Material didático realizado pelas professoras Annelys Lopes Oikawa, Célia Regina Crestani e Francine Fernandes Weiss, para o Colégio OPET, de Curitiba, Paraná. Ano: 2000


JULIANO PAVOLLINI

O romance de Cristovão Tezza é escrito através de um processo de entrecruzamento de linguagens. Um personagem já adulto, em retrospectiva, vai se valer da narração em tom memorialístico para recriar seu passado. É decisivo acentuar um dos pressupostos centrais para a estruturação da narrativa: a voz que nos fala esforça-se também por fazer o que seria a história real equivaler em diversos aspectos a numerosos textos ficcionais.
Estes textos ficcionais passam a desempenhar diferentes funções na estratégia narrativa. Em alguns momentos, citam-se as ficções para aprofundar elementos da compreensão do que seria a história real. Em outros, o ficcional serve para criar uma ironia em relação ao texto que se está narrando: o falso, assim, mostra - por contraste - a pobreza do autêntico. Finalmente, o ficcional pode servir para evidenciar a impossibilidade de que consiga um narrador (qualquer narrador) de fato exprimir alguma realidade em qualquer texto que narre.

GRUPO1:

Assim, pede-se que esta primeira equipe explore a utilização que a obra faz da linguagem do cinema. Alguns aspectos são sugeridos para análise:

a) Pede-se que alguns componentes do grupo assistam ao filme "O mágico de Oz". Se houver condições, seria proveitoso que o filme fosse assistido posteriormente por toda a sala. A equipe deve preparar uma exposição em que discuta com os colegas os diversos efeitos irônicos que as alusões ao filme trazem ao romance de Tezza. Por exemplo, selecionem trechos em que o filme é mencionado e analisem para a turma, como os personagens do romance contrastam com os do cinema. Dois momentos em especial merecem ser explorados em uma conversa entre Doroti e Juliano: Em um Doroti alega possuir um apelido, em outro o narrador coloca em cena um leão. Como o nome de Doroti ajuda a entender a personagem feminina e como o leão ajuda a aprofundar a compreensão de Julliano?

b) Há uma cena no romance em que Pavolini declara desejar sair "cantando na chuva". A equipe deve destacar um integrante que ficará encarregado de assistir ao filme "Cantando na chuva". Em seguida, deve expor aos colegas em que consiste o argumento central do filme. O grupo deverá preparar uma exposição oral em que analise os diferentes contrastes entre os protagonistas do filme e os do romance em análise.

c) Em uma das cenas mais decisivas do livro, Juliano vai a um cinema em que se exibe o filme "Psicose". A bilheteira lhe diz : "Diz que é a história de um louco". Naquela noite, ao voltar para casa, Juliano acaba tendo febre e diz a respeito "Foi aquele filme de terror". A frase possui uma ambigüidade de grande rendimento para a narrativa. A equipe deve destacar um elemento para ver "Psicose". Em seguida, com a ajuda deste aluno, deve preparar uma exposição oral para a turma explicando as relações de sentido entre o filme e o romance em estudo. Também é importante explorar a referida ambigüidade e esclarecer como ela lança luzes para a compreensão do romance como um todo.

d) No penúltimo capítulo do romance, lemos: "Assim, eu me senti Rock Hudson na minha cama de príncipe, quando Doris Day entrou trazendo a bandeja inoxidável com o misto quente, a laranjada, o café com leite, o melão, e ainda o jornal dobrado. Só um grande homem seria tratado assim". Valendo-se da internet e dos computadores de sua locadora, descubram qual é a referência. Onde temos Rock Hudson contracenando com Doris Day ? Após uma sessão de vídeo, a equipe deve esclarecer à turma os sentidos que a alusão acrescenta ao romance.

e) Na mesma cena de que se extraiu o trecho acima, há uma alusão a Mazaroppi. A equipe deve destacar um integrante para realizar uma pesquisa a respeito. Após descobrir de quem se trata e assistir a pelo menos um filme em que ele apareça, pede-se que o grupo analise os sentidos contidos no trecho.

f) O trecho que segue sugere um desacordo entre o repertório cinematográfico de Juliano e o de Doroti. Esclareçam para os colegas estabelecendo relações entre os dois personagens:
"Ora, o maior desembaraço dela se devia ao fato de que ela via mais filmes do que eu - era uma delícia ouvi-la contar filmes de amor. Aliás, nós não estávamos vivendo nada daquilo; na verdade, éramos personagens de um filme em technicolor e cinemascope, daqueles inesquecíveis, cheios de paixão e suavidade, com closes e panorâmicas."

