funcionava
em cima disso aí. Mas foi imaginário de uma geração.
Esta foi a experiência que eu vivi muito de perto. A droga
era um símbolo de contestação, era também
uma utopia, a idéia de um paraíso terrestre, a idéia
rousseauniana do bom selvagem, corria muito na minha geração,
as leituras que a gente fazia, etc. Num segundo momento, na idade
adulta, a droga é outra coisa completamente diferente.
Agora a droga é a cocaína para o executivo trabalhar
melhor, para ser mais rápido. Há uma ideologia extremamente
individualista, a droga é o prazer pessoal, intransferível,
o êxtase. É a mitologia do prazer que envolve isso
aí.
E, paralelamente, se tem cada vez mais forte a presença
de um estado independente dentro dos estados que é a indústria
da droga. Uma coisa profundamente assustadora. A questão
do tráfico, o que significa do ponto de vista da institucionalização
da vida civilizada, é algo assim brutal. Então,
em 30 anos há uma mudança absoluta de ponto de vista
com relação a este aspecto. Outro aspecto é:
por que as pessoas consomem tanto? É uma vida terrível,
porque quem sustenta isso tudo são os consumidores. Só
existem Cali, Colômbia, os grandes traficantes, a corrupção,
compra de juízes, porque tem gente, e muita gente, consumindo.
Tanto que eu acho que é uma guerra perdida. Talvez, uma
maturação futura para resolver esse problema seria
a liberação das drogas. Se você quer vai na
farmácia e compra. Agora, se você botar isso aí
você é linchado em praça pública. Parece
que se está estimulando, mas é justamente o contrário.
Acho que um solução civilizada iria mais ou menos
nesse sentido. A questão policial é complicada porque
ela corrompe tudo por onde toca. Mas, claro, isso não poderia
se fazer num lugar só. Já se fez na Suíça,
na Holanda, e no fim acaba sendo uma concentração
de pessoas do mundo inteiro que vão para lá.
Mas também na literatura tem isso. No Ensaio da paixão,
ou com o próprio Trapo, a droga ainda é uma
coisa meio utópica. O Trapo é intermediário,
mas no Ensaio da paixão é utopia anos 60,
é um livro datado, um livro daquele tempo, daquele paraíso,
o pessoal naquela ilha curtindo, a idéia de utopia muito
presente. O Trapo já é uma figura intermediária,
já é um anos 80. Um resto de utopia pessoal, individualista
(o amor dele por Rosana, o projeto pessoal, a liberação).
Com o professor Renon é uma coisa completamente diferente.
Aqui já é um cara fuzilado da vida. A droga é
uma droga, é só isso, não tem mais nada por
trás. Se bem que ele dá a volta por cima.
Ciberarte: Você se considera um professor que escreve,
um escritor que dá aula, ou nada disso?
Tezza: Esse é um problema complicado. Eu prefiro
me ver como um escritor, puramente escritor. É que eu aprofundei
demais a questão de professor, me tornei presente muito
como professor, inclusive com material didático, na área
de língua portuguesa, em conjunto com Carlos Alberto Faraco,
e no próprio estudo de Bakhtin, de Teoria Literária.
Isto tudo passou a ocupar um espaço representativo na minha
vida, até como resenhista. As pessoas me convidam para
escrever e o meu texto como crítico é um texto acadêmico.
Eu não sou um escritor que dá palpite, tenho uma
certa estrutura de análise crítica que transparece
nas coisas que escrevo. Eu até gostaria de ser mais livre
em relação a isso. Talvez eu chegue lá. Mudar
o registro do discurso, é uma questão de realmente
sintonizar um coisa e outra. De modo que eu me defino como um
esquizofrênico. Eu estou exatamente agora numa fase que
eu diria de crise. Estou entre dois caminhos. Tive uma ressaca
da minha produção literária com o Breve
Espaço... Foi um livro que me esgotou, me cansou muito,
e eu sinto que estou precisando parar, parar um bom tempo - estou
fazendo agora a tese de doutorado. Mas é meio assustadora
a idéia de entrar de cabeça na teoria, o que pode
ser também uma viagem sem volta. Estou pensando, estou
com alguns planos, idéias de romance, de vez em quando
esboço alguma coisa de ficção, só
para manter o pé firme ali.
