REVISTA ELE E ELA
NOVEMBRO DE 1995 - p.38

 

O que é bom já nasce um clássico

NEY REIS

Um observador desavisado desconfiaria da festa que se fez na imprensa em torno do novo livro de Carlos Heitor Cony, jornalista (redator da revista Manchete) e escritor de 69 anos que há 21 não escrevia um romance - o último foi Pilatos, seu favorito, lançado em 1974. Pareceria mais uma troca de gentilezas entre confrades neste país de patotas. Redondíssimo engano. Quase Memória (Companhia das Letras. 214 páginas) é um grande livro e Cony é um grande escritor.

"Prefiro classificá-lo como quase-romance - que de fato o é. Além da linguagem, os personagens reais e irreais se misturam. (...) No quase-quase de um quase-romance de uma quase-memória, adoto um dos lemas do personagem central deste livro, embora às avessas: amanhã não farei mais essas coisas, diz o autor na página 7. O lema ao qual se refere é o de seu falecido pai, o jornalista Ernesto Cony Filho, que morreu em 1985, aos 91 anos. Todos os dias. antes de dormir, ele repetia: "Amanhã, farei grandes coisas."

E fazia-as. Ou melhor: todos os fatos da vida de um jornalista de classe média eram transformados em grandes por seu espírito generoso, confiante, otimista. A história do Rio e do Brasil no período que marca sua vida e a do filho-autor, e principalmente as recordações de Carlos Heitor Cony, cujo pai ele considerava seu personagem preferido estão no livro.
Ernesto Cony Filho era um homem cheio de técnicas: para fazer balões, para dar nós em embrulhos (um deles, misterioso, é entregue ao autor 10 anos após a morte do pai com a letra deste no invólucro e um nó que só ele sabia dar...). Enfim, é um personagem antológico de uni livro saboroso.

Antítese do pai-herói de Cony é o professor Rennon, personagem de Uma noite em Curitiba (Editora Rocco, 172 páginas), de Cristovão Tezza. 43 anos, escritor catarinense radicado na capital paranaense. No livro, o filho de Rennon desvenda a vida secreta de seu austero pai, um professor universitário "que passou cinqüenta anos polindo a própria estátua", como diz o filho.

O narrador mostra ao leitor as cartas do pai a uma atriz famosa, Sara Donovan. As cartas vão passando da pura formalidade a mais deslavada intimidade. Além disso, o filho fala com amargura e ironia sobre a mãe subserviente ao pai, sobre a irmã que fugiu com um cabeludo e nunca mais apareceu: e de si próprio, um ex-delinqüente, que vendia "pó para os ricos e maconha para os pobres" e vivia sendo espinafrado pelo pai aparentemente exemplar. "O que, vendo-se do avesso, é um álibi exato: quem não seria perfeito com filhos incompletos assim?", pergunta. "Meu livro é uma visão dos fracassos da classe média, que chegou a sonhar algo nos anos 60. E é também uma história de amor", define Tezza, autor de bons romances, como Trapo, Juliano Pavollini e A Suavidade do Vento.

Suavidade, aliás, passa longe dos livros do americano Charles Bukowski, morto de leucemia no ano passado, aos 72 anos. A novela Pulp (L&PM Editores, 184 páginas, tradução de Marcos Santarrita), seu último trabalho, não foge à regra. O protagonista é um detetive chamado Nick Belane, que anda de Fusca por Los Angeles, cobra seis dólares por hora, é grosso, vive numa espelunca e resolve seus casos de maneira nada ortodoxa. Os outros personagens são a Morte (pressentimento?), o escritor Céline e um tal de Pardal Vermelho, red sparrow - uma brincadeira com o nome da editora americana do livro, a Black Sparrow. Aliás, pulp, na gíria americana, quer dizer literatura barata. Na verdade, como se diz em nossa gíria, é um barato...


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