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São Paulo, 13 de julho de 2003


O crítico e escritor Cristovão Tezza estuda, em obra recém-lançada, as reflexões sobre poesia presentes nos textos do teórico russo Mikhail Bakhtin

Dilemas do discurso poético

Beth Brait
especial para a Folha


O pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a partir da década de 70 do século passado, entrou, definitivamente, para o universo dos estudos da linguagem em suas relações com a história, as culturas e as sociedades. Ainda que hoje tenhamos dados biográficos e estilísticos para afirmar que V.N. Voloshinov e P.N. Medvedev eram expressivos participantes da efervescência intelectual que dominou a Rússia dos anos 20, membros efetivos do "círculo de Bakhtin", e não meros heterônimos, pseudônimos ou assinaturas "ad hoc", o conjunto dos estudos se credita a uma "teoria bakhtiniana da linguagem", que ganhou espaço nas ciências humanas, marcada pelo diálogo polêmico com o estruturalismo, o formalismo, o ideologismo e até mesmo o freudismo. Para a teoria da literatura, as obras "Problemas da Poética de Dostoiévski" e "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento - O Contexto de François Rabelais", "Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance)", assinadas Bakhtin (ele mesmo), e "The Formal Method in Literary Scholarship - A Critical Introduction to Sociological Poetics" (ainda sem tradução), assinada Medvedev e, em algumas edições, Bakhtin/ Medvedev, são fontes de referência para estudos sobre o romance, os gêneros, a polifonia, o riso, a carnavalização e para os embates, hoje menos em voga, entre as poéticas formalistas e as sociológicas. Para os estudos linguísticos, "Marxismo e Filosofia da Linguagem", assinada Voloshinov e, em algumas edições, Bakhtin (Voloshinov) ou apenas Bakhtin, e "A Estética da Criação Verbal", conjunto de textos de arquivo, inacabados, redigidos em diferentes épocas, são obras acolhidas como um novo paradigma para o enfrentamento da linguagem enquanto trabalho construído entre sujeitos históricos, em interações efetivas, materializadas nos textos e na vida. No Brasil, o "pensamento bakhtiniano", que, como no resto do mundo, chegou de maneira fragmentada, esparsa, teve e tem uma recepção que se poderia chamar de ampla e irrestrita. Aí se encontram os estudiosos que, desde Bóris Schnaiderman, responsável pela introdução efetiva desse pensador entre nós, vêm atuando numa espécie de "hermenêutica do resgate", ou seja, tateando os textos para reconstituir os fundamentos filosóficos, as diretrizes e o alcance dessa produção, tanto no momento em que foi realizada quanto hoje, e, também, as aplicações inadvertidas, ingenuamente didáticas, que descaracterizam a especificidade desse pensamento.

E é nesse panorama que o livro "Entre a Prosa e a Poesia - Bakhtin e o Formalismo Russo", de Cristovão Tezza, aparece como uma importante contribuição. Reconhecido ficcionista, Tezza escolhe, para núcleo do seu alentado texto, um dos mais espinhosos temas da produção de Bakhtin e seu círculo: a concepção de poesia e sua posição numa teoria estética. Se o discurso do romance tem o respaldo de um estudo teórico longo, das obras a respeito de Dostoiévski, Rabelais, dos gêneros e autores que o caracterizam, do conceito de plurilinguismo que o sustenta, a poesia, por outro lado, sem um texto teórico que lhe seja inteiramente dedicado, encontra algumas formulações que desnorteiam até mesmo os bakhtinianos mais convictos. Dentre elas, a idéia de que, por oposição ao romance, a poesia seria monológica, contrariando, ainda que aparentemente, o princípio básico da teoria que é o dialogismo. Esse pertinente gesto interpretativo, que agora encontra uma abordagem mais abrangente e formal, já aparecia, em fins da década de 1980, no texto "Discurso Poético e Discurso Romanesco na Teoria de Bakhtin" ("Uma Introdução a Bakhtin", Hatier). Aí, Tezza rastreava a concepção de poesia presente nos escritos bakhtinianos, situando-a nos limites da coerência de um pensamento que, sob nenhum pretexto, exclui a dimensão social.

Núcleo duro da teoria

"Desde logo uma diferença marcante estabelece a separação entre o discurso poético, no sentido estrito, e o discurso romanesco. É o fato de que, na poesia, o poeta é solidário com cada uma de suas palavras: ele concorda, por princípio, com tudo que ele diz. A palavra do poema e a palavra do poeta são uma só a linguagem aí não é nem mediada por outra nem relativizada (...). A unidade do prosador é a unidade de um maestro comandando uma multiplicidade de vozes, a multiplicidade das linguagens sociais, como visões de mundo autônomas. É o outro que está no centro da prosa romanesca." E é esse núcleo duro da teoria que vai ser resgatado e radicalmente exposto em quatro consistentes capítulos, urdidos a partir dos fundamentos filosóficos que regem o pensamento bakhtiniano e que Tezza pode repensar em razão de um amadurecimento que passa pela leitura articulada do conjunto ampliado dos textos de Bakhtin, aí incluído um trabalho pioneiro e inconcluso, fundador do discurso bakhtiniano (que não havia entrado na história...) que é "Por uma Filosofia do Ato".

Poeta, palavra, mundo

O primeiro capítulo situa Bakhtin e seu círculo, pontuando as nuanças de um ponto de vista coerente sobre os fundamentos que norteiam a concepção de discurso poético. O segundo, o mais inventivo do trabalho, resgata a imagem da poesia a partir de importantes poetas, conduzindo o olhar pela perspectiva de quem faz poesia e situa a relação poeta/palavra, palavra/mundo. Ao terceiro cabe mapear o formalismo russo enquanto interlocução polêmica com a postura bakhtiniana. Apesar da pertinência do capítulo, é impossível não assinalar um certo "estranhamento" em relação à maneira como o autor enfrenta o arcabouço teórico formalista, focalizando-o como se ele ainda estivesse sob as luzes exacerbadas pelo furor estruturalista dos anos 70, reduzindo-o, algumas vezes, a uma ingenuidade formal e alienante que sua inexorável inclusão na história da teoria da literatura não mais autoriza.

Ao quarto capítulo, uma espécie de clímax em que estão incluídos comentários sobre poetas e poemas, resta justamente costurar os fios filosóficos que tecem a "hipótese Bakhtin", incluindo a busca de uma filosofia da qual as noções e conceitos não podem ser descolados. Ética, estética, consciência, autor, herói, polifonia, prosa e poesia são realidades de um mesmo universo que o esforço interpretativo deste valioso estudo procura comprovar: coerência, do ponto de vista do conjunto dos escritos, pertinência, da perspectiva de uma teoria da bakhtiniana da linguagem. Considerando que a concepção bakhtiniana de mundo não autoriza a última palavra, a distinção prosa/poesia ou, mais precisamente, as aproximações e os distanciamentos existentes entre discurso poético e discurso prosaico estão postos. Mas não definitivamente resolvidos.

Beth Brait é professora na pós-graduação em linguística na USP e na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autora de, entre outros livros, "Ironia em Perspectiva Polifônica" (ed. da Unicamp).



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