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A ESCRITA PATERNA E O DESVELAMENTO DE SENTIDO EM Uma
noite em Curitiba
Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea, n° 7. Brasília,
maio/junho de 2000, pp. 11-21.
Ivanilda Barbosa
Mestre em Literatura Brasileira / UnB
A consciência de si mesmo só
é possível se experimentada por contraste.
BENVENISTE
Uma carta, assim como um diário íntimo,
é a afirmação do espaço privado
da escrita. Nela cabem, por isso, a sinceridade, a confissão,
o sigilo, a autenticidade, uma vez que seu signatário
não tem a intenção de que sua escrita venha
a público. Além do caráter privado, essa
escrita, datada e assinada pelo autor, adquire valor de documento.
Ao apropriar-se da escritura íntima, o autor do texto
literário procura imprimir verossimilhança à
sua narrativa e por meio desse recurso conferir maior credibilidade
à escritura romanesca, pois o autor-narrador é
aquele que está de posse de documentos, que os leu ou
deles tomou conhecimento e os oferece ao leitor na presente
enunciação. Esse propósito, geralmente,
encontra-se explícito nos prefácios e advertências
dos livros. Em Esaú e Jacó, por exemplo,
enuncia-se: "Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe
na secretária cadernos manuscritos, rigidamente encapados
em papelão" (1). Mas não se trata de publicar
esses manuscritos tais como estão. Faz-se necessário
selecioná-los, organizá-los para o conhecimento
do leitor, como se explica no Memorial de Aires:
Tratando-se agora de imprimir o Memorial achou-se
que a parte relativa a uns dos anos (1888-1889), se for decotada
de algumas circunstâncias, anedotas, descrições
e reflexões, - pode dar uma narração seguida,
que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem
(2).
E é pela interferência desse organizador que a
narrativa do conselheiro Aires atualiza-se, liga-se à
contemporaneidade, transformando-se num romance de memórias.
O romance epistolar se insere entre as formas
do gênero que fundamentam seus efeitos de verdade na escritura
íntima. Apropriandose de uma correspondência privada,
o autor do romance epistolar não apenas oferece ao público
uma escrita particular e que se apresenta como não-fictícia.
Ele também se posiciona como alguém que violou
uma correspondência e, no momento presente, partilha com
o leitor essa correspondência que poderia, se assim o
quisesse, conservar como matéria de leitura íntima.
Partilhando-a, ele institui o seu público leitor como
cúmplice da violação do espaço privado
da escrita. A violação a torna legítima
e suficiente para justificar a importância dela para si
mesmo e para o público.
Com a quebra do sigilo, ocorre uma ruptura de
perspectiva: a situação de enunciação
do espaço privado da escrita, na carta, cede lugar à
publicidade na escrita romanesca, embora o efeito de verdade
dessa escritura continue sustentado no fato de se estar diante
de um enunciador que leu ou que possui um documento de foro
privado, logo, autêntico e crível.
A crise entre a vida pública e privada,
marcadamente do intelectual e do homem público, tem sido
motivo recorrente nos romances que se fundamentam no relato
da intimidade. Nessas narrativas, evidencia-se a ruptura das
fronteiras entre o público e o privado, e a escrita instituise
como o espaço da alteridade e da consciência de
si.
O argumento do romance Uma noite em Curitiba
(3) fundamenta-se na violação do espaço
privado da escrita. Por entre a trama amorosa em que o severo
professor Rennon acha-se envolvido, instaura-se a paradoxal
simetria de duas individualidades - pai e filho - que experimentam,
pela escrita, compreender a tensa relação interpessoal
e a crise entre "o dentro" e "o fora" do
ser humano, numa sociedade hierarquizada e opressora. A imagem
do intelectual - abnegado professor universitário, notável
por suas publicações - é desnudada pelo
filho que o avalia como pai, marido, amante e portador de um
passado que se comprime na brilhante imagem pública de
um estilista da História.
A fisionomia do professor Rennon vai se delineando
por uma superfície textual em que se alternam os planos
do discurso e da narrativa e na qual se entretecem,por meio
do discurso direto e indireto livre, os fatos relatados, as
descrições de gestos dos personagens, a fala do
pai e os julgamentos do filho.