Ciberarte: E se você fosse escolher entre ser professor
e ser escritor?
Tezza: Nenhuma dúvida de que eu queria ser escritor.
Meu projeto dos 14, 15 anos, ou antes mesmo que eu soubesse escrever,
era ser escritor. Isso é verdade, parece piada, mas não,
era um projeto existencial mesmo. Então comecei a me mexer
para isso. Mas não era aquela coisa. Eu fui um péssimo
escritor de juventude, nunca fui precoce. Eu preferia ser um escritor,
claro. A questão de sobrevivência para o escritor
é difícil. Nesse sentido o trabalho de professor
universitário é interessante. Você ganha pouco,
mas ela dá uma certa condição tranqüila
para trabalhar. A universidade lhe dá tempo, se você
souber administrar bem. Eu consigo até produzir material
didático, fazer trabalho acadêmico e escrever romance.
Mas como escritor é difícil. Agora, é óbvio,
se meus livros começarem a vender como os do Paulo Coelho,
aí eu pedia demissão.
Ciberarte: Quais foram suas leituras de formação?
Tezza: O primeiro livro que eu li por conta própria,
com 11 ou 12 anos, foi A Chave do Tamanho, do Monteiro
Lobato. Aí eu li tudo do Lobato. Então virei um
leitor, aquele cara que vai por conta própria pegar livro
para ler. Depois, num segundo momento comecei a ler Julio Verne,
lia também muito policial. Veio a literatura adulta, já
nos 16 eu comecei a trabalhar em teatro, via muito teatro, comecei
a ler literatura adulta caoticamente. Lia de tudo, o que pintava
na mão. Depois, num terceiro momento, você começa
a ter a literatura mais adulta, alguma referência de Dostoievski,
num momento Faulkner, que eu li bastante, Gabriel Garcia Marques.
O Cem Anos de Solidão foi um choque, foi em 68,
em 70 que saiu. Eu lia muito Cortázar. Hoje se fala muito
pouco dele. Eu o lia bastante, ele é meu guru. Herman Hesse,
eu lia muito também. Parece que Hesse está tendo
um renascimento agora, foi reeditado. O Lobo da Estepe,
a leitura daquele tempo. Thomas Mann, A Montanha Mágica.
A poesia, curiosamente eu li quando bem menino. Tinha uma coleção
que era do meu pai, dos poetas românticos brasileiros, uns
livrinhos de antologia. Eu devorei tudo. Castro Alves eu sabia
de cor. Fagundes Varela, Álvares de Azevedo "se eu
morresse amanhã viria ao menos fechar meus olhos ..."
sabia aquilo de cor, era uma coisa fantástica. Então
eu fumava meus primeiros cigarros...
Depois desse primeiro momento (das antologias que Manoel Bandeira
fazia, tinha uma antologia dos poetas bissextos, que eu achava
ótimo, pessoas que raramente escreviam poemas) bem mais
tarde eu voltei para a poesia, com os clássicos: Durmmond,
Bandeira, Vinícius de Moraes, Cassiano Ricardo, que eram
minhas leituras daquele tempo. E mais tarde comecei a ler mais
poesia. Mas o que marcou mesmo foi a ficção. Dos
nomes de que eu falei, depois Conrad, Lord Jim, outra leitura
forte. Camus com O Estrangeiro; O Imoralista, de
Gide. Daí vai para a frente. De vez em quando se tem uma
surpresa, descobre mais coisas novas. William Golding , Thomas
Bernard, que descobri há pouco tempo.
Ciberarte: Da atualidade tem algum mais querido?
Tezza: Não, não tenho mais uma leitura específica,
estou procurando, acompanho bastante o romance americano contemporâneo,
tenho lido algumas coisas, mas não sou mais um leitor especialista,
de pegar alguém e me debruçar. Eu tenho lido muita
teoria agora. Teoria da literatura e teoria da linguagem.
Ciberarte: Em relação à sua narrativa
percebe-se que há sempre um tom de mistério, algo
de narrativa policial...
