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O GLOBO - VERSO &
PROSA
Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1996
Inventário das paixões temporãs
Em 'Uma noite em Curitiba', Cristovão Tezza retoma os
romances epistolares com ingredientes modernos
Wilson Martins
Vinte e cinco anos depois, como nos romances de antigamente (mas
a vida é um romance antigo), dois ativistas envelhecidos,
que haviam perdido contatos pessoais desde os movimentos estudantis,
reencontram-se inesperadamente ao acaso de um congresso literário
na Universidade Federal do Paraná. Ele já é
então um respeitado professor de História, e ela
uma artista célebre de cinema e televisão. É
sobre essa trama que Cristovão Tezza escreveu o seu último
romance, "Uma noite em Curitiba" (Rio: Rocco, 1995).
A intriga e as peripécias são reveladas pelas cartas,
algumas reais, outras imaginárias, que o protagonista escreveu
à mulher por quem então se apaixona - ele, vivendo
uma existência conjugal feita de indiferença e ressentimentos,
ela à altura do sétimo marido.
É, pois, um romance epistolar, à boa maneira da
"Nova Heloísa", de Rousseau, há pouco
traduzida por Fulvia M. L Moretto (São Paulo: Hucitec/Unicamp,
1994) - mas estamos no século XX e as cartas não
se escrevem mais com penas de ganso mas digitam-se no computador,
onde o filho, aliás transviado, as recupera depois que
o pai abandona o lar para juntar-se à mulher fatal num
impulso de emoções senis.
Tendo preparado a fuga com metódico sangue-frio e calculada
deliberação, pode-se estranhar que o protagonista
não haja pensado em destruir ou remover os textos confidenciais,
pequena inverossimilhança que devemos aceitar como liberdade
poética, sem a qual. afinal de contas, não haveria
o.romance. Outra, é a generosa e, aliás, improvável
decisão da Faculdade de ignorar a carta de demissão,
convertendo-a espontaneamente em aposentadoria com vencimentos
e vantagens integrais. Mais verossímil e consentânea
com o espírito burocrático seria que a família
lutasse pelo benefício, o que eventualmente teria inspirado
a Cristovão Tezza um saboroso capitulo sobre os arcanos
administrativos da Universidade.
Seja como for, ele traçou um perfil magistral do protagonista
pelo prisma das ambivalências de amor e ódio que
geralmente unem os filhos aos pais. No caso, homem ao mesmo tempo
pedante e inseguro, carregado de frustrações pela
vida conjugal e no perigoso limiar das palxões temporãs:
"Sou um homem que, elegantemente, nunca saiu dos trilhos",
escreve num dos seus exames de consciência, e corroído
pelo terebrante remorso mental de haver morto um adversário
durante os conflitos polítícos da juventude. Essas
memórias não o abandonaram. O reencontro inesperado
com a antiga companheira de ativismo velo trazê-las ao plano
da consciência em que a purgação confessional
se torna imperativa: "O que aconteceu em 1969?', escreve
em outra dessas atormentadas voltas ao passado:
"Vinte e cinco anos de idade, um aplicado militante da Ação
Popular, e virgem? Aquela manifestação foi uma generosa
estupidez. (...) Entramos no beco sem saída, esse o fato.
A cavalaria na avenida, a multidão (quantos?) de estudantes
revolucionários derrubando alguma bastilha. (...) Então
isso é a revolução (...) E ali estava ele,
o homem que eu matei, O dedo-duro tirando fotografias, oculto
nas sombras do motim. (...) Mas eu sei o que aconteceu. Eu sei
que, por alguns segundos, eu não estava mais me defendendo:
não havia necessidade: eu estava matando.
Tanto quanto o ato criminoso, a imagem da companheira que o salvou,
objeto, por isso mesmo, de um amor subconsciente, ficou para sempre
em sua obscura memória sentimental, da qual o computador
é a metáfora eletrônica e moderna. Assim,
o reencontro ocasional da memória: o historiador não
pode parar. "Hoje estou aqui, mas há lacunas no mapa
de ontem, de anteontem! (...) Aberta a cortina, os gestos se sucedem
na exata progressão do tempo".
Cedendo, talvez, ao instinto de historiador, ele deixa no computador
a documentação do seu passado - passado que agora,
em nossa idade eletrônica, não é mais representado
por manuscritos amarelados, mas por códigos numéricos:
Sara01, Sara02, Sara03, onde o filho, por sua vez, vai reencontrar
o Pai perdido:
"Naquele momento, pouco dignificante para um filho (reconheço),
começou o trabalho que estou completando agora - historiar
a vida do meu pai. Porque o que eu estava lendo ultrapassava todas
as possibilidades da minha, então eu soube, pobre imaginação.
É que os filhos, por instinto, protegem os pais; eles se
recusam, ou não vêem, o óbvio. Mesmo eu, com
todas as minhas razões e a minha justa ferocidade, mesmo
eu protegia meu pai. É a lei da natureza, talvez. O pai
é o Pai, e ponto final".
Instalado na condição de oitavo marido, o herói,
se assim podemos chamá-lo, passou a aparecer em segundo
plano nas fotos da atriz publicadas pelas revistas de frivolidades,
mas quando se suicida, algum tempo depois, ela "já
estava na Europa há mais de um mês: um advogado esclareceu
aos jornalistas que, de fato, ocorrera entre os dois um affair
passageiro, uma simples amizade colorida há muito completamente
encerrada, em paz e de comum acordo pondo assim um termo às
especulações indiscretas". Quando o filho resolveu
mostrar as cartas à viúva, "ela leu, duas,
três linhas, e disse, sem nenhuma entonação
especial, quase um tédio: Apague isso, meu filho. Apague
tudo.
O que ele fez, depois de tirar cópia: "A vida de meu
pai, muito mais do que a obra acadêmica que ele deixou,
que, como ele mesmo sabia, sempre acaba envelhecendo, tem alguns
toques instigantes de beleza, de valor literário mesmo.
Falem o que falarem, ele foi integralmente um homem do seu tempo
(...)".
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