O narrador, no segmento inicial, lança
um olhar sobre si mesmo: "Escrevo este livro por dinheiro"
(NC, 5); ,porém esse olhar está direcionado para
o exterior: "É melhor dizer logo na primeira linha
o que a cidade inteira vai repetir quando meu pai voltar a ser
notícia" (NC, 5). O enunciado primeiro fica, assim,
destituído da subjetividade do julgamento que o narrador
faz de si mesmo e pode parecer aos seus interlocutores um ato
penitencial: eu reconheço que sou a imagem que o outro
faz de mim. Mas como a razão de sua escrita é
compreender melhor os fatos e fazer conhecer a verdadeira história
de seu pai, uma eminência pública, o narrador procura
distanciar-se de si para relatar os fatos com a clareza de um
historiador, assegurando o equilíbrio da narrativa.
Vejo agora, à distância, com
a clareza sem máscara (como queria meu pai) e não
com ressentimento (como pode parecer à primeira vista),
o que foi o duro trabalho de burilar a própria forma
ao longo dos anos (NC, 6).
Ao colocar-se como um intérprete dos acontecimentos:
"Eu só quero uma coisa: entender objetivamente meu
pai" (NC, 13), o narrador opta pelo método paterno:
"eu não separo nada de coisa alguma, o que me dá
essa nitidez vagamente assustadora dos terrenos vazios"
(NC, 6). E, para assegurar a credibilidade de seu relato, invoca
o leitor a ler com ele os documentos que lhe conferem autoridade
para narrar a verdadeira história do professor Rennon:
A propósito: por questão de
método, decidimos, Fernanda e eu, transcrever integralmente
todas as cartas, intercalando-as aqui e ali, sempre que necessário,
com fatos e comentários que esclareçam as circunstâncias
do momento (NC, 16).
As escritas do pai e do filho emparelham-se na
procura do desvendamento dos sentidos. As freqüentes referências
ao ato de escrever são comuns nas duas instâncias
discursivas. Escrever as cartas é o caminho único
para o professor Rennon se apossar de si mesmo: "Só
por escrito posso me dizer" (NC, 143).
Rennon, pela escrita quer traduzir os instantâneos
que se fixaram em sua memória durante aquela passeata,
em 1969, como se a verdade neles estivesse ocultada.
Quem puxaria um canivete? Um fotógrafo
free-lance? Um aprendiz de historiador? Nunca. Que idade ele
tinha? Quantos milhares de vezes, atravessando o purgatório
dos meus vinte e cinco anos de defesa, em geral ao amanhecer,
pouco antes de abrir os olhos, eu ouvi aquela seqüência
(assustada) de diques, eu imaginei os fotogramas, pela ordem,
um a um, em preto-e-branco, em meio ao som imperial das patas
dos cavalos, todos eles, todos nós - e Maria e Frederico
na floresta do beco, inconscientemente de mãos dadas,
alguma coisa parecida com um coração fechando
a garganta - eles vão nos pegar - e eis a primeira imagem
(NC, 144).
O filho, como quem oferta um documento para a
análise e verificação, mostra ao seu interlocutor,
uma a uma, as cartas que havia encontrado nos arquivos do computador
e que custaram ao seu pai noites de insônia, de silêncio
e ausência familiar. Na tela, e agora neste livro, palavra
a palavra, a memória do professor Rennon passada a limpo.
Esta é, de fato, a carta de um historiador.
Carta no sentido mais bonito do termo: mapa. Carta na dimensão
navegante da vida. Por aqui sim, por ali não, há
recifes. Adiante, um abismo inesperado. Em seguida, dunas que
afloram na linha do mar, onde pousam aves. O que faço
nestas madrugadas sem sono, ouvindo as portas do meu filho inútil
andando pelos vazios da casa à espera que eu lhe diga
uma palavra de salvação (pobre de mim!), o que
eu faço é o mapa de mim mesmo, para maior segurança
do passo (NC, 59-60).
Rennon sente compulsão pela escrita. E
nas cartas que escreve para Sara Donovan vão emergindo
os fantasmas de um passado do qual, durante muitos anos, ele
administrou o esquecimento cuidadosamente: "Eu preciso
dizer por escrito tudo o que pensei [...]. Você é
minha exata interlocutora - mesmo que eu jamais envie essas
cartas a você" (NC, 43).