GRUPO 2:

Uma segunda corrente de sentidos presente na estruturação de Juliano Pavolini pode ser observada no aproveitamento dos contos de fadas e das narrativas para público infantil. Pede-se que esta segunda equipe explore esta intertextualidade. Sugerem-se alguns aspectos:

a) Desde o início do texto, a personagem Isabela aparece no romance como uma clara alusão ao conto de fadas Branca de Neve. A respeito, pede-se que os alunos percorram o romance observando a utilização de alguns símbolos recorrentes: a maçã, o espelho, a palavra Rainha, o gnomo (uma variante para anão), o próprio nome da personagem, suas unhas, a cama de Juliano. Como estes elementos aparecem na narrativa modelo e no texto de Tezza? Com quais personagens do conto de fadas, em diferentes momentos do texto, Isabela pode ser associada? Como esta multiplicidade de papéis ajuda a compreender os diferentes momentos da iniciação de Juliano no mundo e na vida?

b) Uma das afirmações recorrentes de Juliano a respeito de si mesmo é aquela segundo a qual ele seria um mentiroso. Em pelo menos um trecho do romance, esta afirmação é atualizada sob a forma de uma associação direta com a narrativa infantil Pinóquio. A equipe deve localizar este trecho, apresentá-lo à turma e explorar as coincidências e dissonâncias entre os dois textos. O final de Juliano Pavolini equivale ao de Pinóquio? É importante observar o modo como Pinóquio é uma narrativa em que se registra o processo de inserção no mundo adulto, com seus custos e dificuldades. Este aspecto, em especial, merece ser analisado na comparação entre os dois textos. Também é importante discutir o sentido de "mentira" em cada um dos dois textos em questão.

c) O personagem Rude aparece ao longo do romance construído de acordo com um padrão de narrativa infantil. Pede-se que a equipe observe os diferentes momentos do texto em que o personagem aparece e o modo como Juliano o descreve em cada etapa de sua própria transformação (enquanto personagem e enquanto narrador). As transformações de Rude são extremamente significativas no que diz respeito à compreensão do próprio Juliano, e do modo como sua compreensão do mundo vai sendo alterada. A equipe deve analisar estas transformações e sua contribuição para a caracterização do narrador e do personagem que ele constrói.

d) O trecho que segue revela um evidente desacordo entre o universo de Juliano e o dos contos de fadas, ou das narrativas infantis. À medida que a narrativa progride, este desacordo vai se tornando cada vez mais evidente, sobretudo para o próprio narrador. Pede-se que a equipe discuta os termos deste desacordo e evidencie em que consiste a impossibilidade de identificação do narrador com os textos infantis que ele toma como referência. Em seguida, pede-se que a equipe esclareça por que, para Juliano, inspetores escolares são assim tão "ridículos" e a escola é um "Reino da Fantasia". Como sua "realidade" consegue ser mais dura que o que vive na escola, ou do que o que se vê nos filmes de Disney?
"Era difícil conviver com pessoas normais, a um tempo brilhantes e idiotas, que aparentemente não sofriam de nenhum dos medos desse mundo. O que eu poderia fazer? Convidá-los para uma visita ao meu sótão? Apresentá-los à minha tia Isabela? Oferecer um jantar com as meninas da casa, com cerveja à vontade? No máximo, distribuía um ou outro cigarro na hora do recreio a dois ou três rebeldes discretos, enquanto contávamos piadas de sacanagem no subterrâneo do prédio, entre a cantina e a escolinha de arte, fugindo daqueles ridículos inspetores, mais inocentes que os vilões da Disney. O Colégio era isso: outro belo Reino da Fantasia, e eu gostava, a meu modo."(p. 91)

