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REVISTA CULT
Nº 73 - 2003 - pp. 22-24
LIÇÃO DE MÉTODO
Bakhtin e a poesia
José Luiz Fiorin
Entre a prosa e a poesia, do romancista e ensaísta
Cristovão Tezza, desvela as sutilezas da obra do lingüista
russo e clarifica os conceitos de monologismo e dialogismo, mostrando
que em Bakhtin o conceito de poesia está no horizonte de
sua
definição do discurso romanesco
Mikhail M. Bakhtin (1895-1975) é um dos mais influentes
teóricos da linguagem do século XX. Diferentemente
de outros, no entanto, ele não mudou paradigmas apenas
da Lingüística ou somente da Teoria da Literatura,
mas alterou radicalmente a forma de ver o fenômeno da linguagem
em sua completude e em sua concretude. Ele não é
um lingüista no sentido especializado que se dá hoje
a essa palavra nem um teórico da literatura no sentido
estrito que se atribui atualmente a esse termo. Bakhtin é
antes um filósofo da linguagem, ou melhor, um filósofo,
em cujo projeto intelectual a linguagem tem uma dimensão
importante.
Bakhtin vinha produzindo suas obras desde os anos 20 do século
passado. No entanto, só se tornou conhecido no Ocidente
a partir dos anos 60. A tradução de seus livros
não obedeceu à cronologia de sua produção,
o que levou a determinadas reduções de seu pensamento.
Apesar disso, desde que foi conhecido, produziu um deslumbramento
nos estudiosos da linguagem. Talvez esse encantamento e o desconhecimento
da obra integral do autor tenham levado à utilização
avulsa de certos conceitos, que ganharam um sentido muito diferente
do que tinham em sua obra. Foi o que aconteceu, por exemplo, com
os conceitos de polifonia, carnavalização e dialogismo.
O princípio unificador da obra de Mikhail Bakhtin é
a concepção dialógica da linguagem. O teórico
russo enuncia esse princípio e, em sua obra, examina-o
em seus diversos ângulos e estuda detidamente suas diferentes
manifestações. Se fôssemos um pouco mais longe
no alcance da obra de Bakhtin, diríamos que esse princípio
é constitutivo de uma antropologia filosófica e
que a linguagem é um dos lugares de sua realização.
Segundo Bakhtin, a língua, em sua "totalidade concreta,
viva", em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica.
Essas relações dialógicas não se circunscrevem
ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao contrário,
existe uma dialogização interna da palavra, que
é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre
e inevitavelmente também a palavra do outro. Isso quer
dizer que qualquer pessoa, ao falar, leva em conta a fala de outrem,
que está presente na sua. O dialogismo não pode
ser pensado em termos de relações lógicas
ou semânticas, pois o que dialoga no discurso são
posições de sujeitos sociais, são pontos
de vista acerca da realidade, são centros de valor. Bakhtin,
ao explicitar que o fundamento da discursividade, o modo de funcionamento
da linguagem, é o dialogismo, mostra que ele tem um caráter
constitutivo em toda produção lingüística.
Esse dialogismo revela-se na bivocalidade, na polifonia, no discurso
direto, indireto e indireto livre, etc.
Na obra bakhtiniana, há uma questão que tem intrigado
todos os estudiosos: o conceito de poesia. Bakhtin vai opor a
poesia ao romance, mostrando que aquela tem como característica
básica a centralização, enquanto este se
distingue pela descentralização. O romance é
plurilíngüe, enquanto a poesia requer "uma uniformidade
de todos os discursos, sua redução a um denominador
comum". Enquanto o discurso romanesco acolhe as diferentes
falas e as diferentes linguagens, constrói-se na diversidade
de vozes, na diversidade de discursos, na diversidade de maneiras
de dizer, o discurso poético é privado de qualquer
interação com o discurso alheio, de qualquer olhar
para o discurso do outro. Diz o autor russo que o romance é
expressão de uma concepção galileana da linguagem,
enquanto a poesia exprime uma compreensão ptolomaica da
linguagem. Essa concepção bakhtiniana foi traduzida
da seguinte maneira: o romance é dialógico e a poesia,
monológica. Como os anseios de nosso tempo nos levam a
buscar as liberdades individuais, a contestar os cânones
e as identidades, a relativizar as verdades, um valor "abateu-se"
sobre os conceitos de dialogismo e monologismo. Aquele é
moderno, abrangente, democrático, enquanto este é
tradicional, restrito, autoritário. Se o romance é
dialógico, ele carrega todos os traços de positividade,
enquanto a poesia, sendo monológica, é vista como
algo negativo. Pensada dessa maneira, a concepção
bakhtiniana de poesia incomodava bastante os estudiosos da literatura.
O senso comum acadêmico resolveu a questão dizendo
que Bakhtin era um importante teórico do romance, mas que,
como não tinha dedicado à poesia nenhum estudo maior,
não tinha analisado esse "gênero" adequadamente.
E não o fez, porque não tinha especial apreço
pela poesia, não a tinha em alta conta, tomava-a por um
gênero menor. Ademais, sua concepção de linguagem
é incapaz de tratar da poesia, pois só responde
satisfatoriamente a questões da prosa romanesca, não
sendo apta a perceber as especificidades da poeticidade.
