Gazeta do Povo - Caderno G
Curitiba, 12 de agosto de 2012


Voz generosa

Miguel Sanches Neto


Primeiro apenas escritor, depois escritor-professor e agora novamente só escritor, assinalado pelo sucesso de seu romance autobiográfico O Filho Eterno (2007), Cristovão Tezza decidiu dissecar a sua própria trajetória em O Espírito da Prosa (Record, 2012). Se fosse apenas esta a motivação de seu ensaio ele já estaria justificado, pois Tezza se tornou pacientemente um dos grandes escritores brasileiros. Mas o livro faz um dos mais corajosos, e importantes, diagnósticos dos caminhos e descaminhos da literatura no Brasil, tornando-se, por isso, obra referencial para qualquer pessoa – escritor, crítico, professor – interessada na compreensão do fenômeno literário.

Como a vida de professor universitário de Cristovão é ainda muito recente, o livro se inicia um tanto travado. São os pressupostos teóricos tão comuns em teses e artigos científicos, talvez inconscientemente convocados por quem declara na primeira frase que “este não é um trabalho acadêmico” (p. 9). Enquanto linguagem e estrutura, ele tem ainda algum parentesco com a produção universitária. Mas as reflexões de Tezza vão na contramão do pensamento hegemônico neste meio, e é isso que o torna extremamente valioso.

Resumindo para fins didáticos a tese de Tezza, apreendida em Mikhail Bakhtin (1895-1975), teríamos dois princípios fundadores na produção literária – um poético e outro prosaico. Enquanto linguagem, a poesia exige uma equivalência de voz entre a obra e o autor, um se confundindo com o outro. O território da prosa se estabelece na multipresença de vozes, conscientemente construídas e dispostas num tabuleiro que permite a movimentação constante de identidades/verdades, o que desconstrói a sobreposição eu/texto, própria da poesia. Assim, “o escritor tem que saber que a voz que ele escreve em cada instante do texto não pode ser completamente a dele” (p. 37).

Com base nesta descoberta tardia – como ele mesmo relata –, Tezza pensa a sua carreira literária (momento em que o ensaio ganha velocidade), dividindo-a em dois momentos: o da crença na autenticidade e o da descoberta da força do realismo. Contraditoriamente, uma obra será tanto menos realista quanto mais autêntica. A autenticidade seria um empecilho para construir uma ficção que deve dar conta dos múltiplos pontos de vista dos personagens, sem a preponderância das ideias moralizantes do autor. Por isso, Tezza renega os seus primeiros livros, vendo neles uma presença poética, ou seja, uma equivalência entre o eu que ele era e a voz de seus narradores. Esses livros propunham uma mudança da sociedade que era de seu autor.

Mas Tezza busca neles as sementes do ficcionista que nasceria com Trapo (1988), quando ele mata simbolicamente o poeta que havia nele. Esta maturidade é conquistada por meio do domínio de um registro realista, que o afastou da vergonha de narrar – marca do pensamento retromoderno (expressão de Cristovão) nacional, que não se cansa de proclamar a morte do romance, à luz das ilusões estruturalistas. É nesta percepção que o ensaio programado para ser uma “autobiografia literária” transcende suas intenções iniciais e se faz um das mais importantes reflexões sobre a literatura publicadas no país. Todo o pensamento crítico atual está programado para valorizar um romance que sabote a narrativa e que valorize o elemento poético da ficção. Assim, a crítica que nega a presença explícita do eu na narrativa valoriza a presença estilística deste mesmo eu – algo que Foucault chama de função-autor. Fazendo-se extremamente pessoal, a voz na ficção se torna poética, forçando uma visão moralizante pela linguagem, pelo estilo.

O que define a grande prosa, para Tezza, não é o grau de inovação, não é a criação de um artefato pessoal de linguagem, mas a capacidade de cifrar muitas vozes, colocando-as em situação de tensão. Produzido segundo este princípio, mesmo o romance autobiográfico (como o seu O Filho Eterno) se afasta de seu autor. Assim, o romance realista é a expressão da prosa por excelência, e o seu domínio, tão pouco valorizado entre críticos e escritores brasileiros, é um caminho para o outro, para uma voz generosa.


voltar