Cruzando fronteiras: três invasões na narrativa
brasileira contemporânea
Cerrados:
Revista do Programa de Pós-Graduação em
Literatura, n. 15, ano 12, 2003, p. 57-66.
Regina Dalcastagnè
Universidade de Brasília - UnB
RESUMO: O artigo
discute três obras da literatura brasileira contemporânea
- um conto de Rubem Fonseca, uma novela de Marçal Aquino
e um romance de Cristovão Tezza - em que personagens
pobres, de diferentes maneiras, cruzam as fronteiras que separam
seu mundo do mundo dos ricos. Em todos os casos, elas usam a
violência, a ameaça de violência ou a chantagem.
No entanto, é necessário observar que a divisão
do espaço social, com as exclusão dos pobres de
determinadas áreas, também se apóia na
violência, tanto física quanto simbólica
(isto é, ideológica).
Palavras-chave: espaço; narrativa, literatura brasileira
ABSTRACT: The article discusses
three works of Brazilian contemporary literature-a short tale
by Rubem Fonseca, a not-soshort one by Marçal Aquino
and a novel by Cristovão Tezza. 1n alI of them, poor
people traverse the boundaries between their world and rich
people's one. The ways are different, but they always use violence,
threat of violence or blackmail. However, we must observe that
the demarcation of social space, with the exclusion of the poor
of certain areas, also rests on violence, both physic and symbolic
(that is, ideological).
Keywords: space; narrative; brazilian literature
Distinguir o espaço na narrativa contemporânea
é uma tarefa tão mais complicada quanto maior
parece ser a tensão que ele estabelece com as personagens
que o atravessam ou que o ocupam) (1). Uma vez que as longas
descrições do romance do século XIX foram
abolidas em nome da agilidade dos nossos tempos, resta-nos uma
ambientação mínima, que exige do leitor
o reconhecimento quase instantâneo dos diferentes códigos
sociais embutidos em cada situação (2). Ou seja,
se antes tínhamos a farta apresentação
de móveis, utensílios e vestimentas, além
de detalhes da própria casa e da rua onde ela estaria
instalada, para esclarecer a posição de determinada
personagem, hoje, precisamos nos ater ao modo como ela fala,
como gesticula e se comporta diante de outras para saber de
onde ela vem, e quem ela é. Mais do que nunca, a personagem
transporta seu próprio espaço. É em seu
corpo que se inscrevem os lugares por onde andou, e aqueles
que não lhe estão reservados.
Mesmo que a imaginemos como consumidora - concepção
que assimila o indivíduo a um "canal sobre o qual
os produtos navegam e desaparecem" nos termos de Raymond
Williams (apud Ortiz, 1996, 147) - é seu corpo a instância
última para a ostentação daquilo que pode
comprar: seja o corte de cabelo, as formas esculpidas em academias
ou em mesas cirúrgicas, seja o idioma bem pronunciado
(incluindo aí o inglês),'Ainda que despidas de
quaisquer apetrechos, as personagens contemporâneas podem
falar de si e do lugar que ocupam no mundo. A ilustração
visual de um processo similar aparece na evolução
da obra do alemão Hans Holbein (1497-1543). Pintor oficial
da nobreza da Inglaterra, com o passar dos anos ele vai retirando
de seus quadros todos os objetos que antes serviam para indicar
a posição social do retratado. Sobram, ao final,
roupas discretas e escuras, quase nenhuma jóia, apenas
o semblante austero, a elegância contida, o olhar arrogante
mas, mesmo assim, permanecem evidentes a origem e a situação
desses homens e mulheres.
Uma vez que o espaço é constitutivo
da personagem, interessa, aqui, entender o que um tem a dizer
do outro na narrativa brasileira atual - e o que essa narrativa,
enfim, pode estar revelando sobre o modo como nós nos
situamos no mundo. Sem a intenção de ser exaustiva,
e tampouco de reduzir a perspectiva da questão a este
ângulo, pretendo discutir o problema a partir da análise
de três narrativas com temáticas semelhantes apesar
das abordagens diferenciadas. Em "Feliz ano novo"
(1975), de Rubem Fonseca, "O fantasma da infância"
(1994), de Cristovão Tezza, e "O invasor" (2002),
de Marçal Aquino, temos três invasões, três
momentos em que personagens que nada possuem ocupam o território
alheio, seja através da força, seja através
de ameaças ou chantagens.