A obra de Cristóvão Tezza, um dos mais importantes
romancistas brasileiros contemporâneos, propõe enfrentar
a complexa questão da concepção de poesia
em Bakhtin, afrontando a opinião, exposta acima, do senso
comum acadêmico e mostrando seu equívoco.
A obra Entre a prosa e a poesia divide-se em quatro partes. Na
primeira, denominada Mikhail Bakhtin: a difícil unidade,
o autor expõe uma série de conceitos e elucida um
conjunto de questões para que se possa compreender adequadamente
a filosofia bakhtiniana da linguagem. Na segunda, intitulada A
poesia segundo os poetas, examinam-se as imagens que os poetas
fazem da poesia. Irrompem à cena Octavio Paz, Eliot, Brodsky,
Valéry, Pound, Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
entre outros. A imagem da poesia vai sendo construída,
com os traços do ritmo, da antigüidade, da superioridade,
da condensação, da auto-suficiência, da não
utilidade, da negação da prosa. Na terceira parte,
chamada O formalismo russo, analisam-se minuciosamente as teses
dos formalistas russos com quem Bakhtin, numa demonstração
do acerto de sua concepção dialógica da linguagem,
dialoga na elaboração de seus conceitos de romance
e poesia. Sem entender esse diálogo não se pode
compreender a concepção bakhtiniana de discurso
literário, discurso romanesco, poesia, etc. Na quarta,
nomeada A hipótese de Bakhtin, estuda-se o conceito bakhtiniano
de poesia.
Cristóvão Tezza começa por limpar toda a
ganga "ideológica" que cerca os conceitos de
monologismo e dialogismo, mostrando que, em Bakhtin, eles não
têm os traços de positividade e de negatividade que
lhes foram atribuídos. Mostra ainda que, embora a poesia
não tivesse merecido de Bakhtin um estudo mais longo, seu
conceito de poesia está no horizonte da definição
do discurso romanesco, que um não pode ser pensado sem
o outro. Com a paciência do conceito, vai desvelando os
diferentes planos teóricos em que Bakhtin trabalha o conceito
de dialogismo: o da natureza da linguagem e o de sua realização
estética. A poesia é dialógica na medida
em que é um fenômeno de linguagem, mas não
o é enquanto fato estético. O monologismo da poesia
é visto, assim, não como falta, defeito, carência,
mas como uma das expressões históricas do discurso
literário. Em Bakhtin, "a distinção
entre o estilo prosaico e o estilo poético se faz numa
relação quantitativa - para Bakhtin, não
há nenhuma 'essência' poética ou prosaica,
mas diferentes intensidades na relação do discurso
- na vida do momento verbal - entre as diferentes vozes participantes.
Se de um lado o traço plurilíngüe, isto é,
'a incidência viva de diferentes centros de valor no mesmo
momento verbal', é o motor da significação
prosaica, no seu limite máximo, de outro, no seu limite
mínimo, 'a linguagem poética em seu sentido estrito
requer uma uniformidade de todos os discursos, sua redução
a um denominador comum'". (p. 241). A palavra poética
tem um centro de valor bem definido, que se faz sempre com a máxima
autoridade semântica, não olhando para o discurso
alheio. A poesia é o "gênero" em que há
uma fronteira nítida entre a voz do poeta e a voz dos outros.
Todo seu arsenal de formas convencionais (ritmo, rimas, versos,
estrofes, etc.) não é senão uma estratégia
de isolamento da voz do poeta. Só no monologismo a autoridade
poética pode instaurar-se sem dissolver-se na descentralização
do discurso prosaico. Dentro do pensamento bakhtiniano a poesia
só pode ser entendida como centralizadora e "monológica".
E nesse ponto a concepção bakhtiniana de poesia
encontra-se com a imagem que os poetas tem do fazer poético.
Nesse caminhar com vistas a uma compreensão segura do conceito
de poesia em Bakhtin, Cristóvão Tezza vai pontilhando
uma série de temas: a chamada crise de poesia, a prosa
poética, a prosificação da poesia, etc. Insistimos
muito no fato de que Cristóvão Tezza ilumina o conceito
de poesia em Bakhtin, porque essa noção, como dissemos
acima, não tem sido bem compreendida. O livro Entre prosa
e poesia, no entanto, à medida que vai desvelando todas
as sutilezas do pensamento bakhtiniano, vai lançando luz
também sobre a concepção que Bakhtin tem
do romance.
Cristóvão Tezza, com seu minucioso trabalho de compreensão
do conceito de poesia dentro da arquitetura do pensamento bakhtiniano,
mostra que não há nenhum julgamento de valor em
conceitos como dialogismo e monologismo, centralização
e descentralização. Por conseguinte, dizer que a
poesia é "monológica" não significa
considerá-la inferior, não democrática, etc.
Seu trabalho mostra a necessidade de compreender os conceitos
bakhtinianos no interior de sua filosofia da linguagem. É
assim não só um trabalho sobre os conceitos de prosa
e de poesia, mas é também uma lição
de método para todos os estudiosos da obra de Bakhtin.
José Luiz Fiorin
professor do Departamento de Lingüística da USP, autor,
entre outros, de As astúcias da enunciação,
Lições de texto e Para entender o texto,
todos pela editora Ática.
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