|
O GLOBO - PROSA & VERSO
Rio, 12 de julho de 2003
A revolução mundana do romance
José Castello
A poesia, como muitos poetas supõem, seria superior à
prosa? E esta pode ser reduzida à linguagem prosaica? Essas
e outras difíceis perguntas são discutidas em "Entre
a prosa e a poesia" (Rocco), do escritor catarinense Cristovão
Tezza, de 50 anos. O protagonista do ensaio é o pensador
russo Mikhail M. Bakhtin (1895-1975) que, segundo Tezza, "foi
tanto uma charada teórica quanto uma charada ele próprio".
Bakhtin viveu a maior parte da vida confinado na URSS e passou
a ser celebrizado no Ocidente depois dos anos 70. O livro está
sendo lançado por ocasião da XI Conferência
Internacional sobre Bakhtin, que acontece entre 21 e 25 deste
mês em Curitiba.
O que Bakhtin, que nasceu no fim do século XIX, tem
a dizer aos escritores e críticos do século XXI?
CRISTOVÃO TEZZA: Para a crítica, ou para
todos os que se interessam pelos estudos de linguagem e literatura,
Bakhtin tem muito a dizer. Em dois aspectos principais: uma concepção
de linguagem alternativa às correntes formalistas dominantes
no século XX e uma teoria da prosa romanesca original,
que coloca a discussão dos gêneros literários
num outro patamar investigativo. Mais que isso, dá ao romance,
que no século XX quase sempre foi uma espécie de
"patinho feio" da teoria literária, uma nova
dimensão.
Você mostra como Bakhtin distinguiu a "centralização
autoritária" da poesia da "descentralização
democrática" do romance. Em que medida essa distinção
vale hoje?
TEZZA: Nas suas obras inéditas escritas ao longo
dos anos 1930, Bakhtin desenvolveu uma teoria que põe a
história da linguagem e da literatura sob a força
de dois movimentos contrários, que ele chama de forças
centralizadoras da linguagem - a linguagem oficial, normativa,
a linguagem do Estado, a linguagem dos salões, dos gêneros
consolidados; e as forças descentralizadoras, expressão
da oralidade, da estratificação, dos dialetos não-oficiais,
da língua cotidiana, das feiras, da paródia, do
circo, etc. Para Bakhtin, a história do romance é
também a história milenar da descentralização
da linguagem. Ao contrário do que normalmente se diz, que
o romance seria o "épico moderno", ou que o romance
é a expressão contemporânea da epopéia
antiga, Bakhtin dirá que a consolidação do
romance, como gênero, representa justo o contrário
- ele é a corrosão final da visão de mundo
épica, a sua destruição. O romance é
também o gênero do "homem inacabado".
E quanto à poesia?
TEZZA: Bakhtin investigou-a sob uma perspectiva bastante
original: o gênero poético é sempre a expressão
de uma linguagem centralizada. Para falar com simplicidade: o
poeta chama a si a autoridade; ele afirma totalmente cada palavra
que assina; o poeta preserva a autoridade da linguagem em todos
os seus aspectos. Já na prosa, o autor mantém necessariamente
uma distância prudente de cada palavra que escreve. Nesse
sentido, ela é "descentralizada", como se em
cada frase houvesse sempre duas pessoas falando. Na poesia essa
distância não existe. A linguagem, nela, é
una. Mas lembremos que há gradações infinitas
nesse espectro: poesia fortemente prosaica, e prosa poética.
Esse olhar de Bakhtin sobre a linguagem foi de fato uma revolução
sobre a tradição crítica. Para Bakhtin, os
gêneros se formam no que ele chamava de tensão dialógica
da linguagem, no fato de que cada enunciado apresenta sempre mais
de uma visão de mundo em jogo.
Bakhtin teve com os chamados formalistas russos, você
diz, uma relação ambígua. Em que eles se
aproximam e se diferenciam?
TEZZA: Na Rússia que viveu a efervescência
da Revolução de 1917, o movimento conhecido como
formalismo russo será uma referência obrigatória.
Ao longo dos anos 1920, os formalistas foram objeto de acaloradas
discussões teóricas. O movimento desapareceu nos
anos 30, houve uma diáspora, mas seus conceitos fundamentais
serão retomados e consolidados no Ocidente por um de seus
fundadores, Roman Jakobson. Muito da teoria literária do
século XX deriva dos conceitos criados ou desenvolvidos
pelo formalismo russo. Defendiam, como idéia central, o
projeto de uma ciência da literatura que a despojasse de
tudo que não fosse estritamente literário. Influenciado
por Saussure, o formalismo, por sua vez, vai influenciar a concepção
estruturalista da literatura, que até hoje tem força.
