O ESTADO DE S.PAULO - Caderno 2
São Paulo, 5 de outubro de 2003


Tezza discute com brilho as idéias do russo Bakhtin


Escritor brasileiro analisa o pensamento de um dos maiores teóricos do século 20

BORIS SCHNAIDERMAN
Especial para o Estado

O livro de Cristóvão Tezza, Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo (Rocco, 320 págs., R$ 35), situa-se evidentemente numa faixa, intermediária, de ensaio e tratado teórico de literatura. Autor de uma obra considerável como ficcionista e de muitos estudos universitários, seu texto caracteriza-se pelo brilho da exposição e pela segurança com que defende seus pontos de vista, aliás sedimentados num afã de muitos anos no trato dos temas abordados.

Utilizando uma extensa bibliografia, que abrange, além do português, obras em espanhol, italiano e inglês, o autor demonstra, ao mesmo tempo, uma cautela salutar em relação aos textos consultados. Temos um bom exemplo disso no modo como ele utilizou a tradução norte-americana de Bakhtin que recebeu ali o título de Art and Answerability, livro editado pela University of Texas Press, de Austin, em 1990. Mesmo sem recorrer ao original russo, ele percebeu que havia algo errado com esse título, pois nele Bakhtin faz muita ênfase na "responsabilidade" e não apenas na "respondibilidade". O fato decorre de uma dificuldade na tradução do russo para o inglês. A palavra russa otviétstvienost, responsabilidade, liga-se pela etimologia com otviét, resposta, ao que Bakhtin alude em seu primeiro trabalho publicado, o miniensaio Arte e Responsabilidade, 1919, sentido este que, na realidade, está embutido na palavra. Em português, a tradução como "responsabilidade" nos dá a mesma correspondência, graças à relação com o latino "responsum".

Mas, em inglês, temos duas palavras diferentes: responsability e answer. E é realmente notável que o autor tenha percebido este fato, mesmo sem recorrer ao original russo, conforme se constata pela nota 56 da pág. 298.

O livro faz ênfase na contribuição de Bakhtin à filosofia, o que está de acordo com a noção que se tem hoje, depois da divulgação dos trabalhos filosóficos bakhtinianos, bem posterior, no Ocidente, à publicação de seus livros sobre Dostoievski e Rabelais. Basta lembrar, neste sentido, que os recentes dicionários de filosofia, publicados fora da Rússia, têm geralmente verbetes dedicados a ele, enquanto os dicionários russos (pelo menos os que cheguei a consultar) não o incluem. Seria isto devido ao feroz antimarxismo desses livros? Aliás, a relação de Bakhtin com o marxismo é um tanto difícil de precisar.

Não me parece correta, porém, a afirmação de Tezza de que "Marx está praticamente ausente da obra de Bakhtin" (pág. 29). Basta lembrar certas passagens do plano de reformulação de seu livro de 1929 sobre Dostoievski e que resultaria em 1965 em Problemas da poética de Dostoievski. Lemos neste projeto:
"O capitalismo criou as condições para um tipo peculiar de consciência solitária e sem saída. Dostoievski desvenda toda a falsidade dessa consciência, que se move num círculo vicioso.
Daí a representação dos sofrimentos, humilhações e do não-reconhecimento do homem na sociedade de classes. Tiraram-lhe o reconhecimento e o nome.
Encurralaram-no numa solidão obrigatória, que os insubmissos procuram transformar numa solidão orgulhosa (prescindir do reconhecimento dos demais)".

Sem dúvida, a crítica literária marxista atingiu pouquíssimas vezes este nível de penetração e contundência. À luz desse texto, tornam-se mais explícitas e motivadas as citações de Marx e Engels que lemos no livro sobre Rabelais. Está claro que isto não anula as suas posições neokantianas nem a sua religiosidade, mas são elementos que nos ajudam a compreender um pouco melhor esta personalidade complexa e multiforme que foi Mikhail Bakhtin, o pensador perseguido pelo sistema e que, ao mesmo tempo, criava condições para a sua fundamentação teórica.

Tezza escreve com muita propriedade (pág. 47) que "há uma intrigante - e atraente - dimensão utópica no projeto de Bakhtin, e talvez se deva a essa intuição complexa a continuada e crescente atração que sua obra tem exercido ao longo de décadas". Pois bem, este aspecto da obra de Bakhtin se torna ainda mais incisivo e explícito na base de um trabalho publicado só recentemente e ao qual Tezza certamente não teve acesso porque ele não aparece nas traduções utilizadas por ele, embora estas sejam quase exaustivas.

