Gazeta do Povo
Curitiba, 06/06/2015 (link)


Cristovão Tezza, cronista

Annalice Del Vecchio

Entre as mais de 330 crônicas publicadas pelo autor de “O Filho Eterno” na Gazeta do Povo , entre 2008 e 2014, um conjunto de textos chama a atenção por refletir o pensamento do escritor sobre temas relacionados ao próprio ofício e à literatura de modo geral

“Escritor: precisa-se.” A frase abre o romance de Cristovão Tezza O Fantasma da Infância (1994), cujo protagonista, o escritor fracassado André Devinne, sobrevive como digitador da seção de classificados de um jornal. Em uma das primeiras crônicas que publicou na Gazeta do Povo, entre 2008 e 2014, “Ser Escritor”, Tezza usa a mesma imagem dos classificados para discutir as dificuldades enfrentadas em assumir a profissão, sobretudo no Brasil, lembrando que “se fosse bom ser escritor bastava abrir os classificados desta Gazeta para encontrar dezenas de chamadas do tipo ‘contratam-se romancistas; pedem-se referências’”.

Discussões literárias como essa são parte significativa dos mais de 330 textos publicados no jornal por esse “cronista tardio”, nas palavras do próprio Tezza, que aceitou o convite para se dedicar à “nova função” já com uma prestigiada trajetória como ficcionista – ele é autor dos romances O Filho Eterno (2007) e O Professor (2014), para citar os mais recentes. São justamente as crônicas, digamos, metaliterárias que abrem a antologia Um Operário em Férias (Record, 2013), em uma seção formada por textos de “memórias e certa filosofia da escrita, desenvolvida ao longo dos 40 anos de carreira do ficcionista por trás do cronista”, como escreve o organizador Christian Schwartz na apresentação.

As reflexões que Tezza faz sobre o ofício surgem, não raro, em meio à sua “trepidante vida de caixeiro lítero-viajante”, como escreve na crônica “Viagens no Tempo” (12/10/10), para participar de palestras, feiras, conferências e outros eventos literários. A rotina é mencionada em “Um Texto Coringa” (15/11/10): “Daqui a pouco alguém vem me buscar rumo ao desconhecido. Claro, vai dar tudo certo – vou falar sobre literatura com a plateia da 20.ª Feira do Livro de Roraima (pronuncia-se “Roráima”) e depois certamente terei assunto para uma pilha de crônicas”.

De volta para casa, ou no quarto do hotel, o cronista expõe ao leitor seus pontos de vista, frequentemente sob uma perspectiva pessoal que leva em conta sua própria experiência como autor, sobre questões como as dificuldades de ser escritor no Brasil, os caminhos que o levaram à escrita, as relações entre leitura, escrita e internet, a literatura contemporânea no Brasil, entre outras. As andanças como “camelô literário” renderam até mesmo matéria-prima ficcional. No conto “Beatriz e o Escritor”, que abre o livro Beatriz (Record, 2011), o personagem Antonio Donetti, escritor irônico e mal-humorado, decide dizer em voz alta tudo o que lhe vem à cabeça no debate de uma feira literária em Curitiba.

Há uma interação surpreendente entre as crônicas e os textos ensaísticos de Tezza, que incluem as três conferências sobre o métier do escritor reunidas no livro Literatura à Margem (Amazon, e-book) e a autobiografia literária O Espírito da Prosa (Record, 2012) – o que revela que o autor é hoje um dos poucos a pensar a literatura de maneira tão ampla.

A oposição entre prosa e poesia, por exemplo, questão que o atormentou por algum tempo (e foi tema inclusive de sua tese de doutorado), é discutida de modos distintos no Espírito da Prosa e na crônica bem-humorada “O Assassinato da Poesia” (18/02/2014). Nesta última, Tezza utiliza a notícia sobre um ex-professor russo amante de poesia que esfaqueou até a morte colega defensor da prosa como ponto de vista para fazer piada desta guerra de gêneros travada frequentemente entre acadêmicos – da qual ele mesmo participou.