e) À medida que a narrativa avança, o desacordo com o universo da infância torna-se gritante. O trecho que segue é eloqüente a respeito. Pede-se que, com a colaboração da equipe 1, o grupo analise o modo como Juliano vê, pouco a pouco, irem desmoronando os diferentes refúgios que constrói para si mesmo, ao abrigo da realidade:
"Eu via o Castelo pegando fogo, ouvia os gritos dos mortos, e Juliano se afastando vagarosamente para seu encontro sagrado, a câmara filmando do alto, só eu lá, no meio da praça, cabisbaixo e feliz, enquanto as luzes do cinema se acendem, uma a uma. Ao final, minha silhueta no ponto de ônibus da Tiradentes, à espera da amada. Antes que a platéia esvaziasse, ainda haveria tempo para fumar um último cigarro."

GRUPO 3:

A própria literatura, no entanto, é indubitavelmente a maior fonte das referências utilizadas na estruturação do romance. Pede-se que o grupo explore algumas destas referências. As sugestões podem servir para nortear o trabalho:

a) O poeta português Fernando Pessoa escreveu um poema intitulado "Autopsicografia". O poema, sob muitos aspectos, poderia ser associado a algumas das concepções de arte e literatura que vão sendo desenvolvidas ao longo da narrativa de Juliano Pavolini. Tomando o trecho que segue como ponto de partida, o grupo deve mapear algumas das associações possíveis, assim como esclarecer as divergências entre as duas concepções.
Trecho: "Perdi minha inocência. Minha palavra é minha sedução - a cada capítulo estou mais próximo da liberdade, Clara tem poderes no presídio. Avanço dia a dia no labirinto da minha história, sempre dupla: o texto que escrevo não é o que eu vivi, e aquele que eu vivi não é o que eu pensava, mas não importa - continuo correndo atrás de mim e esbarrando numa multidão de seres. É neles, só neles, que tenho algum esboço de medida."

b) As leituras de Doroti são especialmente reveladoras e são um dos recursos utilizados para a caracterização da personagem. A equipe deve destacar um elemento que fique encarregado de verificar o que os livros de Doroti revelam a respeito dela, assim como o livro que ela escolhe para presentear Juliano. Também é importante analisar o livro que o rapaz escolhe para presenteá-la. O que esta escolha revela do modo como ela a vê?

c) Quando chega a Curitiba, Juliano Pavollini lê Seleções e Júlio Verne. Mais tarde, vamos encontrá-lo lendo, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Após uma pesquisa sobre estas três referências, o grupo deve expor à turma do que se trata e esclarecer o que as mudanças de repertório literário revelam a respeito de Juliano.

d) Há um trecho no livro em que é feita uma clara referência a Dorian Gray. A referência, apesar de breve, contribui com alguns aspectos da narrativa. A equipe deve destacar um elemento que fique encarregado de ler a obra O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Em seguida, com a ajuda do grupo, este aluno deve procurar explorar os sentidos contidos na referência.

e) Em diferentes momentos o livro menciona Oliver Twist e Olhai os lírios do campo. A equipe deve destacar dois alunos para a leitura das obras mencionadas. Em seguida, com a ajuda do grupo, o grupo deve analisar os momentos da vida de Juliano em que ocorrem as leituras e o modo como elas ajudam a entender as transformações do personagem.

f) A narrativa de Juliano Pavollini se encerra com o trecho: "Juliano Pavollini acaba aqui, em relativa paz, de certo modo melhor do que quando começou. Não tenho nada, não sou nada; mas ando com algumas idéias na cabeça." O trecho, em conjunto com o todo do romance, faz pensar em duas possíveis referências intertextuais. A primeira delas é Machado de Assis, que reaparece no livro de diversos modos. Seu Memórias póstumas de Brás Cubas encerra-se com o capítulo "Das negativas" em que o personagem enumera suas muitas negativas e apresenta um pequeno saldo positivo. A segunda é o poema "Tabacaria", de Fernando Pessoa , que se abre com a estrofe:
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Pede-se que o grupo analise para a sala possíveis implicações contidas nestas duas referências prováveis.