Em cada um desses momentos é possível
acompanhar a violência que intermedia as relações
entre dominantes e dominados - a violência física
ou, então, mais sutil, a violência simbólica,
que se exerce através de mecanismos ideológicos.
Fonseca
O conto "Feliz ano novo" começa com uma informação
de segunda mão: "Vi na televisão que as lojas
bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames
vestirem no réveillon. Vi também que as casas
de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque".
Logo em seguida, o narrador nos expõe a sua situação,
agora de modo direto: "Vou ter que esperar o dia raiar
e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros"
(Fonseca, 1989: 13). Com grande economia de recursos - até
porque conta com o reconhecimento fácil do leitor - Rubem
Fonseca ambienta sua narrativa. Já sabemos, desde as
primeiras e escassas linhas de que estrato social são
retirados os três protagonistas dessa história.
Mais algumas frases e acumulamos o necessário para localizá-los
em sua miséria: estão num lugar que cheira mal,
entre drogas, armas e objetos roubados. São negros, feios
e desdentados, insinua o narrador, que é um deles.
Usando nossas próprias informações
de segunda mão, os noticiários policiais da televisão
e da imprensa escrita, podemos completar a imagem do espaço
que os cerca e que faz com que eles sejam quem são. É
mais do que suficiente para os propósitos da narrativa.
O que nos interessa aqui é como esses três homens
inscrevem em si esse espaço, transportando-o em seus
corpos. Isso pode ser observado na segunda parte do conto, quando
eles invadem uma mansão, em meio a uma festa de réveillon.
Lembrando que a perspectiva seria de um dos assaltantes, é
interessante observar que a única descrição
importante da casa (fora a utilitária, de que ela tinha
um jardim extenso e ficava no fundo do terreno, o que facilitaria
o assalto) é de que o banheiro do quarto da proprietária
possuía uma grande banheira de mármore, a parede
forrada de espelhos e de que tudo era perfumado (Fonseca, 1989,
18) (3).
A descrição entra aí para
marcar a diferença óbvia em relação
à casa do narrador, onde o banheiro cheirava tão
mal que um dos amigos preferia usar a escada do prédio
(Fonseca, 1989, 13). É depois de ver o banheiro da mulher
que ele decide defecar sobre a colcha de cetim de seu quarto.
A cena, muito antes de ter seu significado vinculado ao pretenso
desprezo do bandido pelo luxo do ambiente, serve para confirmar
o que os donos da casa e seus amigos (ou os leitores de classe
média de Rubem Fonseca) pensam sobre os marginais: como
não podem ter o que nós temos, eles destroem o
que é nosso. Essa é a tônica do conto. Os
três assaltantes são apresentados como predadores
do espaço que invadem. Apesar de sonharem com a riqueza,
não demonstram nenhum interesse pelo que está
a sua volta - apenas pisam, sujam, contaminam com a sua presença.
Como se trouxessem, consigo, a imundície do lugar em
que vivem. E isso não está apenas no barro de
seus sapatos, mas no modo como se expressam e se comportam.
Enquanto as ricas vítimas do assalto ficam em silêncio,
amarradas no chão - e nós lhes adivinhamos os
modos educados e a sintaxe correta -, os bandidos andam de um
lado para o outro desajeitadamente, comem com as mãos,
arrotam alto e usam uma linguagem cujo vocabulário não
abrange muito mais que três ou quatro palavrões.
Em meio a isso tudo, chama a atenção
o quanto o narrador compartilha dos preconceitos de classe média
que circulam dentro e fora do livro. Logo no início do
conto ele se mostra superior aos seus comparsas pelo fato de
saber ler e escrever. Mais adiante, já durante o assalto,
se enfurece quando um dos convidados pede calma e diz para levarem
tudo o que quiserem: "Filha da puta. As bebidas, as comidas,
as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha.
