SOB O SIGNO DE PENÉLOPE

Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 7. Brasília, maio/junho de 2000, pp. 3-10. - Publicação do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília


Elzimar Fernanda Nunes
Mestranda em Literatura Brasileira / UnB


Na mitologia, o frágil fio da existência era cuidadosamente tecido pelas Parcas, sendo assim formado o destino de cada ser humano e mesmo dos deuses, que para os gregos até mesmo as divindades estavam submetidas a este ente implacável: o destino.

Não à toa, a etimologia de "texto" tem sua origem em "tecido", lembrando-nos que, assim como as Parcas artesãs, o autor enreda fios os mais diversos de palavras e silêncios, repletos da sua terrível multiplicidade de sentidos possíveis, no desejo de construir a unidade coerente e íntegra do "tecido perfeito": aquele que esconde o espaço entre os fios, aquele que se oferece como peça inteiriça, ocultando a própria diversidade que o mantém coeso.

Não à toa, tecido, texto e sentido existencial se confundem. Todos eles, monumentais tentativas de ordenar o caótico emaranhado de palavras e fatos, a fim de dar-lhes uma forma única, um significado compreensível. E depois, transformados em entidades singulares e autônomas, tecido, texto e vida costumam dissimular seu caráter de artefato construído, cobrindo em suas malhas o imenso esforço da consciência que os modelou.

Em grande medida, a progressiva estruturação do romance no século XIX partiu deste afã de elaborar o "tecido perfeito" da narrativa sem incoerências e/ou contradições, culminando no postulado do "romance de tese". Um texto que se ofereceria como mero registro de uma observação imparcial da realidade, com o artesão encobrindo seu trabalho de escolher e de trançar os fios. Verdade que a ilusão de que fosse possível tal texto advinha da ilusão ainda maior de que a própria "realidade" não era ela mesma um outro tecido.

Contudo, a chamada pós-modemidade marcou o surgimento de artesãos de outra espécie, cuja prática de tecelagem assemelha-se muito mais ao mito de Penélope. Como a esposa de Ulisses, tais escritores tecem cuidadosamente os fios da trama ficcional para descosê-los em seguida, deixando evidente as roturas do tecido.

Esta é a direção tomada por Cristovão Tezza em "Uma noite em Curitiba". O livro tem na relação familiar sua espinha dorsal e, como principal motivo de confronto, o conflito de gerações que se dá entre o pai, o consagrado historiador Frederico Rennon, e filho, historiador em início de carreira, Tais são as duas principais vozes ouvidas ao longo da narrativa, embora elas se coloquem em níveis diversos: o pai fala através das cartas, enquanto o filho fala no momento de compilar e de comentar, o que dá a este último mais espaço dentro do texto. Espaço usado para se construir como historiador, destruindo a imagem do pai. O qual, por sua vez, já havia renunciado a seu posto social para se reconstruir enquanto ser humano, buscando no passado um novo sentido existencial.

Até o momento em que se depara com um fantasma da juventude, no caso, a atriz Sara Donovan, Frederico Rennon fazia parte da elite social; destacando-se pela sua condição de intelectual reconhecido, o que lhe confere poder político e a razoável comodidade financeira de um cidadão da classe média. Situação a que chegou com grandes sacrifícios pessoais.

Não temos nenhuma informação sobre as condições sociais dos antepassados de Rennon, mas sabemos que ele precisou esquecer e apagar seu passado comprometedor, com laivos revolucionários, a fim de se fazer um respeitado professor universitário, pai de família e homem elegante.

Ele tem a necessidade de construir um passado histórico e uma imagem presente respeitável a fim de conquistar e manter o poder em suas mãos. Por outro lado, a seu filho cabe o papel de demolir o edifício erguido com tanto zelo, revelando-nos as cesuras e as emendas da alma do professor.

Assim, a narrativa padece do mal de Penélope, mostrando ao leitor, simultaneamente, a construção e a desconstrução de uma certa personalidade identificada com a elite dominante. Destarte, todo o esforço da elite no sentido de se distinguir das classes inferiores por uma auto-proclamada superioridade intelectual e cultural é desnudado e ridicularizado.

