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Anais da 4ª Jornada de Estudos Lingüísticos
e Literários.
Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 - p. 165.
O CARETA E O PORRA-LOUCA:
DOIS AMANTES DA LITERATURA
Rita Felix Fortes
RESUMO: O propósito
deste estudo é analisar como, no romance Trapo, de Cristovão
Tezza, a literatura está investida de tal poder salvístico
que se revela capaz de revitalizar a mesquinha trajetória
de um careta professor aposentado e de redimir um jovem suicida
e porra louca.
PALAVRAS-CHAVE: Cristovão Tezza;
literatura; careta; porra-louca
No romance Trapo, de Cristovão Tezza, a estrutura
da narrativa alterna dois tipos de discursos que, encarnando,
respectivamente, a trajetória de duas personagens (Trapo
e Professor Manuel), organizam o desfecho que culmina numa espécie
de superposição discursiva.
Ao final, o imbricamento discursivo, interagindo com o universo
narrado, traz à tona a função humanizadora
da literatura, uma vez que, neste romance a literatura se constitui
o nó axial do qual vertem as pulsões de vida e de
prazer. Analisar a trajetória destas personagens, através
das representações discursivas, com base na perspectiva
lukasciana, relacionada à solidão do herói
romanesco num mundo degradado, constitui o objetivo deste trabalho.
O romance se organiza a partir de duas perspectivas antagônicas.
A primeira representada por Trapo, um típico adolescente
urbano dos anos 70, completamente imerso na ideologia contestatória
contra o sistema e no trinômio sexo, drogas e rock-'n-roll
que, na esteira do movimento hippie, deu o tom comportamental
daquela geração; a segunda - de início, diametralmente
oposta à primeira - é a de um ultrapassado e conservador
professor de língua portuguesa, incapaz de aceitar as aceleradas
mudanças sociais, comportamentais, lingüísticas
e urbanas que alteram o mundo à sua volta, enquanto ele
se exila em sua decadente casa dos anos quarenta, tão delida
quanto o comportamento reacionário de seu proprietário.
A trajetória da personagem Trapo e seu trágico fim
estão em sintonia com o desencanto da época, resultante
da repressão política e do fracassado sonho romântico
que apregoava um mundo norteado pelas relações de
paz e amor. De acordo com Heloísa Buarque de Holanda "a
nova situação será experimentada sob formas
diversas, tendendo a uma certa desarticulação no
campo intelectual e das esquerdas, onde passa a ter lugar uma
série de redefinições num clima mais ou menos
geral de perplexidade. Se, por um lado, a situação
política do país é desanimadora, por outro,
o próprio discurso e a prática das oposições
parecem vazios e desarticulados". Trapo, em sintonia com
o desencanto da chamada geração 70, emerge, como
afirma Paulo Leminski, do "lado estúpido da existência,
cozido no sarcasmo, os ambientes sórdidos, o sexo apresentado
em preto-e-branco, sem as cores do lirismo, os minúsculos
destinos sem grandeza dos simples". Entretanto, de forma
implausível e surpreendente, a trajetória do "desbundado
porra-louca" alterará em definitivo a história
do professor Manuel - um caretíssimo e alienado professor
de língua portuguesa - cuja perspectiva de mundo e forma
de narrar, antagônicas às de Trapo, acabam "contaminadas"
pelas do suicida porra-louca.
A trajetória de Trapo, o egocêntrico e apaixonado
adolescente em crise, com pretensão de reformar o mundo
e abalar os pilares da família e o sistema capitalista,
se imiscui na do misantropo professor de Língua Portuguesa,
cujo único projeto, após a aposentadoria, é
fazer dos estudos de literatura uma espécie de muralha
entre ele e o mundo. Em certa medida, o trágico suicídio
de Trapo destrói as barricadas cuidadosamente levantadas
pelo professor para protegê-lo do mundo que se transforma
rapidamente à sua volta. Os escritos de Trapo acabam por
revelar ao professor que, apesar de árdua, a vida é
uma fonte de inspiração capaz de extrapolar os limites
do imaginário.
