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RASCUNHO - JULHO DE 2003
CADERNO DE NOTAS (9)
Em ensaio sobre Bakhtin, Cristovão Tezza trata temas
complexos com clareza e elegância notáveis
José Castello
É uma surpresa, uma grande e estimulante surpresa, a leitura
de Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo,
ensaio literário do escritor catarinense, radicado em Curitiba,
Cristovão Tezza, que chega às livrarias agora em
julho. Os motivos são variados. Primeiro, não é
sempre que, ao trocar a ficção pelo ensaio, um escritor
consegue conservar o padrão de qualidade que nele reconhecemos.
Não é simples exercer essa "dupla identidade",
mas Tezza nos surpreende com uma linguagem sofisticada, didática
e, sobretudo, ousada. Depois, não é costume (e é
bom lembrar que o ensaio de Tezza é uma adaptação
de tese de doutorado apresentada por ele à Universidade
de São Paulo) que, diante de um tema tão distante
e específico, no caso a obra do crítico literário
russo Mikhail M. Bakhtin (1895-1975), um ensaísta consiga,
sem perder um centímetro de rigor e lucidez, usar a incursão
ao passado para, através dela, penetrar, de forma contundente,
no debate literário contemporâneo. Enfim, atualizar
e demonstrar o vigor interminável da obra de Bakhtin, um
pensador de resto esquecido ou, no máximo, mal compreendido.
Por fim, é obrigatório registrar o notável
senso didático de Cristovão Tezza, que trata de
temas complexos e cerrados com uma clareza e elegância notáveis.
Enfim, se já tínhamos o Tezza grande ficcionista,
agora temos também, duplamente, o Tezza ensaísta
brilhante, de quem esperar - e cobrar - novas e provocativas incursões
pelo cenário, em geral árido e repleto de obstáculos,
da teoria literária.
Na verdade, e embora nos ofereça uma visão panorâmica,
e até acadêmica, do pensamento particular de Bakhtin
e de seu círculo de intelectuais, Cristovão Tezza
vem usar a obra do pensador russo, corajosamente, com uma audácia
incomum nos meios literários brasileiros, em geral marcado
pelas regras do compadrio e também de certa teologia literária,
para perfurar, e mesmo dinamitar, as leituras contemporâneas
da poesia. Seu ensaio serve, em particular, àqueles que,
como eu, não são especialistas na obra de Mikhail
Bakhtin e que, portanto, não irão lê-lo em
busca de interpretações rigorosas e até sagradas,
mas sim para tomá-lo como fonte de inspiração
e instrumento para diagnosticar e repensar o presente. É
essa atualidade embutida em Bakhtin, é o modo como ele
se oferece ao leitor contemporâneo, o que mais estimula
na leitura de Entre a prosa e a poesia. Desse modo, o ensaio de
Tezza se oferece como excelente combustível para reflexões
livres, e até "irresponsáveis" - como
a que venho aqui rascunhar. Irresponsável no sentido em
que não é movida por nenhum rigor de escola e, mesmo,
pelo respeito a alguma tradição; mas, ao contrário,
vem fazer uso das teses de Bakhtin para, a partir delas, repensar
as idéias prontas, e até congeladas, que norteiam,
em geral, o mundo literário.
Até porque a obra de Mikhail Bakhtin, cuja autenticidade
ainda hoje está, em parte, em debate, é dispersa
e desprovida de um centro, servindo como chave para abrir muitas
portas, que levam a caminhos diversos. Ela vem, como um soco violento,
de encontro às tendências formalistas que, ainda
hoje, predominam na análise literária, configurando
uma espécie de "religião do texto puro",
com seus cardeais, príncipes discípulos e textos
sagrados. Um dos eixos de suas teses é a distinção
entre a "centralização autoritária"
que define a poesia e a "descentralização democrática"
que, a seu ver, caracteriza a prosa. Essa natureza centralizadora
da poesia terminou por isolar e encampar os aspectos formalistas
que nela predominam desde a metade do século 20.
