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FOLHA DE S.PAULO - Ilustrada
São
Paulo, 20 de setembro de 2003
ENTRE A PROSA E A POESIA
Obra de Cristovão Tezza analisa Bakhtin
sob a luz do estudo científico da literatura
Tese nos vacina contra a desmesura
formalista
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Especial para a Folha
A pergunta por aquilo que define a poesia da prosa não
é ocupação bizantina de uma crítica
literária com mania taxonômica, vocacionada para
Instituto de Pesos e Medidas, nem ingenuidade bruta de algum Monsieur
Jourdain redivivo. Por mais que a moderna ruptura de gêneros
tenha fermentado uma criativa confusão em torno do assunto,
poesia e prosa são conceitos que ainda ordenam nosso repertório
de leituras, orientam nossas escolhas, armam ou desarmam nossas
expectativas. Mas falar de prosa e poesia como noções
estanques e essencializadas, enobrecidas pela antiguidade do uso,
não se sustenta. Uma contínua revisão crítica
faz-se necessária.
Romancista catarinense radicado em Curitiba, professor de linguística
na Universidade Federal do Paraná, Cristovão Tezza
fez de "Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo
Russo", originalmente sua tese de doutorado, defendida na
USP em 2002, uma tentativa respeitável de aproximar-se
do vespeiro teórico de um ponto de vista original: o que
teria a acrescentar a este debate a obra de Mikhail Bakhtin (1895-1975),
reconhecidamente um dos grandes pensadores do romance no século
passado, mas que muito pouco escreveu sobre a lírica?
Contra o pano de fundo de uma imagem mítica do fenômeno
poético (linguagem extraviada, pura, inutensílio),
recomposta a partir da compreensão manifesta que poetas-críticos
como Valéry, Eliot, Pound ou Paz têm de seu ofício,
é esta questão que orienta Tezza em seu ensaio.
A obra bakhtiniana paga o preço de seu brilho excepcional
e das circunstâncias atravessadas de sua divulgação
no Ocidente, sob o peso da censura soviética, e perturbada
pelo sucesso estrondoso de seus livros sobre Dostoiévski
e Rabelais. Polifonia, dialogismo e carnavalização
foram convertidos em conceitos abstratos, ferramentas críticas
instrumentais, aplicáveis a torto e a direito. Desta leitura
seletiva e pragmática resulta sua assimilação
equívoca, como mostra Tezza, aos teóricos do formalismo
russo e a dificuldade de apreensão de uma dimensão
filosófica, mesmo que apenas esboçada, de seu projeto
intelectual para além da crítica literária
e da linguística.
Não é dos menores méritos do livro apresentar,
didaticamente, os meandros deste complexo edifício teórico
que resumimos sob o rótulo Bakhtin, incluindo publicação
tardia de textos programáticos (quase meio século
depois de concebidos), a colaboração estreita com
Valentin Voloshinov e Pavel Medvedev (a ponto da incerteza da
verdadeira autoria de livros assinados por ambos, possíveis
disfarces do autor), que constituíram seu círculo
próximo. O caminho escolhido é um confronto com
as posições teóricas dos formalistas de Moscou
e São Petersburgo em busca de tornar mais "científico"
o estudo da literatura, posições reconstruídas
no estudo com igual cuidado de contextualização
(ao lado de quem e contra quem se afirmam essas idéias).
Tezza esmiuça a ótica formalista, discutindo conceitos-chave
como o estranhamento ou princípio de oposição
fundamental entre a língua corrente (prosaica) e a linguagem
poética, esteticamente carregada, o lugar do paralelismo
na poesia, sublinhando o que parece ser a consequência involuntária
do inegável ganho representado pela investigação
da obra de arte como organismo autônomo, estrutura que se
pode conhecer em seu funcionamento.
É justamente a perspectiva bakhtiniana que aqui põe
a nu esta insuficiência, apontando sua desconsideração
de aspectos essenciais no fenômeno literário, quais
sejam, sua natureza valorativa, uma dimensão histórica
inalienável e, o mais importante, sua vocação
dialógica de berço, orientada para o encontro de
múltiplos sujeitos historicamente determinados. O reparo
não é pequeno e dele se seguem muitas derivações.
Tomando poesia e prosa como polaridades que admitem infinitas
combinações entre os extremos, Bakhtin procurará
demonstrar que a linguagem poética tende a uma centralização
monológica do discurso, construindo-se como a afirmação
unitária, não apenas do ponto de vista estilístico,
mas da afirmação de um único centro de valores,
ao contrário da prosa. A hipótese abre caminho para
pensarmos o namoro da poesia contemporânea com o prosaico
em quadro mais amplo, por exemplo, mas, antes de mais nada, nos
vacina contra a desmesura formalista nos estudos literários,
coisa que este ensaio faz com clareza e elegância.
Fábio de Souza Andrade,
37, é professor de teoria literária na USP, autor
de "Samuel Beckett - O Silêncio Possível"
(Ateliê)
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