Tinham muito mais no banco. Para eles nós não
passávamos de três moscas no açucareiro"
(Fonseca, 1989, 19). A constatação do desprezo
o atinge profundamente, desencadeando mais violência e
assassinatos, iniciados por ele próprio, que permanecia
contido até ali. O que mostra sua preocupação
com o que pensam a seu respeito.
Não há, em "Feliz ano novo",
nenhuma tentativa de diálogo entre esses dois espaços
tão distantes. Se isso pode ser considerado "realista"
do ponto de vista social, não deixa de ser frustrante
no que diz respeito à construção narrativa.
Afinal, o embate violento entre a marginalidade e os "bem
situados na vida" não traz nada de muito diferente
do que estamos acostumados a imaginar - ou, melhor, das representações
de mundo que costumamos consumir. Aqui, é possível
fazer mais uma aproximação com as artes plásticas,
desta vez com a pintura "hiper-realista", que surgiu
nos final dos anos 1960 (Malcolm Morley, Chuck Close, Gerhard
Richter etc.). Seu "realismo" extremado não
se deve à fidelidade na representação dos
objetos do mundo real - pode-se argumentar que Van Eyck, no
século XV, se aproximava mais deste objetivo mas à
cópia caprichada da fotografia. Da mesma maneira, um
Rubem Fonseca nos parece tão "realista" não
por nos remeter ao mundo social à nossa volta, mas por
ecoar uma das formas dominantes de representação
deste mundo, o noticiário jornalístico (e, em
particular, o noticiário policial).
Assim, o conto de Rubem Fonseca apresenta um modo
de ver o contato entre o marginalizado e as elites - absolutamente
vinculado ao olhar da classe média, apesar do narrador
miserável -, onde estão ressaltadas a inveja e
a violência dos que nada têm, relacionando-os incessantemente
aos excrementos que produzem e dos quais fariam parte. A suposição,
do próprio narrador, de que um dos convidados pensaria
neles como moscas só corrobora essa visão, que,
de certa forma, é incorporada por ele também.
Veremos adiante algumas implicações desse processo
de violência simbólica,
Aquino
É outro o viés de "O invasor". Na novela
de Marçal Aquino, dois empreiteiros contratam um matador
de aluguel para eliminar um terceiro sócio, que estaria
inviabilizando um contrato escuso. O primeiro. encontro entre
eles se dá num bar sujo de periferia. Ali, são
os dois homens ricos que estão em desvantagem, deslocados
em suas roupas caras, acuados pelo olhar do outro: "Merecemos
uma rápida avaliação dos dois sujeitos
que bebiam cerveja debruçados no balcão, conversando
com o velho que devia ser o dono do bar. Os quatro homens que
jogavam bilhar também nos olharam por um instante, e
depois retomaram sua conversa" (Aquino, 2002, 8). Como
em "Feliz ano novo", não há quase descrição
do espaço físico, apenas a marcação
da diferença social que abrange os dois grupos - empresários
de um lado, freqüentadores do bar de outro - a partir da
sensação de desconforto, que é essencialmente
corporal.
Dono da situação, antes de mais
nada porque senhor do espaço que ocupa, Anísio,
o assassino, os interpela e, num simples aperto de mão,
identifica, de forma debochada, o lugar de cada um deles. Pele
lisa no primeiro: "nunca precisou pegar no batente"
(Aquino, 2002, 9); calos antigos no outro, de quem trabalhou
pesado um dia, mas: "dá pra ver que agora você
está só no bem-bom" (Aquino, 2002, 10), fala
apontando-lhe a barriga. Esse arranjo, que dá a Anísio
uma posição de superioridade, deveria ser desmontado
em seguida, após a efetivação do acordo
e o pagamento do combinado. Ele, então, desapareceria
de suas vidas, seria esquecido e tudo voltaria ao normal. Só
que as coisas não vão acontecer exatamente assim.
Não porque Anísio vá exigir mais e mais
dinheiro, como seria de se esperar, mas porque ele vai querer
ocupar um outro espaço, vai querer fazer parte daquilo
tudo, daquelas vidas que não são a sua.
