Caótico
Blog de Inácio França, 4 de janeiro de 2012


Trapo

Inácio França

Ler uma obra da maturidade de um autor e, logo em seguida, um dos livros do início de sua carreira pode ser uma ótima experiência de aprendizado para um autodidata como eu. Foi isso que descobri enquanto imergia nas páginas de Trapo, romance que levou a crítica literária brasileira a ficar de olho em Cristovão Tezza na segunda metade dos anos 80.

Comecei a leitura de Trapo assim que publiquei o texto sobre O filho eternolivro com o qual ele ganhou os prêmios literários mais relevantes e consolidou seu nome na literatura brasileira deste início de século. Com a leitura de um encangado no outro, deu para perceber claramente as virtudes aperfeiçoadas com o tempo e os defeitos, eliminados depois de parágrafos e mais parágrafos de polimento.

Reconheci nesse livro de Tezza alguns elementos de Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño e de certa literatura argentina, principalmente textos de Ricardo Piglia lidos há duas décadas por indicação de Paulo Goethe. A figura do jovem poeta descabelado, suicida aos vinte e poucos anos por alguma razão misteriosa, é quase uma lenda na noite curitibana. Trapo é tido e havido como gênio, mesmo que seus escritos jamais tenham sido lidos ou publicados.

Um pacote dos seus textos inéditos vai parar nas mãos do acanhado professor Manoel, aposentado que se considera culto e medíocre a um só tempo. Ao mergulhar na intensa e curta vida do suposto gênio, Manoel oxigena sua própria vida sentindo-se um personagem de romance policial ao tentar entender a razão do suicídio aparentemente sem sentido.

Tezza alternou duas primeiras pessoas. Ora o professor Manoel junta os cacos da vida do poeta por meio da leitura dos textos do pacote, ora o próprio Trapo clama, desabafa, sonha e ama em suas cartas, manifestos ou versos empacotados pouco antes do suicídio.

Apesar do risco de usar dois estilos alternadamente, em nenhum momento o autor perde a mão ao narrar, sua principal virtude literária, já percebida pelo crítico Wilson Martins há 23 anos.

Os problemas de Trapo estão nos excessos que ele usa mão para, acredito, caracterizar personagens ou situações.

Dois exemplos desses exageros de Tezza aos 30 anos: o professor, acomodado e tímido, usa inúmeras vezes a expressão “sou um homem sem iniciativa” para se definir ou se justificar. Não parei para contar, mas garanto que não foram menos de 10 vezes. Até sua mãe aparece para reclamar que o filho “não tem iniciativa”. Repetitivo e cansativo, chega a soar como um bordão.

Ainda no início, na cena em que a vida de Manoel é invadida pela dona da pensão onde Trapo morou e se matou, o autor recorre às mesmas palavras diversas vezes para construir os preconceitos do professor e sua agonia diante da intrusa e do pacote que ela carrega.

Também estão presentes em Trapo as dores da paternidade e das relações pai-filho, afinal esse romance foi escrito pouco depois do nascimento do seu filho com síndrome de Down, foco de O filho eterno.

Ler o livro mais recente é compreender o antigo. A recíproca é verdadeira. Identifiquei nos principais personagens de Trapo, o poeta suicida e o professor hesitante, diversas características presentes também no pai de Felipe, personagem do premiado romance escrito mais de 20 anos depois.

Arrisco, inclusive, dizer que reconheci em ambos personagens, o pai/Tezza, um homem que, ao escrever esse livro, entrava na casa dos 30 anos com um filho pequeno, um homem que já havia deixado a vida de mochileiro pela Europa, sabia que pretendia viver de escrever, mas talvez por não acreditar que isso fosse possível, sofresse com a perspectiva de envelhecer como um aposentado que não realizou seu potencial.


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