Tezza, no entanto, revezou as crônicas literárias com outras, digamos, mais “terrenas”, ao escrever sobre temas que vão das indignações com a política e as mazelas brasileiras às opiniões sobre grandes questões contemporâneas como os totalitarismos; dos prazeres da vida doméstica e do ócio à tecnologia e ao futebol. É na crônica, aliás, que Tezza se revela um obcecado por quinquilharias tecnológicas de todo o tipo e um fanático torcedor atleticano que, no entanto, não é cego à cartolagem e aos mandos e desmandos da Fifa na preparação da Copa do Mundo no Brasil.

Em voz alta

No início de sua empreitada como colunista, um Tezza ainda “calouro nas crônicas” passou a se haver com um leitor mais concreto do que aquele de seus livros, que “exige como um Procon ambulante”, como se queixaria em “Sua Excelência, o Leitor” (13/01/2009). Essa onipresença do leitor, no qual o autor nunca afirma pensar ao escrever ficção, obrigava-o, vez por outra, a publicar crônicas reafirmando seus argumentos. Em “Por um Balde e uma Vassoura” (30/08/11), por exemplo, ele acalma os ânimos dos incomodados com a crônica “Imigrantes” (23/08/11), em que relata que, no período em que viveu em Frankfurt, nos anos 70, jamais viu um alemão carregando um balde e uma vassoura – o serviço pesado ficava por conta dos estrangeiros.

Se, à primeira vista, ter que se haver com as notícias do jornal parecia-lhe um engessamento de suas crônicas, condenadas assim ao “real”, Tezza logo perceberia as vantagens de falar sobre questões factuais, principalmente diante da fatídica falta de assunto que acomete, inevitavelmente, todo cronista – tema, aliás, de crônicas divertidas em que o autor admite, até mesmo, ter um texto estepe guardado na gaveta em caso de emergência.

Se a realidade, no entanto, não lhe convinha, saía-se com artimanhas típicas do gênero. Obrigado a mudar um texto prestes a ser publicado sobre a vitória de seu time, o Atlético, devido a uma inesperada derrota, transformou lamentos em reflexão: “Pois eu ia comentar o Atletiba. Mas, com o espaço chegando ao fim, melhor dizer das vantagens do romancista sobre o cronista. Aquele cria a realidade; este se arrasta atrás dela, escravo fiel” (28/04/2009).

Talvez por isso, ao fim de quase sete anos, o escritor tenha optado por interromper a escrita “em voz alta”, característica do texto publicado em jornal. “Foi muito bom enquanto durou, mas sinto que é hora, enfim, de me concentrar apenas nos prazeres da ficção, o de leitor e o de escritor”, revela na derradeira “O Cronista Se Despede”. Parecem ter chegado, agora sim, as tais “férias tão sonhadas” do escritor que, após 25 anos dando aulas no curso de Letras da UFPR, demitiu-se em 2009 para se tornar, finalmente, escritor full time. A nova ocupação, que a princípio lhe surgiu como uma espécie de bônus, resultou em novo tipo de obrigação, que se tornaria inclusive tema de muitas crônicas.

De volta aos afazeres exclusivos de ficcionista, Tezza deixa, no entanto, um legado como cronista que, para além da óbvia qualidade dos textos, merece múltiplos olhares: seja para lançar luz sobre um aspecto novo de sua produção, seja pelo diálogo produtivo dos textos “cronísticos” com outras instâncias de sua obra que, juntos e de formas diversas, revelam o pensamento do escritor sobre a literatura e o campo literário no Brasil.

(Annalice Del Vecchio é mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, com projeto que analisa as crônicas do escritor Cristovão Tezza em relação com sua obra ficcional e ensaística. É graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2003) e em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2000). Especialista em Cinema Digital pela Faculdade de Artes do Paraná (2007). É jornalista freelancer, atuando principalmente na área de cultura, com foco em literatura, cinema e artes visuais.)


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