Vejamos, por exemplo, o caso da aclamada elegância de Frederico Rennon. Ela pretenderia passar por absolutamente natural, uma mera conseqüência do bom gosto de um indivíduo inteligente e culto:

O nó da gravata, o temo do paletó sempre aberto com o fino colete fazendo o sobretom de uma superioridade natural, verdadeira, autêntica, distraída, a barriga incipiente, tudo nele revelando o homem abstrato na caverna de Platão: o mundo das idéias, da História, mas com os pés suavemente no chão, dentro de sapatos de cromo que nem parecem tão bons tal a naturalidade com que são usados! (NC,5-6)

Tal elegância seria um sintoma absolutamente involuntário de uma superioridade inata ao intelectual envolvido com o "mundo das idéias", em contraposição aos indivíduos rústicos que se ocupam de trabalhos físicos, Contudo, como faz Penélope, esta imagem é construída ao mesmo tempo em que já vai sendo desconstruída pelo fio narrativo. Através do discurso do filho de Frederico Rennon somos informados de que:

O meu pai é um homem que passou cinqüenta anos polindo a própria estátua, caprichoso nos detalhes do bronze, dos cabelos imóveis simulando um vento imaginário no meio da praça, onde ele elabora sua elegância em passadas tão bem medidas que parecem casuais (NC, 5).

A elegância "casual" com que o professor Rennon marca sua distinção não tem, portanto, nada de involuntário. Ela é toda ensaiada, justamente no sentido de fazer parecer nato um certo padrão de comportamento que a personagem se esforçou para obter. Como afIrma Pierre Bourdieu:

A acumulação de capital cultural exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de incu1cação e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor (tal como o bronzeamento, essa incorporação não pode efetuar-se por procuração). Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do " sujeito" sobre si mesmo (fala-se em "cultivar-se") (2).

E o próprio Bourdieu observa que tal capital "apresenta um grau de dissumulação mais elevado do que o capital econômico e, por esse fato, está mais predisposto a funcionar como capital simbólico, ou seja, desconhecido e reconhecido, exercendo um efeito de (des)conhecimento" (3). Aqui já se vê uma fenda através da qual podemos surpreender a burguesia em uma de suas atuações essenciais: convencer as outras classes sociais de que seu domínio não se dá por critérios meramente econômicos (como se o terno e o sapato de cromo não fossem inacessíveis aos que possuem uma renda sufIciente, quando muito, para a subsistência), mas por arrogadas qualidades morais, intelectuais, culturais inatas a determinados indivíduos.

Ao desnudar o professor Rennon, seu fIlho desnuda toda uma prática de atuação que visa justificar o domínio de certa classe social sobre outra. Rennon sabe que para ser aceito e respeitado como indivíduo pertencente à elite cumpre-lhe adquirir todo um padrão comportamental (os novos-ricos incomodam justamente porque eles ainda não adquiriram tal padrão).

Mas, tendo-se construído uma imagem presente, também faz-se necessário adquirir um passado de origens respeitáveis. O que não é problema nenhum para o historiador, afinal seu ofício é justamente o de elaborar origens. Só que, mais uma vez, o leitor contempla Penélope cosendo e descosendo simultaneamente:

Professor Rennon: um homem conhecido pelo sobrenome, o mesmo sobrenome que, em algum momento da vida, meu pai decidiu descender, por hipótese de uns remotos Renault - aqueles, dos motores famosos, sabem? Ahahahah! (NC,7)

A ironia clara do narrador é sufIciente para percebermos o embuste de se fazer parente de uma família com ares de nobreza. Embuste mais bem exercido quando desprezado, da mesma forma como parecia desprezar o cuidado com a aparência, em favor de um certo "pé na cozinha":

Mas que não pensassem os convivas que o meu pai faria praça deste detalhe ridículo - porque em seguida ele lembraria o quanto os negros, os índios, os cafuzos, os mestiços, os desclassificados da Tropicália se esmeraram em melhorar a estirpe da família em cruzamentos freqüentemente heterodoxos (NC, 7-8).

O jogo de ironia já poderia ser suficientemente rico se permanecesse mostrando as rupturas no tecido urdido pelo professor Rennon a fim de se assegurar como parte da elite. Mas a força desconstrutiva da narrativa não pára aí. O fIlho do professor também tem suas fendas e através delas também desvendamos algumas regras da disputa pelo poder.

A principal luta do narrador/compilador é ter sua autoridade de biógrafo reconhecida, e não apenas como mais uma voz autorizada a historiar a vida de seu próprio pai, ele quer se impor como a única voz. Assim, ao mesmo tempo em que busca derrubar a estátua do professor Rennon, ele vai procurando construir a sua.