Após executar o "empreiteiro honesto",
Anísio faz uma visita ao escritório de seus contratantes,
cumprimenta-os como se fossem velhos amigos, elogia a reprodução
de Cartier-Bresson pendurada na parede, e pede um emprego (Aquino,
2002, 69-70). Ao contrário dos bandidos de Rubem Fonseca,
que precisam afirmar o tempo inteiro seu desprezo por tudo aquilo
que não têm, o matador de Marçal Aquino
gosta do que vê e se acha bastante digno para pertencer
àquele lugar. Tem gestos seguros e controle emocional.
Ameaça com tranqüilidade. Mais uma vez, a sensação
de desconforto fica com os empresários, não só
pelo medo de serem desmascarados, mas também pela vergonha
de terem aquele sujeito ao seu redor, com suas roupas fora de
moda e seu jeito abusado. Como a narrativa é feita por
um dos sócios, o dos calos e da barriga, acompanhamos
esse desconforto até as suas raízes.
Mas se Anísio não se sente desconfortável
diante dos empreiteiros, também não é imune
à sua aura de poder. Não basta para ele ter dinheiro
e circular em seus ambientes. Quer ter influência, ser
como eles. Por isso leva um amigo seu até o escritório,
recomendando-o para um empréstimo, numa clara demonstração
de força: "Meu compadre veio de longe, achando que
ia resolver o problema, e o que acontece? Vocês estão
me fazendo passar vexame por causa de uma mixaria" (Aquino,
2002, 92). Da mesma maneira, faz um churrasco para comemorar
seu aniversário e praticamente exige a presença
de seus "novos amigos", falando em desfeita e olhando
de cara feia (Aquino, 2002, 103). Ou seja, pretende mostrar
para seus antigos conhecidos que agora faz parte de um outro
mundo, mas ainda precisa convencer a si mesmo disso - daí
a necessidade de se relacionar socialmente com gente rica, o
que deixa os empreiteiros horrorizados, é claro.
Se no conto de Rubem Fonseca há uma busca
constante por remeter os acontecimentos narrados à realidade,
ou à representação jornalística
dela, na novela de Marçal Aquino, ao contrário,
parece haver uma espécie de descompasso com o mundo social
- o que vai desembocar na inverossimilhança narrativa.
Anísio, o bronco matador de aluguel, acaba namorando
a moderninha filha do sócio assassinado e até
mesmo assume seu lugar nos negócios da família,
ocupando, sem nenhuma dificuldade, o papel do zeloso e experiente
avô da moça. De uma hora para outra, o matador
de aluguel torna-se um deles e ninguém mais repara no
desacordo de sua presença. Em suma, a invasão
se transforma numa ocupação, sem qualquer resistência,
e a história muda de rumo, passando a enfocar o descontrole
emocional do narrador.
Tezza
Só em "O fantasma da infância", de Cristovão
Tezza, teremos essa relação entre invasor e invadido
levada a uma maior complexidade. O romance tem duas linhas narrativas,
mas aqui nos interessa apenas uma delas, a que conta a história
de um bem situado advogado que vê sua vida invadida por
um antigo comparsa da juventude - inconveniente por não
combinar com o lugar que ocupa na sociedade, perigoso por saber
demais sobre seu passado. Os problemas começam quando
André Devinne, o advogado, está lavando seu carro
no jardim de casa, junto da filha pequena, ouve uns passos desengonçados
nas pedrinhas da rua, então visualiza uma figura quase
maltrapilha e vagamente familiar, por fim, a voz inconfundível:
"Carrão, hein? Vidro fumê!" (Tezza, 1994,
15). Ele ainda tenta se fazer de desentendido, fingindo não
reconhecê-lo, mas Odair, o "fantasma da infância"
do título, não aceita entrar no jogo:
Ele já tinha posto os dois pés sujos
de barro em outro patamar da vida, olhando o gramado verde,
inclinado, até a varanda com as redes, os janelões,
um trecho da sala com reflexos coloridos de belos quadros, o
telhado tão bem encaixado como numa casinha de Walt Disney,
a delicada chaminé da lareira, e, mais acima, incrustada
no morro, a pequena construção com uma larga abertura
onde uma mulher pintava uma tela, e olhando um pouco mais alto
já se encontrava o céu, como quem estende preguiçosamente
o braço (Tezza, 1994, 16).