O reencontro com a atriz o impele a se lembrar
do que ele insistia em se esquecer. Sua compulsão pela
História - dos outros - era a travessia segura para que
ele não se mirasse nas águas de sua própria
história. Mas a dinâmica do imprevisível,
do difuso, do indefinível convulsiona a serenidade do
respeitado professor, e ele escreve para reorganizar o mundo,
pois "escrever é dilapidar" (NC, 42).
As camadas de tempo e espaço se entrelaçam
no discurso ora ágil e direto, ora reticente das cartas.
O espaço restrito da escrita - "estou aqui no escritório,
de roupão e chinelos, como um bom velhinho, computador
ligado (e a cabeça ligada) tentando me organizar"
(NC, 41) - contrasta com o espaço da memória por
onde o professor Rennon "navega", investiga e reconstrói,
por suas mãos, compulsivamente, o que ocultou durante
os vinte e cinco anos em que esteve "historiando o mundo
com a confortável luneta acadêmica" (NC, 89)
e que se encontra escrito no limbo da sua angústia.
O professor Rennon, autor-diretor de seu saber
e de suas emoções, em dado momento, não
consegue mais divisar os limites do palco e acaba por precipitar-se,
antes mesmo de executar um "suave arredondamento da vida".
Mas ponha-se um ator à solta: o fantasma
respira mal sem texto; ele procura na calçada o limite
do proscênio, inquieta-se com a indiferença da
platéia andando por todos os lados; corre atrás
da cortina, que não há; lembra-se de fragmentos
de texto e de gesto, todos em busca de uma impossível
unidade, de um começo, de um meio, de um fim, de um suave
arredondamento da vida, que não está em lugar
nenhum, exceto no tempo exato da peça (NC, 51).
Como um ator à solta, Rennon escreve cartas
dirigi das a Sara Donovan, sua diva reencontrada, para compreender
seu passado, seu mundo pessoal e difuso. Mas a memória
pessoal também é difusa e suas cartas mais se
assemelham a fragmentos de um discurso amoroso de um historiador
que acabou por sair dos trilhos e perder a elegância acadêmica.
Devo me dizer, porque eu não tenho
a tua força, meu amor. E, pensando bem, não é
nada. Considere, passo a passo. Você arrancou a câmara
da mão dele. Súbito, o canivete automático:
clac! Eu agarrei os ombros, e não os braços: por
que eu não morri? Ele tinha as mãos livres. Provavelmente
não era do ramo. Provavelmente, pobre coitado, ele era
um Frederico Rennon do lado de lá, sem saber nada do
que estava acontecendo, um pequeno, breve e descartável
lúmpen da periferia da repressão. De cabeça
inexplicavelmente baixa, um prato de cabelo. Um... repórter?
Ai, esse frio na espinha, esse vazio no estômago, esse
desejo de vômito, o último, o maior de todos, a
grande purgação. Eu amo você, Sara Donovan
(NC, 143).
Como um "cúmplice nato", seu
filho propõe-se "a reconhecer as emendas, o buraco,
a costura frouxa entre a alma e o gesto" (NC, 6) paternos,
e, então, escreve essa história.
Não digo essas coisas por prazer.
Eu senti cada uma das palavras que estou escrevendo agora. Conto
os fatos para melhor compreendê-los, e a compreensão
é uma atividade impiedosa. A coisa em si (NC, 102).
Instituindo Sara Donovan como sua exata interlocutora,
pois nela se fundem o seu passado e seu presente, o professor
Rennon, admitindo-se incompleto, deixa fluir em sua escrita
as suas memórias de jovem aprendiz do império
da lógica, do seu "iniciado da inteligência"
(NC, 48), quando, a régua e compasso, adquiriu a couraça
científica e sobre a qual esculpiu sua generosidade acadêmica;
mas também, trágica e ironicamente, fluem as memórias
do estudante (revolucionário?) daquele memorável
1969 , nas ruas e avenidas, por entre a cavalaria "derrubando
alguma bastilha" (NC, 93), mas que acabou "encurralado
pela violência da História" (NC, 93); um remanescente
daquela porção "minoritária, porém
atuante dos seres que retiram peças, do tabuleiro histórico"
(NC, 65); um proscrito da sua afetividade que não conseguiu
reaver nem mesmo constituindo uma família e adquirindo
notoriedade em Curitiba. Ecce homo - este é o homem que
o personagem-narrador de Uma noite em Curitiba encontra nas
leituras, também compulsivas, dessa correspondência
paterna:
Mas eu lia as cartas de novo, quase que diariamente.