Tezza: Tem. É uma narrativa que me atrai. Trabalhar
com suspense. Num primeiro momento eu gostava muito de Agatha
Christie, lia tudo do Conan Doyle, achava um barato aquilo. E
depois, num segundo momento o (Georges) Simenon. Ele é
fantástico, o melhor de todos.
Ciberarte: E onde aparece Florianópolis nos teus
romances?
Tezza: Indiretamente em três livros. "Ensaio
da paixão" tem muita coisa de Florianópolis,
mas não está expresso. A metade do "Aventuras
provisórias" se passa em Florianópolis, na
Lagoa da Conceição. E "O fantasma da infância"
se passa em Florianópolis. Eu morei dois anos lá.
Tenho uma relação forte com a cidade.
Ciberarte: E Curitiba, como é trabalhar na ficção
com o espaço geográfico real?
Tezza: Foi uma passagem. Meu primeiro livro, A cidade
inventada, o primeiro que eu ousei publicar, porque uns três
eu joguei fora. Três romanções, 600 páginas.
Ali não tem nenhum espaço concreto. Todos os contos
se passam em cidades imaginárias, locações,
ruínas, ou espaços abstratos. Não tem geografia,
não se sabe onde acontece. E é uma coisa curiosa.
Depois desse escrevi o Gran Circo das Américas -
uma narrativa bem simples, plana - e nesse sim, já tem
uma situação concreta, mas não dou nome de
cidade, não dou geografia. Você sabe que é
alguma cidadezinha aqui no sul do Brasil, mas não é
localizada. O terrorista lírico também é
numa cidade grande, mas também não digo qual é.
Pode ser qualquer uma, não tem uma referência concreta,
bem como no Ensaio da paixão, que é uma ilha do
sul, um lugar fantástico. Foi no Trapo que eu descobri
o prazer de mexer com o espaço concreto, a hora que eu
botei meus personagens andando ali na praça Rui Barbosa.
Um monte de problemas se resolvem.
Para o tipo de literatura que eu faço (eu trabalho com
registro realista), para o tipo de universo com que lido (classe
média brasileira contemporânea), o tipo de mundo
mental, esse aspecto de Curitiba foi uma dádiva. Minha
literatura não tem nada de regionalista, mesmo porque Curitiba
não é regionalista. Curitiba é uma cidade
abstrata, pedaço nenhum. Eles tentam inventar que Curitiba
é alguma coisa, mas não é. É um espaço
urbano absolutamente descaracterizado, não tem nada. Tanto
que todos os símbolos da cidade surgiram nos últimos
10 anos com o Jaime Lerner: o Ligeirinho, a Ópera de Arame,
etc. Uma cidade que parece que não tem história,
tem 300 anos e um logotipo moderno. É um espaço
urbano, um laboratório de classe média. Então
no Trapo eu descobri minha própria linguagem. Eu
cresci como escritor. Uma das questões foi saber qual era
a minha geografia, onde é que eu trabalhava. Depois do
Trapo veio Aventuras provisórias que é
Curitiba e Florianópolis, bem específicas. Então,
O fantasma da infância, com espaço bem concreto,
o Juliano Pavollini, Curitiba dos anos 60.
Ciberarte: Na sua juventude você tinha um grupo de
com quem discutia literatura?
Tezza: A minha formação de juventude, fase
da adolescência para a juventude, foi o grupo do W. Rio
Apa. Ele morava aqui em Curitiba. Em 66, 67 ele montava umas peças
aqui e no litoral, em Antonina. Eu me engajei com ele, então
ficava conversando. Ali juntava um monte de gente que lidava com
literatura, que tinha projetos culturais, projetos revolucionários.
Por exemplo, na primeira peça da Denise Stoklos eu fui
iluminador. Era o "Circo na Lua, Lama na Rua", uma peça
de 68, e eu trabalhei nesse grupo. Todo o pessoal ali era ligado,
cheio de idéias, todo mundo artista, todo mundo poeta,
tinha uma efervescência. Curitiba teve um momento cultural
muito rico no final dos anos 60. Muito se fez aqui, principalmente
na área de teatro. Tinha o Ari Pára-Raio, a própria
Denise Stoklos, o Manoel Carlos Karam ( o Karam ainda está
aí mas não faz mais teatro). Foi uma época,
do final dos 60 até 71, 72, depois foi morrendo. Mas se
tinha aqui um clima cultural excelente, de atividades. Noites
de poesia, declamações, o DCE (Diretório
Central do Estudantes) promovia.
