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O GLOBO - PROSA & VERSO
Rio de Janeiro, 2 de agosto de 2003
BAKHTIN REVISITADO
WILSON MARTINS
Cristovão Tezza oferece boa introdução
à obra do crítico russo
Em nossas bancas de doutoramento na New York University, meu
colega John Coleman (autor de um livro sobre Eça de Queiroz
e o realismo europeu) perguntava às vezes ao candidato:
"Qual é a tese da sua tese?". De fato, as chamadas
"teses" universitárias são geralmente
dissertações (terminologia corrente nas universidades
norte-americanas), pressupondo-se que tragam alguma contribuição
original ao estudo de obras, autores e movimentos literários.
É nessa linha que se situa o trabalho em que Cristovão
Tezza retoma a recapitulação de uma história
que, em termos de interesse crítico, já se tornou,
ela mesma, puramente histórica ("Entre a prosa e a
poesia: Bakhtin e o formalismo russo". Rio: Rocco, 2003).
Tempo houve em que a simples menção do nome de
Bakhtin "evocava uma aura talismânica"; ainda
por ocasião de sua morte, em 1975, ele era "objeto
de culto na União Soviética, culto que, nos anos
de 1980, se espalhou pelos Estados Unidos, com escala em Paris.
Em certa medida, essa fase está encerrada na Rússia
e nos países ocidentais, embora nestes últimos anos
os especialistas de Bakhtin se mostrem mais ativos do que os soviéticos
na difícil tarefa de lhe avaliar o legado" (Gary Saul
Morson & Caryl Emerson. "Mikhail Bakhtin: creation of
a Prosaics". Stanford, CA: Stanford University Press, 1990).
Tarefa menos difícil nele mesmo do que pelas "interpretações"
a que o submeteram ao longo dos anos: tradutores e resenhistas
têm imposto sobre ele moldes de leitura radicalmente diferentes,
descrevendo-o como estruturalista e pós-estruturalista,
marxista e pós-marxista, teórico do ato de fala,
sociolingüista, liberal, pluralista, místico, vitalista,
cristão e materialista. Para citar apenas um exemplo, Julia
Kristeva - canal precoce e influente do pensamento de Bakhtin
no oeste - dele se apropriou a princípio para o alto estruturalismo
e depois para a intertextualidade, apropriações
ambas que oferecem um Bakhtin "francês estranho em
espírito a numerosas versões na Alemanha, nos Estados
Unidos e na Rússia" (Morson/Emerson).
É uma história de anacronismos, ambigüidades
e desleituras, na qual o livro de Cristovão Tezza pode
ser visto como uma boa introdução didática
- que é ao que o pobre Bakhtin acabou reduzido: é
hoje matéria de aula nos currículos escolares, aliás
menos "avançados" do que se presumem. A "tese"
de Cristovão Tezza, revelada de passagem num momento bastante
avançado da dissertação, é a distinção
entre poesia e prosa, na qual os formalistas, "para o bem
ou para o mal, terão uma relevância absoluta".
Entre eles, de um lado, e Bakhtin, de outro, houve qualquer coisa
como uma especialização instintiva ou divisão
de trabalho, o que, bem entendido, só podemos perceber
em perspectivas retrospectivas: "Do ponto de vista temático,
não há o que discutir - a prosa foi o grande tema
da obra de Bakhtin, o seu eixo central, o ponto de encontro de
todas as suas considerações filosóficas e
literárias".
Tanto assim que Morson e Emerson propuseram a criação
de uma Prosaica, correspondente simétrico e complementar
à Poética dos formalistas. Essa é a tese
que bem poderia ter sido a de Cristovão Tezza, realidade
implícita na obra de Bakhtin, definida como uma "séria
e abrangente teoria da literatura, privilegiando a prosa e o romance,
única e original criação de Bakhtin".
Devemos nos premunir, entretanto, para não tomá-la
como um dogma, mas antes como uma variante de investigação.
Chega a ser aflitiva a perplexidade com que os sutis formalistas
de ontem e de hoje enfrentaram o problema, muitas vezes perigosamente
próximos de resolvê-lo, quando a resposta já
havia sido dada no livro esquecido de Gustave Lanson sobre a arte
da prosa: o ritmo e, por conseqüência, a métrica,
ensinava ele, "são as qualidades eminentes que fazem
eminentes os prosadores eminentes". A prosa faz-se com uma
sucessão de versos de ritmo irregular, enquanto a poesia
se caracteriza pela métrica deliberada e ritmo regular
(ou "previsível"). Qualquer frase bem escrita
equilibra-se ao redor de um eixo que "pondera" em geometria
variável os segmentos anterior e posterior.
Assim, tecnicamente, a prosa se distingue da poesia, mas não
do verso, tanto que os formalistas se perderam nas alusões
à "prosa artística" que é coisa
completamente diversa. A prosa do romance não é
"artística" mas "prosaica", se pudermos
completar a lição de Morson e Emerson pela de Lanson,
"artística" sendo a prosa simbolista e impressionista
que os formalistas, precisamente, execravam. Resta saber, bem
entendido, se essas singularidades evanescentes e cambiantes podem
ser percebidas em domínios lingüísticos diferentes,
isto é, se as traduções não perdem,
por necessidade, o que cada sistema carrega como sugestões
subliminais. Em outras palavras, se nos podemos integrar no universo
espiritual da língua russa, transporto para outros, digamos,
o francês, o inglês ou o italiano em que Bakhtin foi
lido nos países ocidentais (e em que foi lido por Cristovão
Tezza).
Tomemos, por exemplo, slovo, "realidade lingüística"
como a chama Julia Kristeva, cuja tradução imediata
e corrente é palavra, sendo possível entendê-la,
em conotação arcaica e metafórica, como discurso,
ou seja, o Verbo do vocabulário bíblico. Tais implicações
desaparecem na passagem para outras línguas, mas permanecem
no subconsciente ancestral do leitor russo. Outro exemplo: Tezza
conserva a palavra "Poética" no título
do livro de Bakhtin, palavra que não constava da edição
original. Trata-se, é evidente, de uma "contaminação"
formalista que desfigura a natureza de um trabalho dedicado à
prosa.
Empregado a todo propósito e até sem propósito
nenhum, o conceito de carnavalização corresponde
à "festa dos loucos", bem conhecida dos medievalistas.
É um daqueles casos em que uma obra parece mais original
do que efetivamente é, por desconhecimento do que a precedeu
na história literária. Reconheça-se, porém,
a crédito de Bakhtin, o "achado" da palavra prestigiosa
que jamais teria ocorrido no passado aos eruditos do medievalismo,
cujos trabalhos, aliás, ele não ignorava.
Haverá o que dizer sobre a polifonia, termo igualmente
destinado a extraordinário sucesso, antes metáfora
musical, como ficou dito, que dogma científico. Mário
de Andrade já o havia proposto, em 1925, como instrumento
de análise estrutural da... poesia moderna. É técnica
inevitável nos grandes romances, encontrada por Bakhtin,
entre outros, no Balzac que foi "um dos seus precursores
imediatos" (Julia Kristeva). Em outras palavras, não
devemos lê-lo como um prodígio da natureza, nem apenas
no contexto do formalismo russo, que, por sua vez, foi um pseudópode
do futurismo europeu, àquela altura tentando as primeiras
incursões num território literário onde encontraria,
por sinal, o mais desventurado destino.
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