Sabia já quase todas de memória. Fui bebendo,
absorvendo fundamente tudo aquilo (NC, 161).
Lendo-as, o filho descobre-se ocultado. Afinal,
o "estudante relapso, perigo social, filho ingrato e até
monstro" (NC, 12), por meio da escrita paterna encontra
sua identidade.
Elas ocultam o desejo de abrir a porta da
consciência e confessar que nada do que lá existe
merece sobreviver; e o que lá existe sou eu, é
minha irmã, é a minha mãe (NC, 22).
Ao ler mil vezes essas cartas, descobre-se herdeiro
do pai (4) e assume a função de intérprete
da história.
Agora sou obrigado a reconhecer qualidades
beneditinas no meu pai: como é difícil o trabalho
do historiador! [...] é preciso dar ao inferno dos fatos
uma interpretação, que deverá ser a verdadeira
interpretação, a interpretação indiscutível
[...].Vocês vejam a história do meu pai. Eu sei
o que aconteceu (NC, 22).
E, como o próprio pai havia escrito em
uma de suas cartas - "Longe de mim, com bastante sol, ele
haverá de brotar novamente" (NC, 121) -, o exercício
da escrita, livre da censura paterna, permite ao filho o desvendamento
de si. Mas, afinal quem é esse narrador que acusa o pai
de perverso, autoritário, mentiroso e acaba dotando o
seu estilo e método para tornar-se um aprendiz de historiador?
Com a mesma astúcia do pesquisador que estabelece os
nexos para a História, esse filho sem nome procura o
sentido para as cenas que se fixaram em sua memória naquela
noite em Curitiba.
Invadir a privacidade paterna e torná-Ia
pública, pela escrita de um livro, permite ao personagem
narrador encontrar sua identidade. Mas esse novo hermeneuta
da história, paradoxalmente, ao reconstruí-la
vai destruindo, um a um, os pilares da civilização
moderna: o império da lógica, do direito à
privacidade, do sigilo e da solidão, nos quais se sustentava
a polida imagem de Frederico Rennon. Sua morte - já desejada
pelo filho que tinha horror a estátuas - permite a concreta
violação da sua privacidade e a emergência
da escrita do filho:
A porta da memória vai se abrindo,
mas o excesso de luz ofusca; ela pisca os olhos, tentando divisar
o que vale a pena ser visto no espetáculo empoeirado
do passado (NC, 125).
Teria sido esta herança bem sucedida?
Essa indagação também seria pertinente
para o romance de Cristovão Tezza, se o relacionarmos
com a escritura memorialista precedente? Poderíamos nele
identificar as ironias da modernidade que freqüentaram
os romances de Machado de Assis, de Lima Barreto, Oswald de
Andrade? Propõe a sua narrativa uma discussão
sobre o esvaziamento dos romances alegóricos e autobiográficos
dos anos 80?
No romance de Cristovão Tezza, o enredo,
mesmo sustentando-se no argumento da violação
da correspondência privada, é ficcionalmente concebido
e não aponta para nenhuma identidade entre o escritor
e as personagens. Ao mesmo tempo, em Uma noite em Curitiba,
a escrita de si constitui-se por tensas relações
de poder. E se a memória pode se mostrar como um "espaço
de verdade", pelo olhar contemporâneo de Cristovão
Tezza, compreendemos que "se existe uma verdade, é
que a verdade é um lugar de lutas" (5) .
A intertextualidade nesse romance se estende para
além do emparelhamento das escritas do pai e do filho.
Ela evidencia-se, sobretudo, por meio da alusão, da citação
e da estilização dos discursos da Arte e da História
que se cristalizaram como o discurso da modernidade.
Um mundo melhor é uma composição
abstrata de forças objetivas, dialeticamente entrelaçadas
para o ingresso no paraíso, um parque estritamente mental.
