Máscaras, viagens e relógios
José Castello

Foi sinuoso o caminho feito por Cristovão Tezza em direção à literatura. Entre 1968 e 74, num primeiro desvio, ele integrou, com sincero entusiasmo, uma comunidade de teatro popular. Em seguida, passou o ano de 1975 viajando, sem rumo, pela Europa, com a mochila nas costas e, como tal, mais interessado em se surpreender do que em encontrar. De volta ao Brasil em 1976, fixou-se em Antonina, pequena cidade no interior do Paraná, onde, afastando-se do trabalho intelectual, passou a sobreviver como relojoeiro. Seu primeiro livro, ao menos aquele que ele assim considera, A cidade inventada, coletânea de contos, é de 1980. Tezza já se aproximava dos 30 anos.

Não é incoerente, nem dispensável esse passado, longo período de desvios que antecedeu a chegada à literatura. Passado? A noção é um pouco forçada, e é sempre arbitrária, na medida em que, não só para escritores e artistas, nada passa completamente. A obra de Tezza, hoje, é uma prova disso. A experiência com o teatro ficou, sobretudo, em sua aptidão para inventar e manejar uma grande variedade de personagens, figuras distintas, que tanto podem bordejar a realidade (e, mais precisamente, o bairro do Alto da Glória, em Curitiba, onde Tezza vive), como se esquivar e negá-la. Tezza os "rege" com rara mestria e a multiplicidade de executantes e de timbres que comparecem à cena, em vez de esvaziá-los, como ocorre na literatura best seller — feita para a digestão, e em grande correria — vem aprofundá-los, por contraste, por choque, como os mosaicos num vitral. Um personagem como o pintor Tato Simmone, de Breve espaço entre cor e sombra, seu livro mais importante, com suas oscilações internas e sua relação de amor e ódio ao mestre morto, Aníbal Marsotti, é um exemplo disso.

A experiência de andarilho também ficou, não só em muitos personagens que rondam pelos livros como sujeitos inquietos e de espírito à deriva — basta pensar no poeta suicida Paulo, de Trapo, seu livro mais popular —, mas sobretudo no ritmo, cauteloso, persistente, "vagabundo", que Tezza impõe a sua prosa. Os romances e contos que escreve devem ser saboreados com suavidade, exigem leitores atentos e tranquilos, já que não comportam soluções espetaculosas, ou pirotecnias de linguagem, tão em moda entre alguns escritores paranaenses de hoje. O andarilho, além disso, se pauta pela surpresa: e o modo como Tezza escreve, metodicamente, à mão, em finas folhas de papel ofício presas numa pasta de cartolina, aponta para este ritmo regular, sim, mas sempre pronto para o susto.

Por fim, a experiência de relojoeiro não se conserva apenas na paixão pelo belo cuco suíço que Tezza exibe em sua sala de jantar. Muito mais que isso, ela está presente no modo discreto, meticuloso, mas intenso, com que Tezza constrói suas narrativas, manipulando com raro talento a máquina de narrar. Na aparência, as histórias de Cristovão Tezza apresentam estruturas clássicas, que recorrem às tramas policiais, aos combates da paixão, a um suspense difuso, às peripécias de crescimento. No entanto, o trabalho de relojoaria não se faz na superfície; passa-se, sim, nas entrelinhas, onde, com aparência despretensiosa, ele vai conduzindo o leitor a galerias profundas pelas quais trafegam sentimentos, fantasmas e ilusões. Em vez de lantejoulas exibidas com estardalhaço, ou retratos temerosos e "científicos" do real, as dores secretas. Tezza sabe lidar com o oculto sem precisar da pose de bruxo, ou de recorrer a esoterismos. Isaías, o diretor da Paixão de Cristo que vai ser montada em Ensaio da paixão, apesar de mal aparecer no livro — como o Kurtz de Conrad — o monopoliza completamente.

Cristovão Tezza é um escritor que recupera a complexidade e a densidade da prosa de ficção, hoje dissolvidas em vazias experiências de linguagem e na submissão nefasta às expectativas do mercado. Confere-lhe, novamente, a grandeza que lhe cabe e que a define.


José Castello é escritor e jornalista, autor de "Fantasma" (Record, 2001).


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