Georg Lukács, no trabalho intitulado O romance como
epopéia burguesa, afirma que os homens modernos, diferentemente
dos homens do mundo antigo, "separam-se, com suas finalidades
e relações 'pessoais', das finalidades da totalidade;
aquilo que o indivíduo faz com suas próprias forças
o faz só para si e é por isso que ele responde apenas
pelo seu próprio agir e não pelos atos da totalidade
substancial à qual pertence". Essa incapacidade do
homem moderno de se relacionar com a totalidade do mundo está,
desde o Romantismo, na base do romance enquanto representação
moderna de anti-heróis, cuja incapacidade de adaptação
à realidade condenam-nos a vagar em um mar de incompreensão,
no qual soçobram. Ainda de acordo com Lukács, este
conflito entre o homem e o mundo moderno "deriva do fato
de a alma ser mais ampla e mais vasta do que todos os destinos
que a vida lhe pode oferecer". Embora esta afirmação
se refira mais especificamente ao Romantismo, ela se ajusta com
precisão à proposta desta análise: Trapo
é tão neo-romântico quanto o professor.
O que permite aproximar o bitolado professor aposentado - encastelado
à sua casa e aos estudos literários - e Trapo -
o tresloucado adolescente - é que ambos não suportam
confrontar a idealização utópica do que poderia
ser a vida com a "força brutal" com que esta
se revela de fato. Superficialmente, ambos foram derrotados pela
realidade. Entretanto, ao se fechar a perspectiva analítica,
fica evidente que a morte do Trapo acaba servindo de instrumento
de reintegração do professor Manuel ao fluxo pulsante
da vida.
À primeira vista, a linguagem do conservador professor
e a de Trapo são totalmente antagônicas. Como aproximar
um sistemático e metódico Dom Casmurro - com pitadas
de ironia à lá Brás Cubas - envolto num miasma
de decadência, conformismo e desencanto, de um "bicho
grilo assumido", que flutua inebriado, num mundo volátil
de álcool, drogas, sexo e, principalmente, juventude e
paixão?
Nos dois primeiros textos que abram o romance - o primeiro de
Trapo e o segundo do professor - a literatura funciona como o
ponto central para o qual convergem os interesses de ambos. Esta
representa um estado simbólico no qual o adolescente e
o velho se refugiam para adulçorar o desencanto insuportável
da realidade. A primeira carta de Trapo para a namorada Rosana
inicia da seguinte forma:
Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas
o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra.
As feras da tua família são estúpidas o
tempo todo. (...) Vou matar todos aqueles bichos, aquelas cadelas
negras, apesar da admiração que nutro pelas bestas
puras. É um cerco medieval, minha musa de castelo. E
como de tudo faço literatura, graças à
fidelidade com que desprezo a vida e conforme minha incapacidade
aberrativa de viver, acabei achando bonito aquele espetáculo
de urros e pulos, de dentes e unhas na escuridão da casa,
tudo para preservar a imaculada jovialidade dos teus dezesseis
anos. (p. 7).
A namorada, encastelada e violentamente "protegida"
pela família, remete tanto às clássicas estórias
medievais, quanto aos resquícios da família patriarcal,
tão marcantes na literatura brasileira, como atesta o poema
Orion, de Carlos Drummond de Andrade. "A primeira namorada,
tão alta / que o beijo não a alcançava, /
o pescoço não a alcançava, nem mesmo a voz
a alcançava. Eram quilômetros de silêncio.
/ Luzia na janela do sobradão". A recorrência
de Trapo à literatura resulta da sua incapacidade de lidar
com a realidade e com a vida de forma concreta, ou seja, da sua
incapacidade aberrativa de viver.
Enquanto Trapo faz do seu dilaceramento juvenil e do seu confronto
com a vida fonte de instigação, fundamental à
criação do seu mundo imaginário, o velho
professor, por razões semelhantes, percorre o caminho oposto.
Refugia-se na literatura enquanto forma de compensar a vacuidade
da sua vida "real". É o que se depreende do início
do seu diário.
Não é comum que batam à porta depois
do Jornal Nacional, quando desligo a televisão e volto
para meus livros e para as sutilezas da literatura e da lingüística,
com um prazer que nunca tive nos meus trinta anos de magistério.
Descubro que o que há de melhor, mais interessante, mais
ensinável, aos cinqüenta e tantos anos, quando nos
aposentam e nos tornamos pequenos trastes simpáticos.
Forço um pouco minha amargura, é verdade. Enfim,
um homem que só teve uma mulher e que a perdeu cinco
anos depois, e a quem faltou disposição (talento)
para se juntar a outra, e que foi se adaptando à sua
solidão empilhada de livros, um homem desses tem a obrigação
de cultivar alguma amargura - seria inverossímil o contrário,
como nos ensinam os bons romances. (p.7/8).