Pois bem, Bakhtin será um crítico incansável
do formalismo, ou, para ser mais justo, um crítico dos
pressupostos que sustentavam a idéia de uma ciência
literária. O ponto de aproximação está
no fato de que tanto para Bakhtin como para os formalistas era
preciso delimitar o que seria específico na literatura
e a necessidade de pensar a literatura como expressão da
linguagem. Daí para diante, os conceitos diferem pela raiz.
O espectro formalista continua a nos rondar. Parte da inteligência
crítica ainda crê na autonomia da linguagem, entendida
como um sistema. Sim, a língua como um sistema é
um pressuposto absoluto da lingüística, mas e quando
entramos no mundo da cultura? Não é uma questão
fácil de resolver, mas Bakhtin tem muito a dizer.
Bakhtin recoloca na análise literária o "eu",
o real e o social. Valoriza também o diálogo, ou
melhor, a linguagem dialógica e, em conseqüência,
o papel do ouvinte e do leitor. Qual a importância de retomar
tudo isso?
TEZZA: O século XX sofreu uma polarização
infeliz - que podemos resumir grosseiramente como esquerda e direita
- e que afetou todas as áreas das ciências humanas.
No caso da teoria literária, o dogma formalista de que
é preciso considerar apenas o estritamente literário
e deixar de lado a psicologia, a filosofia, a História,
etc., teve a contrapartida do dogma temático que não
leva em conta a natureza da linguagem, entendida apenas como instrumento
de veiculação ideológica, digamos assim.
Bem, das duas correntes, a linha formal sobreviveu, de certa forma
triunfou, enquanto a outra não conseguiu sair do deserto
implantado pelo realismo socialista. Bakhtin vai tentar demonstrar
que essa era uma guerra de cegos, e que o pressuposto formalista
da autonomia da forma literária é completamente
furado do ponto de vista filosófico. Para ele, só
é literário o que entra no mundo da cultura, e aí
não tem sentido mais falar em sistema autônomo. Em
última instância, o que a obra de Bakhtin nos propõe
é uma nova apreensão do problema da linguagem literária.
Você mostra que, no século XX, os poetas tiveram,
em geral, uma visão "elevada" ou mágica
da poesia, chegando a configurar uma espécie de teologia
da poesia. Nela vem implícita uma visão da prosa
como uma mutilação da linguagem. Como prosador,
como você encara a posição dos poetas?
TEZZA: Uma das grandes surpresas que tive na minha tese
(o ensaio foi defendido como tese de doutorado na USP, em 2002)
foi descobrir o que os poetas pensam sobre a poesia. Senti necessidade
de levantar uma "imagem da poesia" segundo os poetas,
daí fui levantando afirmações mais ou menos
erráticas, pegando os poetas meio distraídos, no
contrapé... Alguns deles, é claro, têm projetos
teóricos formalizados, como Octávio Paz, mas a maior
parte não. E fui percebendo nitidamente que, de fato, há
uma "teologia poética" - no caso do século
XX, uma teologia laica, digamos assim. Teologia não no
sentido de que os poetas escrevam epifanias religiosas, embora
eventualmente isso possa ocorrer, mas no sentido de que, para
o poeta, a poesia acaba ocupando o lugar de Deus. Às vezes
isso é dito com todas as letras, como no caso de Paul Valéry.
Para uma cabeça prosaica até a medula como a minha,
isso me surpreendeu, isto é, a metafísica que sustenta
o imaginário poético. A poesia é identificada
com Deus, com a natureza, com a Antiguidade, com o absoluto, com
a perfeição, etc. Chega-se a dizer que a poesia
é anterior ao homem - e quem diz isso, ainda que como metáfora,
é T. S. Eliot. Tudo bem. O interessante é que, normalmente,
são os poetas que mais gritam contra o que Bakhtin disse,
quando observou que a poesia se faz sobre um discurso monológico
e centralizador. Mas tudo que os poetas dizem confirma a hipótese
de Bakhtin. Pode haver algo mais monológico, centralizador
e autoritário do que Deus? Mas os poetas ficam furiosos
com a idéia de que a poesia é monológica.
Há aí um cruzamento interessante: vivemos numa época
em que nada pode ser politicamente pior do que a idéia
de centralização, de autoritarismo, etc. Assim,
condena-se Bakhtin não por motivos técnicos, mas
por uma questão ideológica. Outra imagem que transparece
na fala dos poetas é a superioridade intrínseca
da poesia sobre a prosa. Bem, os formalistas levaram essa superioridade
tão a sério que a própria definição
do que é literário ateve-se quase que exclusivamente
à definição das formas da poesia. A prosa,
no que ela tem de prática, cotidiana, vulgar, nisso que
é a matéria-prima da prosa romanesca moderna, ficou
fora do horizonte formalista. A prosa só é considerada
arte quando não é mais prosa, mas poesia. No entanto,
a palavra, na prosa, respira as palavras alheias, nutre-se delas,
vive nelas, esconde-se nelas.
voltar
|