Então, forma-se um paradoxo, visto que, para ser aceito, o historiador iniciante precisa utilizar a mesma construção discursiva que vai sendo demolida ao longo da narrativa. Ao levantar a máscara do respeitado professor de história, revelando o quanto há de representação (no sentido teatral) na figura da "respeitabilidade" intelectual, o narrador mina o seu próprio caminho. Revelando a construção premeditada da figura paterna, o filho deixa entrever o esforço despendido na construção de si mesmo:

Agora sou obrigado a reconhecer qualidades beneditinas no meu pai: como é difícil o trabalho do historiador! Na verdade, já sabemos tudo o que queremos dizer; sentimos o nosso assunto como o bater do coração; tudo é tão incrivelmente evidente! Mas, para que essa evidência se cristalize, para que convença o leitor, é preciso antes arrolar uma sucessão de irrelevâncias, cacos de notícia, datas, papéis avulsos, certidões, artigos, depoimento; depois, é preciso colocar todo esse caos em seqüência cronológica, porque sobre todas as coisas pesa o império do tempo, que por si só é uma lógica (...); finalmente é preciso dar ao inferno dos fatos uma interpretação, que deverá ser a verdadeira interpretação, a interpretação indiscutível, porque as pessoas (como meu pai) sempre acham que sabem mais do que nós sabemos e estão sempre prontas a enfiar o dedo nos defeitos dos nossos pensamentos. E se não for verdadeiro, para que historiar? (NC, 24)

A ironia ácida usada para corroer o discurso do outro respinga sobre si mesmo e podemos ver que não é só o professor Rennon que compila fatos de acordo com conveniências pessoais nada "científicas". O nosso narrador também esforça-se para tomar convincente a sua "verdadeira interpretação", ou seja, ele quer ser a única voz reconhecida, ele todo aspira pela legitimação do seu discurso e, sobretudo, ele quer atingir o patamar (que o pai atingiu) de ser considerado o detentor da verdade.

Ao longo de suas interferências no texto, este estranho narrador preocupa-se com a possibilidade de não ser acreditado. Que ele seja chamado de "estudante relapso, perigo social, filho ingrato e até mesmo monstro" (NC, 12), não lhe importa, assim como não lhe importa ser condenado moralmente como interesseiro, ele mesmo é o primeiro a assumir seus interesses pecuniários desde sua primeira frase: "Escrevo este livro por dinheiro" (NC, 5) - joga na face do leitor. Este intrépido historiador suporta tudo, menos a dúvida.

Assim, o leitor se vê colocado em um jogo do tipo decifra-me ou te devoro. Se ele aceita ingenuamente a propagada sinceridade do narrador / compilador, ele se verá obrigado a aceitar também a declaração de que o filho de Rennon é o único capaz de encontrar a verdade sobre o seu pai. Parece pouco, mas não é; significa aceitar a posição de uma determinada elite intelectual que assegura sua superioridade social convencendo uma boa parte da população de que ele é a única com capacidade para encontrar determinadas verdades sobre o mundo que nos rodeia. E isto se dá com historiadores, psicólogos, economistas, jornalistas, escritores, literatos, e a lista segue imensa.

Todos, como os Rennon, buscando a distinção através da legitimação dos seus discursos. Como adverte Bourdieu, o reconhecimento da legitimidade mais absoluta não é outra coisa senão a apreensão do mundo comum como coisa evidente, natural, que resulta da coincidência quase perfeita das estruturas objetivas e das estruturas incorporadas (4) .

O mérito de "Uma noite em Curitiba" advém da sua capacidade de esgarçar o próprio tecido textual. Afinal, em quem acreditar? No respeitado professor Rennon que se entrega a uma grande paixão e tenta então se reconstruir? No filho rebelde e carente aspirando ascender? Qual voz tem mais validade?

Nesta narrativa com complexo de Penélope, o leitor pode ao menos descobrir que aceitar passivamente a voz do outro, venha de quem vier, implica em perder a sua própria voz. E é desta disputa de poder que Cristovão Tezza nos convida a tomar parte.

Em seu texto, o jogo de construção e desconstrução da narrativa não se configura apenas como um elemento lúdico ou sintoma da pósmodemidade; embora o seja em grande parte; mas também como espaço de crítica sócio-política, como denúncia e questionamento de toda uma estrutura que confere a algumas vozes mais valor do que a outras.

Terminar de tecer a mortalha seria para Penélope o mesmo que admitir a morte de Ulisses e, em conseqüência, ter que aceitar outro homem como esposo. Permitir que o filho de Frederico Rennon se estabeleça impunemente como detentor da verdade histórica, da mesma forma como seu pai se estabeleceu, seria perpetuar uma ditadura discursiva. Quando o tecido é uma rede que aprisiona, é melhor descosê-lo do que terminar de tecer.

Notas

1 TEZZA, Cristovão. Uma noite em Curitiba. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
Ao longo do texto, as citações serão indicadas pela sigla NC.
2 BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Trad. de Magali de Castro. 28 ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 75.
3 Id., p. 76.
4 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. de Fernando Tomaz. 28 ed.
Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1998, p. 145.



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