GRUPO 4:

Finalmente, outras leituras (não apenas ou exatamente literárias) contribuem igualmente com o vasto repertório de referências sobre o qual se estrutura o livro de Tezza. A quarta equipe vai se dedicar a estas "outras leituras".

a) Entre as páginas 36 e 38 o livro flagra Juliano entrando em contato com o novo ambiente em que viveria por um bom tempo. Não por acaso, este contato com a nova realidade e a nova vida é sinalizado por uma cena em que o rapaz encontra muitos livros, de natureza e tema diversificados. O grupo deve analisar os contrastes entre os diferentes volumes e procurar esclarecer para a turma o modo como cada um dos livros encontrados já antecipa, nesta cena de início, aspectos da vida que o rapaz passará a levar a partir de então.

b) Preocupada com a continuação dos estudos de Juliano, Isabela contrata um professor que fica encarregado de contribuir com sua preparação para um exame. Entre as matérias a serem ensinadas, o rapaz introduz Juliano no universo das leituras marxistas. A equipe deve pesquisar em que consistem os embasamentos centrais do que o professor ensina a Juliano a respeito. Em seguida deve preparar uma exposição para os colegas esclarecendo-os a respeito. Espera-se, ainda, que o grupo mostre que efeitos irônicos as idéias destes professor projetam sobre a mente de Juliano e o encaminhamento da narrativa. Um detalhe é especialmente irônico: o nome do professor. Em que consiste esta ironia?

c) Um dos elementos estruturadores do romance seria uma pretensa interlocução. Ou seja, a narrativa é escrita como se alguém fosse ouvi-la e/ou lê-la. Trata-se de uma psicóloga, Clara. Assim como Isabela e Doroti, o nome da personagem é decisivo para a compreensão de sua função no texto. Contudo, parece prudente, também nesse caso, não tentar interpretar seu sentido muito diretamente. Para analisar este nome, pede-se que a equipe localize e separe os trechos em que Juliano demonstra curiosidade a respeito da leituras psicanalíticas. Como Clara reage a respeito? Como tais leituras ajudam a entender algumas das armadilhas do texto? (É preciso fazer uma pesquisa a respeito de algumas das linhas centrais do pensamento de Freud para encaminhar esta proposta.)
O trecho também pode ajudar: "Faço duas versões de mim mesmo; para meu uso - gosto de escrever - e para Clara, que gosta de ler. Tempo não é problema; o presídio é a burocracia da eternidade. Fiquei aflito quando ela me disse que terminou o estágio, mas ela mesma se apressou em acrescentar que quer continuar trabalhando comigo. Pergunta se eu concordo, e eu concordo imediatamente. São ótimas as visitas. Ela me traz romances e contos. Eu pedi livros de psicologia, queria saber de Freud, Jung, Reich, que conheço de orelha, mas ela pondera que ainda não seria conveniente."

d) Um personagem bíblico, Labão, é evocado na página 92 do texto. O grupo deve localizar o personagem, observar o sentido contido da referência e expor aos colegas as contribuições de sentidos que a alusão acrescenta ao texto. O trecho mencionado, pelo modo como foi escrito, faz pensar, ainda, que Labão aparece no romance não apenas por sua presença na Bíblia, mas também pelo modo como Camões o menciona em um determinado poema. Com a ajuda do professor, o grupo deve localizar o poema, analisá-lo e observar se o romance parece apropriar-se mais diretamente do Labão bíblico ou do camoniano.

e) Durante o assalto em que descobre a existência da menina Doroti, Juliano Pavollini descobre também uma referência a Platão e o mito da caverna. Depois, em mais alguns momentos, o mito é retomado. Pede-se que o grupo pesquise que mito é este e que sentidos, nos diferentes momentos, ele acrescenta ao texto.



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