Temos aí a descrição, breve
e carregada de sentidos, do espaço que será invadido.
É uma casa rica, mas aconchegante, com quadros nas paredes
e uma chaminé no telhado. Para completar, a mulher pintando
uma tela e a menina que, sabemos, corre pelo gramado. O cenário
é de fantasia, harmonioso, colorido e cheio de calor,
como o desenho de uma criança. Por isso, o choque da
invasão é ainda maior. O narrador em terceira
pessoa, que tudo vê, acompanha o olhar guloso de Odair
a partir da visão apavorada de Devinne. O olhar do primeiro
"desossava, metia as mãos, a gordura no tapete,
os dedos na tinta branca, a volúpia de um tijolo que
se arranca; o olhar dele [Devinne] acompanhou o do outro, correndo
atrás, juntando pedaços, recompondo a rede e a
porta aberta e a gaveta do freezer e o tapetinho do banheiro
e, num pânico extra, escondendo Laura e os olhos da filha,
mas era inútil, porque os olhos do intruso devassavam
e devastavam" (Tezza, 1994, 16).
Mas o advogado - agora bom marido, pai carinhoso,
profissional competente - não pode fechar a porta ao
antigo companheiro, nem expulsá-lo dali, ou chamar a
polícia. O outro o ameaça pela simples presença,
o riso torto, as cicatrizes, os cabelos sujos, a perna coxa.
Cada detalhe de seu corpo fala de um tempo e de um lugar que
precisam ser enterrados para que o novo Devinne sobreviva. Por
isso, abraça-o com a falsa saudade de quem não
se vê há muito, convida-o a entrar, apresenta mulher
e filha. Aceita hospedá-lo, certo de que vai assustá-lo
com sua riqueza, fazendo-o notar-se inadequado, impróprio
naquele ambiente. E Odair, ao contrário dos marginais
de Fonseca, fica fascinado com tudo que encontra, mas, diferente
do matador de Marçal Aquino, é sensível
às discrepâncias entre seu corpo bruto (saído
há pouco da prisão, onde o próprio Devinne
deveria ter estado) e as delicadezas daquela casa.
Isso fica mais evidente quando ele entra no banheiro
do quarto de hóspedes, com seus sabonetes coloridos,
suas esponjas e cremes. É onde ele se reconhece, em contra
posição ao que o cerca: "Triste figura diante
do espelho. Tudo, cada detalhe, do trinco ao lustre de palhinha,
conspirava para que ele se tornasse pior. A força terrível
do espaço: ele existe para acolher, mas nos esmaga"
(Tezza, 1994,34). É claro que o modo como Odair se enxerga,
o pior que ele acredita ser, é uma construção
que o precede e que o constitui. Ele se vê com os olhos
de Devinne, com os olhos daqueles que possuem dinheiro pari)
andar sempre limpos, com cabelos bem cortados e dentes cuidados.
Em suma, daqueles que transformam uma situação
econômica num quadro moral, gerando violência simbólica.
Como afirma Pierre Bourdieu (1998, 19), "quando os dominados
aplicam àquilo que os domina esquemas que são
o produto da dominação ou, em outras palavras,
quando seus pensamentos e suas percepções estão
estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação
de dominação que lhes é imposta, seus atos
de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento,
de submissão".
Quando Anísio faz uma festa de aniversário
e quer a presença dos dois empreiteiros confraternizando
com ele, também está, mesmo sem se dar conta,
encenando um ato de reconhecimento, de submissão. O mesmo
pode ser dito do bandido de Rubem Fonseca que defeca sobre a
cama. Em Odair isso é trabalhado mais a fundo. Talvez
se possa dizer que esse é o centro do romance, ou, ao
menos, da linha narrativa com a qual estou trabalhando. André
Devinne tem razão ao acreditar que o intruso não
vai ficar tão confortável em sua casa quanto ele
pensa. Dos menores objetos de decoração até
os movimentos leves do casal, tudo parece estar ali lhe apontando
a inadequação. E Odair reconhece essa força,
reagindo a ela fisicamente.
