Estilhaços: uma reflexão sobre a narrativa contemporânea


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 7. Brasília, maio/junho de 2000, pp. 23-29. - Publicação do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília

Patrícia Rossi
Mestranda em Literatura Brasileira / UnB

Estas linhas iniciam-se lembrando um famoso e controverso diretor de cinema americano. Pode até parecer herético, mas um filme não é primeiramente um texto? E mais tarde texto em movimento? (claro que guardadas as devidas especificidades de espaço, tempo, perspectiva, linguagem).

Woody Allen criou uma narrativa cinematográfica que cai muito bem à literatura contemporânea. Desconstruindo Harry é um filme, empolgante, que revela o processo de criação de um autor, a construção de suas personagens, sua mudança de humor e eventual reescritura do texto, além das neuroses e lapsos de criatividade de um escritor.
O romance contemporâneo encerra características que legitimam a comparação entre as duas artes.

Para onde foram o autor onisciente, as personagens completas, de quem conhecíamos segredos e motivações? O narrador, ultimamente, procura envolver-nos - nós, leitores e críticos -, em um emaranhado de emoções, em uma ambigüidade de raciocínio que chegam a deixar-nos confusos e, por vezes, "à beira de um ataque de nervos". No seu modo de conduzir a narrativa, muitas vezes aproxima-se da linguagem cinematográfica, com imagens truncadas, cortes repentinos, simultaneidade das ações.

Construir para destruir. Destruir para reconstruir. E reconstruir para revelar. Desconstruindo seguimos e alcançamos obras como Uma noite em Curitiba (1) , de Cristovão Tezza, e Bandoleiros (2), de João Gilberto Noll. Nesses dois romances, fragmentação e busca da legitimidade de um discurso são presença marcante, o que nos leva também a discutir a veracidade dos acontecimentos narrados e as inquietudes do homem (pós)moderno. São livros que permitem aproximar discussões que surgiram em diferentes épocas do pensamento, desde os séculos anteriores a Cristo até as teorias mais contemporâneas.

O espírito humano parece necessitar avidamente do conhecimento da verdade, não obstante é sobre essa questão que a filosofia se debruça há vários séculos. Mas será que realmente existe uma verdade suprema, concretizável, uma Verdade a ser descoberta? Na Antigüidade, Platão já comparava o mundo sensível ao mito da caverna, em que os homens não conheceriam senão as sombras da verdade (3), cuja imagem pode ser levada para dentro da discussão da arte contemporânea e do pósmodernismo.

As sombras percorrem, por exemplo, quase todo o livro de João Gilberto Noll, Bandoleiros. Em oposição à luz (a verdade?), suas personagens, geralmente, não enxergam mais do que vultos, manchas, névoa. A visão é nebulosa e o narrador/personagem se encontra em um momento de dúvidas, questionando sua própria existência. É um típico homem fragmentado, vivendo em um mundo caótico. É a inconsistência do homem (pós)moderno à procura de respostas para questões atemporais.

Sim, a solução está ali, no bruxuleio da chama. Na chama. A chama crescendo assustadoramente, invadindo, devorando, inundando, lambendo um olho-pânico, ardendo por toda a parte, o mundo em fogo...Vejo que Ernesto esboça um sorriso com o crepitar de sombras no rosto (B, 54).

A problematização do mundo moderno e da solidão do homem é latente em Bandoleiros. Um doente que não tem parentes e morre no meio de um engarrafamento. Três mulheres que moram nos Estados Unidos e têm como projeto distribuir indivíduos em Sociedades Minimais. Um bêbado que abandona a América do Norte e acaba morrendo num "pueblo" brasileiro, depois de uma luta corporal no deserto com um escritor que passa o tempo todo procurando um significado para sua vida e que acaba escolhendo como enredo de seu livro o caso de um estupro e assassinato num parque de Boston.