O cotidiano, representando pelo Jornal Nacional - forma virtual
de se tomar conhecimento do que acontece no mundo sem se estar
inserido no seu fluxo - e a rotina espartana de estudo, disfarçam
a solidão do professor, solidão esta resultante
da sua inabilidade para lidar com a vida concreta, para além
do espaço imaginário da literatura. O esmaecido
culto pela esposa - romanticamente morta na juventude - o convívio
difícil com a mãe - mescla de bruxa dos Contos de
Fadas, mãe castradora e pobre velha inconveniente, com
medo da solidão - exemplificam a inabilidade do professor
Manuel para lidar de forma concreta com as mulheres, para além
dos limites do mundo imaginário da literatura. A literatura
simboliza uma forma de vínculo com a representação
da vida, mas sem muitos dos riscos implícitos ao seu fluir
concreto.
Entretanto, como é impossível viver sem riscos,
esta mesma literatura que, até então, lhe servira
de anteparo em relação ao mundo, será o veículo
através do qual a realidade invadirá sua vida e
alterará sua monótona e solitária rotina.
Os textos do romanticamente desajustado Trapo farão com
que a vida do não menos romântico e desajustado professor
se torne poesia, permitindo que a contemple "como uma obra
de arte".
No final do romance, o professor está de tal forma tomado
pelo discurso de Trapo e, simultaneamente, incomodado e inebriado
pela perturbadora presença de Isolda e pela novidade do
convívio com Hélio, amigo de Trapo, que ele consegue
imaginar as causas do suicídio do jovem porra-louca, não
mais da sua careta perspectiva de mundo, mas como se ele fosse
o jovem que acabara de se matar. Manuel imagina a situação
na qual a família de Rosana a obriga a abortar, sua irremediável
loucura e o confronto definitivo entre ela e os pais.
Aquele belo rosto de menina, começando a nascer para
o mundo, contanto sua história, a alma aberta pela primeira
vez... e posso imaginar o terror daquela mão em garra
súbita nos cabelos, para matar, sacudindo Rosana de um
lado a outro - 'sua vagabunda, sua puta!' (grifo nosso) - e
a outra mão batendo fechada no rosto, nos olhos, no queixo,
batendo num frenesi histérico, de quem luta para esmagar
a matéria, a frágil matéria que é
nossa única marca, para sempre - 'você sabe o que
você fez, sua vagabunda!? - 'batendo para esmagar os ossos,
e com eles a memória, até que a filha se transformasse
numa pasta de sangue, só aqueles olhos, já de
vidro, já refugiados no outro lado do abismo, fitando
o rosto semelhante da mãe. (...) Descubro que minha lenta
e medida retórica envolveu Izolda por completo. - as
palavras constroem o mundo.(Grifo nosso). (p. 201-2).
O professor consegue intuir ou, pelo menos imaginar, o abalo
sofrido por Rosana quando seus pais a obrigam a abortar. Esta
violência rompe em definitivo seu parco senso de realidade.
Ele imagina, ainda, o desespero de Trapo que implicou seu suicídio.
Mas, mais que isso, ele é contaminado por sua linguagem
como atestam os palavrões dos últimos textos, exatamente
aqueles que se confundem com os de Trapo. Esta situação
é inimaginável no início da narrativa. O
professor cria um final verossímil para preencher as lacunas
da história e, principalmente, para explicar o inexplicável:
o suicídio de alguém tão jovem e prenhe de
possibilidades. A morte dos jovens provoca, sempre, um sentimento
de inconformismo e absurdo em relação à existência.
Quando esta morte ocorre por suicídio - ato voluntário
e radical de protesto e negação da vida - este sentimento
torna-se ainda mais acentuado.
Esta verossimilhança está tão bem construída
que, momentaneamente, confunde até a pragmática
Izolda de que o final criado pelo professor aconteceu de fato.
Ou seja, no interior do romance Trapo, o real e a fantasia se
misturam no final. Não apenas a história do porra-louca
adolescente alterou a história do caretíssimo professor,
como a morte de Trapo, re-insere ou, que sabe, insere pela primeira
vez Manuel na arriscada e emocionante correnteza implícita
à "travessia" da vida. Foi graças à
morte de Trapo que Izolda, Hélio, Leninha e Luci, todos
amigos de Trapo, invadem e desestabilizam a vida do professor
e lhe mostram como é arriscado e prazeroso este turbilhão.