Afinal, a força simbólica é
uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente,
e como que por magia, independentemente de qualquer coação
física; mas essa magia só opera com o apoio de
predisposições colocadas, como molas, na região
mais profunda dos corpos. Se ela pode agir como uma alavanca,
quer dizer, com um gasto extremamente pequeno de energia, é
porque apenas desencadeia as disposições que o
trabalho de inculcação e de incorporação
depositou naqueles ou naquelas que, graças a isso, estão
por ela capturados (Bourdieu, 1998, 44).
Isso pode ser visto durante o jantar que Devinne
e sua mulher oferecem a alguns amigos. Enquanto eles vão
chegando, bonitos, ricos e alegres, Odair os observa numa sombra
escura da varanda, desconfortável com seu cabelo mal
cortado e sua perna bamba. Ouve, encantado, a conversa frívola
e as piadas velhas, nota os gestos agradáveis, o riso
suave por qualquer coisa (Tezza, 1994,61-62). Ao ser apresentado,
já está meio encolhido em sua insignificância,
mas ainda acredita poder fazer parte daquilo. Por isso, esboça
"um sorriso intrigado, tentando acelerar a compreensão
do novo mundo, um mundo alegre" (Tezza, 1994, 61), mas
basta que ele entre na roda, com seu riso "bruto e descompassado"
(Tezza, 1994, 61) para que um silêncio constrangedor se
faça à sua volta. E aí, mesmo lembrando
do poder que possui sobre o dono da casa, sua mão treme
e ele volta a se esconder no escuro da varanda.
Bourdieu (1998,45) lembra que a gagueira, o tremor,
o enrubescimento são modos de "vivenciar, por vezes
com conflito interno e clivagem do eu, a cumplicidade subterrânea
que um corpo que se esquiva das diretrizes da consciência
e da vontade mantém com as censuras inerentes às
estruturas sociais". Ao tremer, Odair marca sua adesão
corporal às estruturas de dominação - ainda
que isso nem lhe passe pela cabeça -; ao se afastar,
reconhece a autoridade daqueles que o censuram. A partir desse
momento, não há mais muita esperança de
vir a fazer parte desse "mundo alegre" - espaço
reservado para aqueles que são iguais (4) . Daí,
o prosseguimento coerente da narrativa: Odair vai perdendo as
estribeiras, se irritando com a postura de André, até
a noite em que se embebeda e faz um escândalo num bar
da cidade usando o nome do advogado que, enfim, o mata e enterra,
com a ajuda da esposa, no belo jardim da casa, onde um providencial
poço estava sendo cavado anteriormente.
E esse é todo o espaço que lhe será
cedido, seja porque o destino dos "fantasmas da infância"
é mesmo serem soterrados um dia, seja porque a superfície
criada pelo rico advogado jamais poderia comportar o peso de
seu passado. É só depois de jogar a última
pá de terra sobre Odair que André Devinne pode
se transformar em alguém que "sente os limites confortáveis
do próprio corpo: um homem que, afinal, coincide com
o seu espaço" (Tezza, 1994, 178). Em suma, Odair
é mais do que um simples invasor, ele lembra ao outro,
o tempo inteiro, que - apesar dos ternos bem cortados, dos quadros
e dos sabonetes - as posições ali poderiam ser
invertidas. Ao matá-lo, Devinne destrói em si
aquilo que não pertence ao lugar que ocupa, por isso
se sente bem, confortável, porque seu corpo já
não transporta o Odair que ele também era.