A verdade é multifacetada. Mas também exclui discursos. A contemporaneidade traz à tona a voz do "louco". Louco quem? O que foge à cruenta realidade ou o que se aventura a navegá-Ia? Louco é qualquer um que destoe do discurso dominante. Alguns romances importam espaços psiquiátricos. Não são raras as personagens envolvidas com manicômios, sedativos, choques anafiláticos. Na disputa pela detenção da verdade, "loucos" e "sãos" se confrontam. Em Uma noite em Curitiba, a personagem principal admite um certo "defeito psicológico" ocasionado pelo abuso de drogas. Já em Bandoleiros, uma das personagens tem no currículo uma internação numa clínica, onde a overdose de choques insulínicos lhe provocaram amnésia e sua memória nunca mais foi recuperada de todo. Outras são acometidas por atitudes violentas e acabam perdendo a consciência, temporária ou indefinidamente.

Uma noite em Curitiba traz a marca da vontade de verdade; a personagem principal do livro é também o narrador que, descontente com as atitudes de seu pai - descaso em relação à família, um caso amoroso com uma famosa atriz de teatro e o suicídio - resolve publicar algumas cartas de amor escritas pelo pai (e encontradas em um arquivo do computador), mas sem deixar de fazer intervenções e de apresentar sua versão dos fatos. O inquietante é que o romance não deixa claro se essas cartas foram realmente escritas pelo pai, se chegaram a ser enviadas a sua amada e, finalmente, se elas realmente existiram. O tom dos dois discursos (do pai e do filho) é muito parecido, o que pode encerrar pelo menos duas hipóteses: a) filho e pai, um ou outro, assumem os dois discursos; b) o filho, ao relatar o pai, relata a si próprio, dadas as semelhanças de estilo. Daí resulta que não existe uma verdade da história, pelo contrário, o leitor desconfia de ambos os discursos. Não é prudente ser fiel a nenhum dos dois. Mas é exatamente isso que sustenta o livro, pois não interessa saber a "verdade dos fatos". Para um filho, isso pode significar muito, mas para o leitor o mais instigante é perceber a duplicidade do discurso, a possibilidade de farsa, a construção imaginativa das personagens.

O autor reproduz, assim, o argumento nietzscheano de que a vontade de verdade é tamhém uma vontade de domínio, que cria valores perpetuados na esfera social e chega a transformar-se em uma verdade fundamentada sohre uma mentira intencional (4).

Em vários momentos o narrador reconhece o privilégio de seu discurso e dá-nos pista de que pode não estar falando a verdade. "Por que, sempre pensando objetivamente, eu era o dono da situação. O meu olhar estava alguns degraus acima de todos os outros degraus" (NC, 138). Talvez esteja ressentido com o pai e seu discurso fraqueje junto com ele. Talvez seja um inescrupuloso querendo colher os verdes frutos de sua história. "Escrevo este livro por dinheiro", avisa.

O filho, em determinado ponto da narrativa, começa a seguir os passos do pai, a fim de constatar seu caso extra-conjugal. Em certa ocasião, quando o pai se atrasa para uma reunião importante, e a mãe é alertada de seu sumiço por um telefonema para sua casa, o filho é incumbido de procurar o pai. Encontra-o ainda no hotel da amante, mas tranqüiliza a mãe dizendo que o pai já está a caminho de seu compromisso. E confessa: "Nunca disse a verdade sobre o meu pai" (NC, 87). Podemos indagar: nunca disse a verdade à mãe ou ao leitor? No momento seguinte, reclama do pai, acusando-o de faltar com a verdade.
Femando Pessoa não acredita na verdade absoluta. Para ele, a verdade é uma sensação nossa e só poderíamos, então, falar em verdades. Relacionada à loucura (ou razão), apresenta-nos o seguinte:

Não podemos objetar nada. O que, no fundo, queremos fazer é negar a objetividade das impressões dele [o louco]. As impressões dele, porém, são dele, que não nossas, ele é que as sente, e legitimamente não pode aceitar - como nós não aceitaríamos se ele quisesse converter-nos a seu ponto de vista - uma crítica de suas impressões vinda inteiramente do exterior, isto é, vinda de quem as não sente e não pode portanto legitimamente criticá-Ias. Só se estivéssemos dentro dele, dentro do espírito dele, é que poderíamos criticar suas impressões, que seriam também as nossas (5).