Bakhtin, ao contrário, via a vida concreta como inseparável
da literatura, homem e mundo ligados a um compromisso indissociável,
elo que, numa tradição de formas puras e abstratas,
parece antiga, quando é decisiva. Sem o outro, não
há a palavra, dizia Bakhtin e, portanto, ela só
é plena se considerarmos sua dimensão social e cultural;
até porque nenhuma palavra existe sem o ouvinte, ou leitor,
que a vem sorver. Por isso, por se tratar de um gênero polifônico
no qual vozes de procedências distintas se entrelaçam
e medem forças, o formalismo (desde os formalistas russos)
foi sempre incapaz de dar conta do romance. A prosa lida exatamente
com a linguagem comum, quer dizer, a linguagem prosaica. E esse
discurso prosaico se ergue sobre falas antagônicas, sem
a monotonia e fechamento que definem o discurso poético.
Enquanto para a poesia o mundo está pronto, à espera
da letra no coração do poeta, o romance trata de
um mundo inacabado - e que nunca ficará pronto. Por esse
caminho, Bakhtin chegou às limitações da
poesia, e não a sua superioridade - dela que, em geral,
é tida como um gênero puro, como "o gênero
dos gêneros". Enquanto o romance seria o lugar "do
homem inacabado", sujeito, na verdade, que caracteriza a
vida contemporânea.
O mais interessante no livro de Tezza é que, não
se limitando a reconstituir as idéias de Bakhtin, ele trata
de confrontá-las, e mesmo testá-las, em contraste
com o senso comum que norteia as teorias contemporâneas.
Senso comum que se origina, ele nos alerta, no pensamento dos
próprios poetas. Tezza lembra que "a obra de Bakhtin
e de seu círculo desapareceu do horizonte já no
início da década de 30, e o seu reaparecimento fragmentário
nos anos 70 não vai influenciar significativamente o pensamento
literário dominante". Enfim, é um pensamento
que ficou recalcado, e assim foi justamente porque toca no coração
dos impasses vividos pela poesia ao longo do século 20.
Como definir a poesia? Borges tentou assim: "Poesia é
a expressão do belo por meio de palavras habilmente entretecidas".
Eliot disse que "o poema se apresenta como um círculo
ou uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente".
A poesia é vista então como depositária da
"linguagem original", ou arcaica, não contaminada
pelas circunstâncias do mundo real, Tezza aponta. E continua
a vasculhar as idéias que os poetas têm a seu próprio
respeito. Brodsky a definiu como a "forma mais elevada de
linguagem", enfatizando assim seus aspectos sagrados. Octavio
Paz veio afirmar que "o poema transcende a linguagem. O poema
é a linguagem, mas é também mais alguma coisa".
Paul Valéry a viu como a busca da "voz absoluta".
Por contraste, observa Tezza, "vê-se a prosa, ou a
vida da linguagem falada, como degradação da linguagem".
Poucos escritores, como o polonês radicado na Argentina,
Witold Gombrowicz, conseguiram dizer: "Confesso que os versos
me desagradam e até me aborrecem um bocado". E por
isso parecia um herético. Sobre a suposta pureza da poesia,
prossegue Gombrowicz: "Por que razão não gosto
eu da poesia pura? Pelas mesmíssimas razões que
me levam a não gostar do açúcar puro. O açúcar
é coisa deliciosa quando se o toma no café, mas
ninguém se poria a comer uma pratada de açúcar
- seria demais". É novamente Tezza que, lúcido,
vai concluir: "Eis aí a teologia moderna temida por
Cioran: a poesia como um valor sagrado, anti-racional, mas substancialmente
laico".
É a noção de utilidade, ou inutilidade (pense-se
em Manoel de Barros, em Fabrício Carpinejar...) que rege
hoje a poesia. Bem antes deles, Jean-Paul Sartre já dizia
que o poeta é aquele que se recusa a utilizar a linguagem,
Tezza prossegue em sua investigação. "O poeta
está fora da linguagem e vê as palavras do avesso,
como se não pertencesse à condição
humana", escreveu Sartre ainda. Então, diz Tezza,
muitos vêem "o poeta como um mágico pairando
acima do mundo concreto, fora da linguagem, capaz de chegar à
coisa em si, que é a realização poética".
Tais afirmações, prossegue ele mais à frente,
"pressupõem o mundo autônomo das palavras, o
mistério indizível, as ressonâncias obscuras,
o incompreensível".
Ao contrário, os formalistas russos foram os primeiros
a tentar entender a poesia como um fenômeno de linguagem
a ser estudado friamente. Os formalistas buscavam uma "ciência
literária". O problema é que, ainda hoje, muitos
teóricos da literatura acreditam nessa balela - quando
Bakhtin, um século atrás, já apontava para
sua superação. Não o retorno a uma visão
mítica e ingênua, mas o avanço para além
dos dois tipos de erro, o formalista e o "conteudista".
