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O GLOBO - SEGUNDO CADERNO
Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1995
O Iluminado da Ladeira
Elisabeth Orsini
Considerado o sucessor de Dalton Trevisan, o escritor Cristovão
Tezza tem muitas razões para achar que este é o
seu ano de sorte. Trocou sua antiga editora, a Record, pela Rocco,
para a qual acabou de revisar as provas da quinta edição
de seu romance "Trapo", escrito em 1982, e seu décimo
e mais recente livro, "Uma noite em Curitiba", que já
está sendo considerado o melhor de sua carreira e é
aguardado com expectativa por fãs-colegas como Esdras do
Nascimento (texto nesta página).
Como seus romances anteriores, "Uma noite em Curitiba"
está ambientado na mesma cidade cuja geografia o leitor
se acostumou a percorrer pelas mãos de Trevisan. Curiosamente,
Tezza, de 43 anos, não nasceu em Curitiba, mas sim em Lages,
Santa Catarina, onde passou os primeiros oito anos de sua vida.
Outra cuiriosidade: ele vive no mesmo bairro de Trevisan, a ladeira
do Alto da Rua Quinze, onde, certo dia, encontrou o "vampiro",
a quem pediu um autógrafo.
Aliás, a timidez parece ser a marca registrada de Tezza,
para quem é difícil falar de si mesmo. Mais do que
isso, trata-se de algo peculiar à cidade, que não
se abre assim tão facilmente. Essa atmosfera está
presente em seus livros, ele admite, considerando-se, porém,
um falso tímido, daqueles cujo silêncio não
resiste a um copo de cerveja. Talvez por isso as relações
entre as pessoas formem a trama central de sua literatura. Nem
por isso Tezza as considera uma catarse:
- Acho a catarse, tão útil na vida real, péssima
conselheira no universo da arte. Na literatura, ela é mortal.
Admirador de Trevisan, ele não aceita, porém, o
rótulo de seu herdeiro:
- Não somos herdeiros de nada, principalmente em literatura.
No caso de Dalton, o que temos é um ponto de liga fortíssimo:
a cidade de Curitiba, uma cidade de substância literária.
Ele é o maior prosador de nossa literatura neste fim de
século, um escritor para escritores.
No início de 1994, a convite da Ledig House Foundation,
Tezza ficou hospedado, como escritor-residente, numa casa de campo
perto de Nova York. Embarcou com as primeiras 50 páginas
manuscritas de "Uma noite em Curitiba" e voltou trazendo
o livro pronto. E lembra que, na primeira semana, não conseguiu
escrever:
- Eu me sentia um puco como o Jack Nicholson de "O Iluminado",
olhando aquelas terríveis páginas em branco.
Só na última semana ele digitou o texto. De volta
ao Brasil, deixou-o descansar por um bom tempo e só então
passou a revisá-lo, carinhosamente, aqui e ali. Estava
pronta a história do professor Rennon, um respeitável
senhor de 51 anos que se apaixona pela atriz Sara. Conhecido por
criar personagens massacrados pelo cotidiano, Tezza avisa que,
desta vez, seus personagens são normais.
- O professor Rennon é, mais que normal, um homem notável,
historiador de renome - conta. - Sara, a atriz, é uma mulher
amada. O filho do professor talvez tenha tido problemas há
alguns anos, mas parece que superou suas dificuldades.
Não tão normais assim. Rennon guarda, durante 25
aos, um segredo; o filho pode ter abandonado as drogas, mas dedica-se
a espionar o pai, e a filha fugiu de casa antes do 17 anos para
casar-se com um vendedor de carros usados.
O autor conta que o título "Uma noite em Curitiba"
é uma chave para o livro. Existe mesmo uma noite longa
no romance, várias vezes revisitada nas cartas do professor,
que sintetizam as memórias de uma vida inteira. E há
outros signos que lhe são caros no título.
- Um deles á a imagem da noite: quase toda a minha literatura
é noturna, eu e meus personagens gostamos da noite - conta
Tezza. - Outro é a própria cidade, Curitiba, que
se fez ao longo dos anos meu espaço literário, um
espaço basicamente mental, ainda que a geografia da cidade
também me apaixone.
A narrativa de "Uma noite em Curitiba" se desenvolve
em duas linhas paralelas - as cartas do professor Rennon à
atriz e o texto do filho, comentanod os acontecimentos a que elas
se referem. "Escrevo este livro por dinheiro", avisa
o filho logo no início. Nem tanto assim. Ele também
está procurando resgatar a imagem de um pai distante e
imperfeito.
Tezza admite que suas obsessões são sempre as mesmas
- o autor é que, em cada livro, já não é
o mesmo. E reconhece em "Trapo" algumas semelhanças
com "Uma noite em Curitiba", escrito 12 anos depois:
- Ambos têm a presença de dois pontos de vista, com
linguagens distintas e a estrutura parcialmente epistolar. São,
porém, diferentes visões de mundo: o autor de "Uma
noite em Curitiba" sente uma certa inveja da vitalidade do
autor de "Trapo", que, por sua vez, gostaria de ter
a maturidade do quarentão.
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