O professor aprende, na velhice, o que Trapo sempre soubera: que
"viver é muito perigoso". Mesmo que de forma
involuntária e acidental, a morte de Trapo converte-se
em vida para o professor. É graças a ela que paira
no ar a possibilidade de um romance entre ele e Izolda; ele reencontra
o prazer de ter amigos, como Hélio, Leninha e Luci; todos
chegam até ele junto com o pacote de escritos de Trapo.
Ou seja, o professor não herda apenas os escritos do jovem
morto, mas parte da vida deste que ficara por viver.
No entanto, é sempre perigoso o ato de se integrar ao fluxo
da vida. Estes perigos advêm das várias situações
nas quais o velho professor se sente ridículo e objeto
de execração pública, das ameaças
e descortesias do pai de Rosana, do constrangimento com que o
professor lida com a dor do pai de Trapo. Há ainda aqueles
riscos positivos, aos quais estão implícitos também
os prazeres como o tumultuado convício com Izolda, a falta
de cerimônia com que Hélio invade a espartana rotina
de Manuel.
Mas o maior prazer legado por Trapo ao professor é o prazer
da criação do imaginário mundo das palavras
que, exatamente por ser ficcional, expande as dimensões
do mundo real. É nesse momento que o careta e o porra-
louca se encontram e suas histórias e seus prazeres se
misturam.
Continuo a escrever meu romance, um prazer inefável.
(...) - Izolda, que tal a gente festejar o início do
livro do Trapo? Tem uma vodca novinha no congelador, presente
do Hélio. E é das boas, de contrabando. Que tal?
Ela sorri: - Boa idéia, Manuel. Preciso beber mesmo,
e muito, pra botar a cabeça de novo no lugar. - Levanta-se,
hesita um segundo, uma inesperada timidez: - Hoje faz quarenta
dias que nos conhecemos. Vejo Izolda se afastando, as pernas
firmes e bonitas". (Grifo nosso). (p. 203-5).
Na citação acima, que fecha o romance, Cristovão
Tezza reitera a mescla discursiva entre o estilo de Trapo e do
professor. Expressões como é das boas e que tal,
plausíveis apenas nos textos de Trapo, passam gradativamente
a fazer parte não apenas dos escritos do professor, como
também do seu vocabulário oral usual. Mas, mais
que isso, altera-se também o estilo de vida do professor.
Embriagar-se de vodca contrabandeada - ao invés do enjoativo
licor de butiá da mamãe - e sentir-se muito atraído
pelas pernas firmes e bonitas de Izolda, significa que, além
do estilo literário, houve também uma grande transformação
no estilo de vida do professor. Cotejando-se o texto final aos
dois iniciais, anteriormente citados, fica evidente que, graças
à literatura, a história de Trapo desencadeia a
latente verve literária do professor e rompe a pasmaceira
de sua vida de dom casmurro aposentado e semimorto.
Cristovão Tezza se debruça sobre os aspectos mais
sombrios da mesquinhez cotidiana da sociedade contemporânea,
que faz da maturidade motivo de vergonha e escárnio ao
mesmo
tempo em que desvela, também, os desdobramentos tragicômicos
do trinômio sexo, drogas e rock-'n- roll, ou seja, o autor
se detém sobre questões que, desde as tragédias
clássicas, o "bom tom" tenta contornar.
No romance Trapo, o autor se alinha à tendência
contemporânea que concebe a arte narcisisticamente, em um
permanente debruçar-se sobre os mecanismos que a constituem.
No texto em questão, a literatura, como uma amante generosa
e promíscua, é capaz de enlevar e aproximar amados
distintos como um careta e um porra-louca, fazendo com que, em
nome desse amor, o arcaico e pós-moderno, o velho e o jovem
e até o vivo e o morto possam intercambiar os prazeres
e os riscos implícitos a esta paixão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: prosa
e poesia. Rio de Janeiro: Nov a Aguilar, 1988.
FREITAS, Armando Filho et all. Anos 70. Rio de Janeiro:Editora
Europa, 1979-1980.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. Alfredo
Margarido. Lisboa: Presença, s/d.
----. O Romance como Epopéia Burguesa. Ad Hominem.
N. 1, Tomo II, p. 87-136. São Paulo: Estudos e Edições
Ad Hominem, 1999.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas.
14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
TEZZA, Cristovão. Trapo. São Paulo: Brasiliense,
1988.
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