O pessoal ia lá declamar poemas, fazer discurso político,
falar mal da ditadura. E isso foi parte da minha formação.
Então, claro, eu conversava muito sobre tudo isso aí
com amigos, e muito com o Rio Apa e com o pessoal ligado ao grupo.
Rio Apa era um escritor muito conhecido na época. Tinha
acabado de publicar A Revolução dos Homens pela
editora José Olympio, que era uma editora importante, depois
publicou No Mar das Vítimas, pela Brasiliense. Então
ele congregava um monte de gente interessada em literatura. E
eu freqüentava muito a Boca Maldita aqui em Curitiba, e tinha
muita gente boa, até o próprio Dalton Trevisan,
no tempo em que ele ainda falava com as pessoas. Conheci o Dalton
lá na Boca Maldita. Ele ia tomar cafezinho e conversar
com o Aristides Vinholes, que era o livreiro, o Valmor Marcelino,
o Jamil Snege, que foi meu mestre. O Jamil lia as coisas que eu
escrevia, com extrema paciência. Aliás, um belíssimo
escritor. O Fábio Campana, o Nego Pessoa (Carlos Alberto
Pessoa). Era uma juventude efervescente. Eu tinha uns 15 ou 16
anos e ouvia esse povo conversando, ia lá, era arroz de
festa.
Com o bolso abarrotado de poemas, enchendo o saco de todo mundo
com minhas obras-primas. Minha formação é
desse tempo, dessa época. De um lado esse pessoal da Boca
Maldita, de Curitiba mesmo, que deu um tom, principalmente o Jamil.
Eu o ouvia muito, prestava muita atenção ao que
ele dizia. E por outro lado o Rio Apa, mais do lado performático,
do teatro, da questão existencial, utópica. Apa
tem o lado messiânico, que agora assumiu de vez. Naquele
tempo ele ainda contrabalançava o messianismo com a literatura.
Essa é basicamente a minha formação. Depois
se vai ficando sozinho. À medida que se vai amadurecendo
como escritor, talvez muito por Curitiba e pelo espaço
cultural daqui ter se desintegrado. Curitiba ficou absolutamente
sem expressão nenhuma. Durante anos e anos a fio não
tinha nada aqui. Somente o Dalton Trevisan e o Paulo Leminski.
O primeiro escritor depois dos dois que furou o bloqueio editorial
fui eu, nos anos 80, quando fui publicado pela Brasiliense e depois
pela Record. Agora não, agora está cheio de nomes,
que é o pessoal desse tempo que publica. Mas isso aqui
era um deserto. Teve uma época que a gente tentou fazer
duas editoras: a Coo-Editora, que foram 12 sócios, publicaram
12 livros e foram à falência. A gente se mexia para
botar os livros em circulação. Claro que nenhum
desses livros conseguiu sair de Curitiba. Nem nas livrarias daqui
você conseguia botar os livros direito, um negócio
terrível. E depois num projeto mais amplo fui sócio
do Roberto Gomes na Criar Edições. Era um projeto
mais ambicioso. Acabei vendendo minha parte para ele e acho que
ele já fechou a editora. Mas chegou a editar a Helena Kolody.
Teve uma certa presença. Publicou até a primeira
edição do Ensaio da paixão, na época
em co-edição com a Fundação Catarinense
de Cultura. Tirando isso não tinha nada. Agora está
começando a renascer. Ela enganou muito por fatores como
o Festival de Teatro, toda essa coisa extremamente importante,
mas que era algo que acampa aqui, como Fórmula 1, e depois
vai todo mundo embora no outro dia. Poucas raízes. E na
literatura vai se ficando meio sozinho, é um trabalho solitário.
Uma questão complicada. Às vezes o pessoal manda
e-mail, o pessoal jovem, querendo saber o que fazer, onde buscar
orientação para escrever, tem uma certa preocupação.
