VALE DOS SINOS -
SUPLEMENTO CULTURAL
SÃO LEOPOLDO, RS, 20 DE OUTUBRO DE 1995


Um sonâmbulo em Curitiba

Fabrício Carpi [Carpinejar]

Gramática de assombros. O escritor Cristovão Tezza contemporiza o phatmos grego, pretendendo descobrir o desconhecido no coração do imediato. (Rimbaud). Ele fornece a um romance de idéias a agilidade da trama policial. Os diálogos são rápidos, patéticos de tão francos, como nos filmes de Hal Hartley (Confiança) ou romances de Charles Bukowski (Hollywood). Rejeita o fulgor dos maneirismos, afetos fáceis e adjetivação promocional. É seco como o frio de freezer, aberto a confissões rudes e diretas. Revela uma sensibilidade proustiana ao congelar o tempo, a reflexão do condenado à morte. É refinado o suficiente para evitar o expressionismo kitsch. Não transforma a classe média em pulp fiction, num show pop, para denunciar o mau gosto e o excesso de spots e néon.
Uma noite em Curitiba, seu décimo romance, traz a correspondência do professor cinqüentão e infeliz Frederico Rennon com a atriz de teatro Sara Donovan, possivelmente sua amante. O filho faz o papel de editor, o organizador do castelo de cartas. Desde o princípio, sabe-se que o professor desapareceu e queo filho publica os textos por dinheiro. Esse é o enredo básico, as instruções para o vôo. Existem quatro matrizes: a esposa corneada, Margarida, pura sombra, sem o peso da voz, espécie de manequim na vitrine do marido; o filho interessado em derrubar a estátua paterna, o professor cansado de si mesmo e fazendo as malas dia a dia e Sara, jovem famosa, que expõe com crueldade os defeitos de Rennon.

Espólio - Tezza encontrou novamente na herança de papel, a forma de fundir os personagens. Em Trapo (1998), um jovem poeta, viciado em drogas se mata e deixa um livro inédito. O aposentado Manuel começa a investigar os motivos do suicídio a partir de seus escritos. O leitmotiv de Uma noite em Curitiba é o mesmo. O rolo das desculpas e os vocábulos do desespero. Os personagens atrofiam o mundo, levantando paredes de papel. O que começa com uma simples correspondência oficial - um convite para ciclo de conferências - vai assumindo o compromisso da catarse. O professor Rennon não escreve sobre o que foi, mas no que poderia ter sido. É tomado por uma náusea ativa. As frustrações verbais apelam a um pensamento mais profundo. As brechas fônicas queimam como ácido a placidez do discurso.

O que move Rennon é o conflito entre a facilidade de pensar e a dificuldade de escrever. Teme oficializar os produtos originais e às vezes perversos da memória. Antes oculta do que revela, gagueja do que explica. "As palavras assustam. Ganham uma autonomia que elas não têm", confessa. Sua problemática é converter o crime de ter nascido, no paraíso de ter vivido. A infidelidade a Margarida fica em segundo plano. É impossível tomar partido. A confissão inutiliza a agressão. A expiação é o melhor advogado do professor. Sara é um detalhe necessário, a gota d'água. A impossibilidade de aparecer a torna terrível. É a amante que escuta-responde por telefone. Não aparece na trama, a não ser através da descrição de Rennon. De repente, nunca existiu. É a "sombra do desejo", o demônio feminino que o liberta do pesadelo da razão.

O pensamento está ligado ao despoder, diferente de impotência. A prosa epistolar permite o deslocamento do centro de gravidade, põe em xeque aquilo que julgamos eterno. As cartas de Fernando Pessoa, por exemplo, enviadas ao poeta e amigo Mário de Sá-Carneiro desapareceram. Ninguém as encontrou. Isso não diminui em nada o valor das indagações de Sá-Carneiro a Pessoa, porque a pergunta deve existir primeiro na resposta. No caso do protagonista de Tezza, a ausência de Sara é real e essa "é sua forma de estar presente" (Simone Weil), como os mortos queridos, que não deixamos de conversar, apesar da imaterialidade.

voltar