Trata-se dos apontamentos para um estudo sobre Maiakovski, publicados pela primeira vez em livro no volume V das Obras Reunidas de Bakhtin, em sete volumes, atualmente em curso de publicação pelo Instituto Máximo Górki de Literatura Universal de Moscou, e que saiu em 1997. Na realidade, esses apontamentos são de tamanha riqueza e exuberância que certamente poderiam originar um livro.
Bakhtin vê em Maiakóvski a expressão de "um novo pathos e uma nova monumentalidade" e "a heroização do que é contemporâneo". Segundo ele, pela primeira vez, o grito das ruas, típico da sátira menipéia e da obra de Rabelais, erguia-se até o grito-slogan. E isto, afirma ele, somente se tornou possível na Rússia Soviética.

Mas este inédito de Bakhtin nos reserva mais surpresas. Elas aparentemente desmentem outras afirmações suas, mas na realidade são outros momentos de reflexão, o que é típico de sua obra: depois de construir uma sólida argumentação em determinado sentido, ele nos dá outra construção a partir de outros pressupostos. Cristóvão Tezza tem páginas brilhantes sobre a voz do poeta, que, na interpretação de Bakhtin em vários textos, deve ser soberana e única na obra em verso, o que seria uma diferença essencial em relação à prosa, mas nos apontamentos sobre Maiakóvski, este aparece como expressão de sliiânie s clássom, isto é, "fusão com a classe".

Aliás, toda a obra de Maiakóvski é um desmetido à noção de uma condição privilegiada de poeta. "O meu trabalho/ a todo/ outro trabalho/ é igual", escreveu ele no poema Conversa Sobre Poesia com o Fiscal de Rendas, tradução de Augusto de Campos, no livro de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, Maiakóvski - Poemas, publicado pela Perspectiva. A própria concepção que ele tinha de linguagem poética está ligada a essa postura.
"Não queremos saber de nenhuma diferença entre a poesia, a prosa e a linguagem prática", escreveu ele no texto Nosso Trabalho Vocubular (1923), referindo-se ao grupo "cubo-futurista", e que aparece traduzido em meu livro A Poética de Maiakóvski através de sua prosa, igualmente da Perspectiva.

Esta posição, evidentemente, chocava-se com as concepções dos teóricos do "formalismo russo", e que estão muito bem descritas no livro de Tezza.
Aliás, há registro de discussões bastante acirradas sobre esse tema em reuniões do Círculo Lingüístico de Moscou, das quais o poeta chegou a participar.
Se o nosso ensaísta define bem a posição dos "formalistas" em relação às diferenças entre poesia e prosa, se ele chega a afirmar que "a influência do movimento, com relação à prosa, não foi desprezível" (pág. 132), faltou assinalar, no meu entender, algumas análises realmente magistrais de obras em prosa, como foi o caso da grande contribuição de B. Eichenbaum aos estudos tolstoianos, reconhecida hoje em dia pelos que se dedicam ao tema.
Poesia e prosa - Há um outro assunto interessante a debater. Uma parte considerável do livro é dedicada à diferença entre poesia e prosa, e o autor afirma, na base de uma série de afirmações de poetas e pensadores, que há uma "presunção de superioridade" em relação à poesia. Os exemplos citados no livro são ricos e eloqüentes. Mas, penso eu, existe o reverso da medalha.

Não seria difícil enfileirar outras tantas citações, também brilhantes e incisivas, no sentido da indefinição dos limites entre a poesia e prosa.
Parece-me impressionante a posição de Boris Pasternak, que via no poético algo inerente ao mundo, à natureza, aos objetos. Assim, o seu poema Definição de Poesia inicia-se com o verso "Um risco maduro de assobio" e em outro poema, Poesia, insiste em que ela está nos objetos mais corriqueiros, no sofrimento e na angústia ou nas alegrias humanas (ambos foram traduzidos por Haroldo de Campos e figuram na antologia Poesia Russa Moderna, de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, cuja sexta edição saiu pela Perspectiva). Aliás, ele reafirmou esta proximidade entre poesia e prosa em sua intervenção no 1.º Congresso dos Escritores Soviéticos, em 1934.
Não faltariam também afirmações no sentido da primazia da prosa literária em relação à poesia. Eis, por exemplo, como Borges se referiu a esse tema, numa entrevista com Amélia Berili, publicada em 1984 em La Prensa, de Buenos Aires: "A diferença entre as formas não é importante. Não sei se há uma diferença essencial entre a música e a poesia, ou entre a poesia e a prosa.

Segundo Stevenson, o que chamamos prosa viria a ser a mais complexa forma de poesia". (Entrevista reproduzida por Mário Hernández na publicação Silva Menor del Lugar de Torrentes, agosto de 2002).
Em suma, temos no livro de Cristóvão Tezza um convite instigante ao diálogo e ao debate e, certamente, um dos pontos altos de nossa ensaística atual.

Boris Schnaiderman é escritor e tradutor



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