O que é engraçado também. No meu tempo a
geração de artistas era orgulhosa demais para achar
que alguém pudesse ensinar alguma coisa. Já sabia
tudo, a relação da coisa era contra tudo, então
não tinha mestres. E hoje é uma postura bem mais
profissional e pragmática. Tem oficinas de texto, mudou
o tipo de relação. Eu acho bem mais tranqüilo
hoje, é uma relação mais saudável,
menos angustiante, menos neurótica que no meu tempo.
Ciberarte: Você não acha a juventude de hoje
um pouco apática? As gerações passadas não
eram mais ousadas?
Tezza: É muito complicado fazer uma análise,
tem várias variáveis. Nos anos 60 e 70 tinha um
mundo emburrecido pela guerra fria, tinha o bem e o mal, o certo
e o errado, você não tinha muitas opções.
No Brasil, a implantação de uma ditadura que facilitava
as posturas éticas possíveis. Você tinha inimigos
muito nítidos, e isso mudou. De repente você sai
de uma situação dessas, em que não tinha
acerto, tinha que ser do contra mesmo (senão era um lacaio
da ditadura. E era mais ou menos isso mesmo, não tem outro
termo), para um situação extremamente complexa,
da multiplicidade de opiniões e diferenças da própria
estrutura do estado brasileiro, passando de um mundo ainda predominantemente
agrário para um mundo predominantemente urbano. Tem modificações
fantásticas de comportamento, de visões de mundo
e de cultura, que a gente ainda não sabe avaliar. Depois,
a avaliação que a gente faz, por exemplo da questão
do tempo de estudo da minha geração (eu estudei
em colégio público de alta qualidade): era de alta
qualidade mas era para uma elite. Tinha pouquíssima gente
completando o 2º grau. Era mais sofisticado, mas para bem
menos gente. Hoje se tem uma democratização brutal.
Veja a quantidade de alunos que completa o 2º grau e está
entrando na faculdade. Você tem uma massa de gente que está
tendo acesso a um tipo de informação que no meu
tempo nem pensar.
Essa é outra variável. O Estado não foi capaz
de dar conta desse aumento de gente. O ensino desabou. A qualidade
do ensino é menor, mas não é tão ruim
quanto se diz. Se você pensar no simples fato do número
de pessoas alfabetizadas a mais, já é uma conquista
fantástica. Imaginar que o professor ganha um salário
de fome no Brasil inteiro e as pessoas continuam aprendendo a
ler. É uma coisa simplesmente fantástica. Tem que
botar a figura do professor lá em cima. É o herói
nacional. Tão injustiçado, mas é o herói
nacional. Tudo conspira contra, entretanto as pessoas continuam
sendo alfabetizadas. Sempre tem, em qualquer canto que você
vai, uma escolinha com alguém lá no quadro negro
ensinando alguma coisa. E fora da palavra escrita não tem
salvação,é a barbárie mesmo. Este
é outro aspecto para variar. Depois, uma cultura individualista
mesmo. A cultura mudou. O sonho da utopia, que tinha esse lado
legal da busca da autenticidade, aquela coisa verdadeira, a questão
da insubmissão; mas tinha também um lado messiânico,
que tem uma componente irracional. Eram, no fundo, idéias
totalitárias. A utopia é uma idéia totalitária.
Você imagina que tem o paraíso terrestre submetido
em geral a uma só voz. É uma certa incapacidade
de lidar com a diferença. Eu resisto à idéia,
ao chavão de dizer que hoje é uma barbaridade, que
a juventude está perdida. Eu não sei se a gente
tem condições de dizer isso tranqüilamente
sem pensar em todas essa variáveis, ver o que está
sendo melhor hoje ou o que pode ser.
Ciberarte: O que é utopia hoje?
Tezza: Utopia é você comprar um Mercedes Benz,
um apartamento de 500 m2, ter cinco computadores em casa, 300
celulares, tv a cabo, parabólica, poder freqüentar
o shopping center. Utopia passa por uma questão de bem-estar,
que é uma coisa horrível, precisa ter um antídoto
para isso. Agora, utopia, no meu tempo, eu lembro que meu cunhado
estocava fuzis no teto do consultório de dentista dele
porque queria derrubar o governo, lá no sudeste do Paraná.