Uma Idade Média sem injustiças, os monges estudando,
os reis governando, os vassalos auxiliando, os camponeses plantando,
as mulheres parindo, todos com seguro-saúde, seguro-desemprego,
seguro-educação. Em ordem. Virgem, sim, e daí?
(NC, 48)
Olhava para você e pensava - neutramente,
aparvalhadamente - em me tornar um cineasta, não um Glauber
Rocha da vida, mas quem sabe um diretor B da Hollywood dos anos
40, em preto-e-branco melodramático (NC, 43).
Por meio da ligação amorosa do
professor Rennon com a atriz Sara Donovan, em pleno anos 90,
ironizam-se as interpretações folhetinescas no
cinema e na TV das histórias de vida daqueles que se
envolveram na armadilha anti-democrática nos tempos da
ditadura. O folhetim Frederico e Sara Donovan não deixou
escapar nem mesmo da trágica ligação amor-paixão-morte,
invocando as obras dos autores românticos: "Quem
é você? Tentei responder ontem a essa pergunta
revendo Senhora no vídeo" (NC, 39).
A memória escrita está associada,
neste romance, à representação da realidade
que se faz por meio da fotografia e do cinema, por isso, as
constantes referências a essas duas linguagens:
passar da vida irreal para o cinema real
da televisão, este sim, concreto, inteiro, bonito, autêntico
(NC, 47).
O que eu daria para ver, uma vez só, essas três
fotos reais! O que o meu rosto dizia exatamente, assim esmagado
pelo tempo? Os outros fotogramas são imaginários,
o ponto de vista agora é só meu, uma seqüência
igualmente vertiginosa (NC, 144).
A penúltima fotografia dos meus olhos: os dois braços
esticados nos ombros dele, entre os quais a cabeça pendia
(NC, 145).
O filho, semelhante a um camera-man, procura traduzir uma imagem
da figura paterna em outra: a imagem do equilíbrio, da
completude reconhecida pela disciplina e método que se
exala no olhar, no gesto, no passo do cientista da História
vai sendo desmanchada, dolorosamente, por um processo de rememoração.
É a dissolvência do discurso da história
de si e da História dos outros que se assiste em Uma
noite em Curitiba. Uma história que, solidificada pela
linguagem, só por ela pode ser desconstruída.
Essa desconstrução confere a identidade ao filho
sem nome - o novo contador da história. Para que ele
se tornasse palavra, foi preciso que o discurso do estilista
da história se dissolvesse.
Esse romance relaciona-se a singulares momentos
da memória cultural brasileira: à década
de 60, quando os sonhos de liberdade para a nação
foram interceptados pelos atos institucionais, e aos anos 90,
quando o processo de democratização do país
parece estar em curso e no campo social observa-se o esvaziamento
do discurso neoliberal que insiste em continuar fazendo a História.
Por entre a ingênua trama amorosa em que se envolveu o
professor Frederico Rennon, a narrativa de Cristovão
Tezza provoca a leitura do discurso dos intelectuais, artistas
e cientistas da História, que continuamente são
estimulados a optarem pela falsa infalibilidade do discurso
burguês.
Notas
Este artigo recupera parte da dissertação de mestrado
Armadilha para Lamartine e Uma noite em Curitiba: interioridade
e exterioridade no espaço da memória, orientada
pela profa. Maria Isabel Edom Pires e defendida na Universidade
de Brasília em 1999.
1 ASSIS, Machado de. Obras Completas, voI. I.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 944.
2 Id., p. 1094
3 TEZZA, Cristovão. Uma noite em Curitiba.
Rio de Janeiro: Rocco, 1995. Ao longo do texto, as referências
ao livro serão dadas com a abreviatura NC.
4 "A herança bem sucedida é um assassinato
do pai realizado com a injunção do pai, uma superação
do pai destinada a conservá-lo, a conservar seu 'projeto'
de superação, que, como tal, está na ordem,
na ordem das sucessões." BOURDIEU, Pierre "As
contradições da herança", em UNS,
DanieI. Cultura e subjetividade: saberes nômades, Campinas:
Papirus, 1997, p. 9.
5 BOURDIEU, Pierre. "A dupla ruptura", em Razões
práticas sobre a teoria da ação. Campinas:
Papirus, 1996. p. 83.
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