Os formalistas vão se esforçar, por exemplo, para
"livrar a teoria literária de tudo o que não
seja literário", como se tal operação
fosse realmente possível. Eles viam a poesia como uma máquina
e propuseram uma crítica como um retorno ao "saber
do artesão". Mesmo renegando a metafísica,
continuaram aferrados a um ideal inexistente. Os formalistas vão
buscar a "literaturidade", isto é, aquilo que
é específico da literatura. Com isso, se submetem
a leis internas regulares e exclusivas, que viessem garantir a
completa separação entre a poesia e o real. O formalismo
vai construir o ódio ao senso comum, ao bom senso, ao prosaico,
através da distinção entre a "linguagem
formal", superior, e a "linguagem prosaica", que
lhe seria inferior. Visto assim, o crítico literário
se torna um contra-senso, quer dizer, um "cientista da literatura".
E a teoria literária, uma "ciência da literatura",
solene e cheia de dedos diante de seu objeto. De um extremo, o
da literatura vista como ideologia e conteúdo, os formalistas
saltaram para o outro, o da literatura como forma solta e vazia.
Bakhtin, ao contrário, vai insistir que, na análise
literária, o Eu não pode ser excluído, porque
está sempre presente. Além disso, ele acrescenta,
a linguagem deve ser investigada em todas as suas funções,
e não só na poética. Para Bakhtin, os teóricos
do formalismo russo não sabiam o que fazer com a prosa
- e essa mistura de constrangimento e desinteresse, de certo modo,
é dominante ainda hoje, podemos acrescentar. Ele sugere
que, diante de um romance, em vez de o teórico se ater
à visão técnica, ele deve expandi-la, desprender-se
dela, para chegar a uma visão de mundo. Além disso,
o leitor não pode se excluir do texto. "Compreender
um objeto é compreender o meu dever em relação
a ele", disse. Quer dizer, é compreender a atitude
ou posição que devo tomar diante dele. O crítico,
em vez de se abstrair, de se ver como um leitor "neutro",
deve se encarar como alguém que tem uma participação
responsável no texto que lê. O que Bakhtin tentou,
em resumo, foi superar o divórcio entre uma análise
abstrata, ou formal, e outra ideológica, que é igualmente
abstrata. Só na conexão entre as duas é possível
superar a abstração e cair no real. Bem, não
era por outra motivo, Tezza explica, que Bakhtin tinha "horror
à abstração teórica, à redução
esquemática, à instrumentalização
das categorias". A palavra só pode dizer algo se estiver
"em relação" com o mundo. Senão,
será apenas forma vazia.
Para Bakhtin, em resumo, a arte é parte da vida, e não
um objeto autônomo, regido por leis internas e próprias.
O importante, então, é o contexto no qual o ato
de criação se torna significante. Em resumo: Bakhtin,
relido por Tezza, abre uma porta para que possamos reconectar
a literatura à existência concreta e prosaica. Mas
isso se faz por um avanço, a novas e mais complexas formas
de conexão entre elas, e não por um recuo às
velhas (e esquemáticas, lamentáveis) análises
sociológicas dos esquerdistas clássicos. Esse Bakhtin
que Tezza reencontra nos abre uma perspectiva para reverter, revirar
e reordenar as leituras hoje dominantes a respeito da criação
literária. E para reaproximar a arte e a vida, de modo
que a literatura, em vez de letra morta, ou de assunto para especialistas,
volte a ser um instrumento vivo e desafiador a remexer e ampliar
nossas vidas reais. Não é por acaso, Cristovão
Tezza nos recorda, que "os dois maiores poetas da língua
portuguesa do século 20, Drummond e Pessoa, são
dois poetas prosaicos". Nem é preciso lembrar o forte
prosaísmo do modernismo brasileiro. O que está em
crise, hoje, diz Tezza, é "a autoridade poética".
Nem a esterilidade da abstração formal, nem só
a vida concreta e caótica. "O segredo estará
em não perder de vista nenhuma das pontas dessa passagem",
ele conclui.
JOSÉ CASTELLO é escritor e jornalista.
Autor de Fantasma, entre outros.
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