Foi preso e tudo. Ele estava com uma guerrilha e ia derrubar o
governo, isso junto com outras explosões que teve no Brasil
todo. Essa era a utopia. A pessoa botava a sua vida inteira em
cima de um projeto nacional de salvação, que se
desse certo ia ser alguma coisa como Khmer Vermelho. Eu estou
caricaturizando um pouco, mas eram idéias, porque as opções
eram mais ou menos autoritárias.
É curioso que, por exemplo, Che Guevara hoje é um
ícone pop. É uma coisa impressionante como foi consumido.
E ele era um terror. Era considerado o mal em pessoa, aquela coisa
do guerrilheiro. Uma vez correu um boato de que ele teria passado
por Curitiba, 75 ou 76. Era uma coisa assustadora, exército
para um lado e para outro para matar o "monstro guerrilheiro".
Hoje ele é um ícone, um Mickey Mouse da esquerda.
É engraçado.
Ciberarte: Você falou dos artistas do seu tempo de
juventude e dos de hoje, que logo se preocupam em como entrar
no mercado. Há uma grande diferença?
Tezza: A primeira pergunta que o pessoal que me escreve
faz é "como é que faz para publicar um livro?"
Com quatro poemas já está pensando em publicar um
livro. É uma relação engraçada, bem
mais pragmática. O artista perdeu toda a aura; aliás,
já vinha perdendo desde o século passado, aquela
figura do artista como o iluminado da sociedade. Ela tem sobrevida
nos anos 60 porque vinculou com a idéia de transformação
social. Teve importância fantástica no fim da guerra
do Vietnã, todo o movimento hippie. Hoje não, perdeu
a aura. A própria literatura tem que se perguntar "Mas
alguém mais quer ler livro? Tem algum interesse?"
Ciberarte: O consumismo destrói a arte?
Tezza: Depende do artista. Na Literatura, escrever para
ser lido, para ser sucesso, é uma coisa que pode existir
( e pode naturalmente corromper o trabalho, em função
disso). No entanto, não é uma coisa fácil.
As pessoas falam do Paulo Coelho, que escreve só o que
o público quer ler, mas tem 10 milhões de candidatos
a Paulo Coelho e só ele deu certo. É um tipo de
tcham que o sujeito tem que ter para dar conta disso. Agora,
como visão de mundo mudou. Eu sou de uma geração
em que se tinha uma idéia, uma aura sobre a atividade artística
como coisa superior, libertária, transformadora, utópica,
comportamental. O artista não é um criador de objetos,
ele é alguém que vive de uma forma diferente. Isso
é bem da minha geração. E há traços
disso ainda hoje. A Denise Stoklos é um exemplo. Ela é
legitimamente um comportamento de artista dos anos 60.
Ciberarte: Todo artista é um pouco louco?
Tezza: Tem um aspecto meio monstruoso na atividade artística,
porque num primeiro momento você acha que tem controle sobre
essa atividade, mas escrevendo um livro, ao longo dos anos você
vai sendo modificado pelo que escreve. Um romance, por exemplo,
você leva dois anos para escrever, são muitas horas
sozinho. Acho que nenhuma outra atividade deixa a pessoa tão
sozinha quanto escrever um livro, porque em qualquer outra atividade
você está vendo pessoas. Dando aula, por exemplo,
você está o tempo todo vendo pessoas. O sujeito que
escreve não, ele fica muito tempo sozinho. As horas que
fica escrevendo são estatisticamente excessivas. E acho
que por causa dessa perda de contato todo artista é meio
anti-social. Ele vai ficando meio esquisito. E o próprio
ato de escrever, trabalhar com a palavra, mexe com a questão
da construção da consciência, com a articulação
do mundo. Isso não é uma coisa que se faz impunemente.
É como mexer com lixo tóxico sem máscara
de proteção. Tudo isso vai mexendo com a tua cabeça.
No final de dois anos em um livro de 200 páginas você
já não é mais a mesma pessoa. Você
é transformado pelo livro também, ele passa a te
conduzir. Por isso há temas recorrentes. No próximo
livro você vai aprofundar, vai se tornando uma estrada obsessiva.
E essa solidão é algo pessoalmente transformador.
Daí porque você não consegue mais parar, sem
isso você não é mais ninguém. A questão
é: vou parar de escrever e vou fazer o quê? Não
sei fazer mais nada...
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