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O Estado do Paraná
Curitiba, 3 de dezembro de 1995
Uma paixão vista sem piedade
ADÉLIA MARIA LOPES
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência,
mesmo quando a arte imita a vida? A dúvida vem a propósito
de Uma noite em Curitiba, o mais novo romance de Cristovão
Tezza. Como toda ficção, Tezza desde sua estréia
literária camufla fatos reais com fantasia. E neste romance
é divertido acompanhar os recursos que ele usa para romancear
a paixão entre a atriz Sara Donovan (só o som aberto
do "a" lembra seu nome real) e o professor Frederico
Rennon. Quem são os reais protagonistas? Revelar, jamais.
Cristovão Tezza, que na juventude foi ator de teatro, conta
a historia através do filho do professor Rennon. E conta
sem dó e nenhuma piedade, do começo ao fim, pela
outrora paixão do velho. No começo, já vai
avisando que está contando as intimidades do pai (achou
as cartas amorosas no cmputador) para ganhar dinheiro. E, de repente,
o leitor está diante de uma narrativa entremeada de suspense
e sarcasmo.
Frederico Rennon - historiador convertido em "pombinho temporão
apaixonado", do corpo docente da Universidade Federal do
Paraná (onde, aliás, o próprio escritor leciona)
- é descrito como um homem de 51 anos que "nada tem
contra o prazer, porque nunca pensou nele". Margarida, 42
anos, a exata mulher do lar e que parece ter por única
predileção assistir filme francês no Cine
Luz, completa o casal. Os dois têm um filho, o narrador,
que aos 23 anos descobre o triângulo amoroso.
Em rápidas pinceladas dos personagens já se tem
a classe média curitibana, que lota o Guairão para
ver comédias digestivas com atores de tevê e depois
vai jantar no Tortuga. Em sua morada a verdade não habita,
pois "a familia não pode ser o território da
verdade, ou não sobreviverá". Cruel, o narrador.
Cruel e bisbilhoteiro. Acessando o micro do pai, descobre o renascimento
de um amor do velho datado de 25 anos atrás. E mais ironia
vem pela frente, agora do professor Rennon ao se defrontar com
o tempo. "Rigorosamente nada no universo é mais poderoso
do que a própria imagem", escreve em uma de suas cartas
amorosas, e depois conclui: "Um homem em pé é
o mais complexo projeto arquitetônico da civilização".
Mais tarde terá outra tirada filosófica, ao responder
a si próprio que não há diferença
entre um seminarista e um revolucionário: "Um homem
que tem uma missão a cumprir é um garoto de recados
metafísicos".
A narrativa, intercalando a ótica do pai e do filho em
relação à atriz Sara (Maria) Donovan, cativa
o leitor. O romance de tal forma absorve esses personagens que
a figura materna atravessa a trama com um comportamento inexplicável.
O leitor (ou leitora) espera dela algo mais que o narrador deixa
a desejar. Ou a vida, fora dos romances, explica?
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