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Revista Cult
Blog Marcia Tiburi - Setembro de 2012
O espírito da prosa, de Cristovão Tezza
"A escrita só faz sentido se abrir algum caminho novo para quem escreve e para quem lê". (Cristovão Tezza)
Marcia Tiburi
Li com entusiasmo a autobiografia literária de Cristovão Tezza intitulada O Espírito da Prosa. É com o mesmo entusiasmo que comento aqui alguns aspectos do livro que possam motivar outras pessoas a lê-lo.
Como este texto não é uma resenha, tampouco resumo, mas apenas aquilo que chamei de “cronocrítica” – algo como uma leitura afetiva no tempo e que, feita da matéria abstrata desse tempo, comporta certa memória do que foi lido, mas também esquecimento e caducidade – vou comentar à minha maneira, aquilo que creio importar na partilha com os leitores deste blog. O que pode parecer mero descompromisso é porta aberta para uma experiência de bons afetos.
De antemão, gostaria de dizer que a obra nos oferece a autocompreensão própria de um pensador, ali vivo, por atrás do escritor. Seria importante que todos os escritores, jovens ou não, o lessem, pois que nos faz pensar. E isso é o que há de melhor em qualquer obra quando, do lado de cá, o prazer da leitura reconhece o fundo espelhado do prazer da escrita.
Digamos que, para começo de conversa, é impossível não deliciar-se com a capacidade ensaística do professor Tezza. Ou melhor, o professor que ele foi e que, munido de finas ironias, segue em frente escrevendo na contramão dos burocratismos universitários. Mas será que alguém deixa de ser o que foi, ou nos acumulamos e soterramos sobre nós mesmos? O texto é prova de que a vivência acadêmica não lhe fez mal. A erudição e a reflexividade são poderes – uso esta palavra no sentido mágico e xamânico – que alicerçam este livro.
Verdade é que o escritor que se é, resulta de “tudo” o que se viveu, leu, desejou, odiou, ou percebeu. Claro que não se deduz um escritor de sua própria vida, mas também não se joga fora a própria vida. Este livro resgata essa vida, do único ponto de vista que interessa neste caso: do ponto de vista das dúvidas, das descobertas, da viagem literária que é sempre uma viagem vertical ao interior de si mesmo. É ali que se encontra a porta aberta para fora de si, onde um outro se revela “narrador”. Tezza, com a clareza que nos ajuda a experimentar com mais intensidade seus outros livros, mostra-nos que o começo da literatura está ali.
Inadequação
Melhor que tudo, no entanto, é o esforço do escritor, que sabe ser um “grande escritor” sem, no entanto, demonstrar-se afetado com isso, o que seria uma chateação. Sua história literária nos é ofertada no gesto generoso de um passeio pela formação da interioridade. A experiência mais íntima, aquela da infância, da adolescência, a do pensamento a transformar-se no desfecho da experiência vivida. A visão das coisas, os posicionamentos políticos, as utopias e sonhos. E, sobretudo, o que me encantou: um lugar de posicionamento existencial. Sempre desconfio que por trás de um escritor há um ser humano comovido com o fato de existir, ressentido ou amargurado, perplexo ou ofendido. Cristovão Tezza é mais que isso. O que ele mostra nesse livro, apesar de podermos achar que ele acerta contas consigo mesmo e com certas questões internas e externas à sua literatura, é a conquista da liberdade pela literatura. A conquista da liberdade da literatura por meio de sua própria história vivida.
Nada, portanto, chamou mais minha atenção do que aquilo que ele nomeia como “sentimento de inadequação”. Quem nunca o experimentou? Pois é este sentimento diante do mundo que percorre a história de Tezza dando substância à pergunta tão bem colocada por ele mesmo: “o que leva alguém a escrever?”
Esta é a pergunta que está no fundo de todo ato de escrita. É uma pergunta difícil que implica a passagem, como ele mostra, entre o não escritor e o escritor. Só que Tezza afirmará que ele nunca conseguiu aceitar esta passagem. Ao dizer-nos o que é escrever, o que escreveu e o que isso ainda significa para ele, mostra-se o escritor que ele é, completamente fundido à experiência existencial pela literatura.
Somente um escritor assim, um escritor para além da linguagem – vivendo-a como a própria vida – e em eterna tensão com ela, seria capaz desse livro tão sincero, tão bonito e tão importante para nosso cenário desacostumado da reflexão e do pensamento livre.
Minha esperança na experiência literária como uma experiência também filosófica, também formativa, também inventora de sentido, se refez. O Espírito da Prosa é dessas coisas pelas quais tenho vontade de agradecer porque tenham sido escritas. Obrigada, Cristovão Tezza.
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