A falta de comunicação entre as personagens é uma imagem forte tanto em Uma noite em Curitiba como em Bandoleiros. No primeiro, pai c filho nunca se encontram frente a frente, e na única oportunidade que isso acontece, o diálogo não se estaheleee. Resta-Ihes, então, a literatura como tentativa de fazer essa ponte. Já o escritor de Bandoleiros menciona freqüentemente um tal abscesso no pensamento, o que faz com que ele não preste atenção no que as pessoas dizem. Numa determinada passagem do livro, uma personagem chega a afirmar: "Porque o nosso problema - disse Jill - é de comunicação" (B, 137).

A última cena do livro, que não coincide com o final na ordem cronológica, marca essa distância entre os homens; no reencontro com seu amigo, a personagem deixa o passado para trás e corre e caminha em direção ao amigo, mas o contato é permeado por uma linha divisória:

E eu fui. Abandonei a mala e fui, devagarinho, gozando cada passo, e cheguei perto do vidro, e João estava ali do outro lado, com seu braço bonito dobrado para cima, a mão contra o vidro, e eu fui ali, toquei minha mão no vidro, justo na mão de João (B, 159).

De volta ao mundo das câmeras. Em Desconstruindo Hany, um personagem, um ator, descobre-se fora de foco. As pessoas não conseguem enxergá-lo com nitidez. Precisam usar óculos especiais. Precisam adaptar-se a ele. Na verdade é o que o autor da história, Harry Block (personagem central do filme), parece estar procurando. Indivíduo neurótico, com dificuldades de adaptação, que admite não se dar bem na vida - mas somente na arte -, deseja que as pessoas moldem-se de acordo com sua realidade. O escritor transporta para o livro suas experiências de vida no mundo moderno. No final do filme, a inspiração:

Observações de um romance. Possibilidade inicial. Rifkin vivia uma existência fragmentada, disjunta. Há muito ele chegou a esta conclusão: todos sabem da mesma verdade; nossas vidas consistem de como nós escolhemos distorcê-Ia. Só o seu escrever era calmo. Sua literatura, de várias maneiras, salvara sua vida.

O caráter cinematográfico de Bandoleiros pode ser percebido na construção da narrativa, com seus parágrafos curtos, truncados, nãolineares, nas várias referências a filmes norte-americanos (Psicose, por exemplo) ou na construção de algumas imagens, como o episódio da luta com um americano, em uma seqüência típica de filmes de ação, mais especificamente dos westerns norte-americanos (B, 90-6), e no episódio em que encontra-se no bar, recriando um ambiente tecnológico (vídeo-game, máquina de comprar cigarro, música) que imprimem movimento à narrativa.

Análise, ainda que não muito detalhada, desses dois romances, permitiu-nos abordar alguns assuntos que estão em pauta na literatura contemporânea e resgatar outros que continuam atuais. A fragmentação do discurso, a relativização da verdade, a postura indagadora em relação ao mundo, as novas concepções de espaço e tempo, são elementos que fazem parte da discussão do pós-moderno, ainda que alguns deles já habitassem tempos - ou mundos - anteriores.
O romance contemporâneo trabalha com várias vozes, produz personagens incompletos. Uma noite em Curitiba e Bandoleiros nos remetem a nossas próprias sombras e nos fazem pensar se é possível ou desejável - completar o quebra-cabeças.

Notas

1 TEZZA, Cristovão - Uma noite em Curitiba. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. As citações deste livro serão indicadas, no texto, pela sigla NC.
2 NOLL, João Gilberto - Bandoleiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 (1a. ed., 1985). As citações deste livro serão indicadas, no texto, pela sigla B.
3 PLATÃO - A República. Livro VII. Trad. de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997, pp. 225-56.
4 NIETZSCHE, Friederich - "Sobre verdade e mentira no sentido extramoral", em Obras Completas. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 57.
5 PESSOA, Femando - "Relatividade da certeza", em Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 559.




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