Enfim
Das três narrativas discutidas aqui, "O fantasma
da infância" é a que explora esse confronto
entre espaços sociais diferentes com maior profundidade
e mais nuances. A invasão de Odair, ao contrário
das outras duas, põe em questão o problema do
"pertencimento", ou seja, porque uns parecem pertencer
"naturalmente" a determinados espaços e outros
não. No conto de Rubem Fonseca há apenas o que
seria a constatação de uma realidade: uns têm,
e os que não têm, destroem. Na novela de Marçal
Aquino é um pouco diferente: uns têm, outros se
apropriam (com uma facilidade um tanto excessiva). Já
no romance de Cristovão Tezza aqueles que têm o
têm por alguma circunstância (não muito lisonjeira).
E é em meio ao embate entre invasor e invadido, que percebemos
que é o dinheiro, no final das contas, o que compra o
bom gosto, a cultura artística, os gestos delicados,
a conversa agradável - tudo aquilo que costuma ser apresentado
como um dom natural das elites. Ficção na qual
André Devinne prefere acreditar, ou não sofreria
tanto com a presença de Odair, a lembrar-lhe sempre de
onde vem.
Talvez parte da diferença entre as três
narrativas, em termos de aprofundamento da discussão,
possa ser creditada aos diferentes gêneros utilizados
- é claro que um romance permite desdobramentos mais
complexos que um conto, ou mesmo uma novela -, mas é
preciso levar em consideração também as
intenções do autor. O que pode ser observado até
na escolha da perspectiva a ser adotada, No texto de Fonseca
teríamos o ponto de vista do invasor (o que pode ser
questionado, tendo em mente os inúmeros preconceitos
de classe média que transparecem nessa narrativa em primeira
pessoa), no de Aquino, a perspectiva é de um dos invadidos,
enquanto que no de Tezza temos um narrador em terceira pessoa
que, ao menos teoricamente (uma vez que há um empenho
maior na explicitação dos sentimentos de Devinne),
nos forneceria tanto o olhar do invadido quanto o do invasor.
Ao iniciar esse texto dizendo que as personagens
contemporâneas transportam o espaço em seu corpo,
não estava, obviamente, pensando num corpo biológico,
em seu traçado genético, mas num corpo tornado
social, com as cicatrizes e rasuras próprias de seu tempo
e suas circunstâncias. Ao se concentrar na descrição
desse corpo, em detrimento das ruas, casas e quartos, a narrativa
contemporânea não perde de vista sua função
representacional, apenas adensa suas possibilidades (ainda que
através do desmonte e da distorção). O
confronto entre corpos socialmente construídos para ocuparem
espaços diferentes parece uma temática oportuna
numa sociedade cada vez mais violenta e repressora. Resta saber
a posição que nossa literatura vai assumir para
reinterpretar essa realidade.
NOTAS
1 Este artigo faz parte do projeto"
A narrativa brasileira contemporânea: narrador, personagem,
espaço, tempo", apoiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa.
2 Cabe anotar que a redução
das descrições na literatura é também
efeito do surgimento da fotografia e, sobretudo, do cinema,
que forneceram ao público um enorme repertório
de imagens, bastando ao texto evocá-las.
3 É importante anotar que, apesar
de um marginal ser o narrador em primeira pessoa, a abordagem
de Fonseca reflete com clareza os preconceitos da classe média.
Sobre o problema da perspectiva social neste conto ver Dalcastagnè
4 Afinal, "só os iguais riem
entre si. Se as pessoas inferiores forem autorizadas a rir diante
de seus superiores ou se não puderem refrear o riso,
pode-se dizer adeus a todos os respeitos devidos à hierarquia".
A. Herzcn, apud Bakhtin (1987, 80).
Referências Bibliográficas
AQUlNO, Marçal. O invasor. São
Paulo: Geração Editorial, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média
e no Renascimento. Trad. de Yara Frateschi Vieira. S. Paulo/Brasília:
Hucitec/Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BOURDlEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil,
1998.
DALCASTAGNÈ, Regina. "Uma voz ao sol: representação
e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea".
Estudos de literatura brasileira contemporânea,
n° 20. Brasília, 2002, pp. 35-77.
FONSECA, Rubem. "Feliz ano novo", em Feliz ano
novo. 2ª ed., São Paulo:Companhia das Letras,
1989.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1996.
TEZZA, Cristovão. O fantasma da infância.
Rio de Janeiro: Record, 1994.
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