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A NOTÍCIA
Joinville, SC, 19 de maio de 1991.
TRAPO: QUEM AGRIDE É A VIDA OU O ROMANCE?
Lauro Junkes
Constitui sempre uma experiência agradável encontrar
na leitura de uma obra literária algo mais do que esperávamos.
Já conhecida Cristovão Tezza (Lages/Curitiba) de
romances como "O Terrorista Lírico" ou "Ensaio
da Paixão". Mas a leitura de "Trapo" (Editora
Brasiliense, 1988) ofereceu-me renovada idéia da dimensão
do romancista.
Difícil torna-se definir a essência básica
dessa narrativa: o protagonista será o Trapo/Paulo, que
afinal não chega a entrar em cena, permanecendo sempre
a presença ausente, o morto vivo, o distante presente?
Ou será fundamental o professor Manuel, narrador/condutor
básico, e seu ambíguo relacionamento com Izolda?
Ou pretende o autor centrar nossa atenção no complexo
desencontro da vida na civilização urbana? Talvez
seja tudo isso e mais a intensa sensação de que
no romance todo palpita, pulsa, vibra intensamente a vida - essa
vida postergada por convenções, aparências
e status, negócios e pragmatismos.
Observe-se desde logo que Tezza criou um romance metapoético,
um romance que se faz, abordando a própria feitura do romance.
Recebendo inesperadamente o espólio literário dum
jovem poeta de vinte anos, "marginal" e revolucionário,
o sóbrio e velho professor aposentado, Manuel, enquanto
organiza o material e pesquisa informações, vai
buscando e discutindo a própria construção
do romance. Este compõe-se, basicamente, da montagem paralela
de duas linhas narrativas: de um lado, a própria tarefa
do inventariante, suas relutâncias de homem "sem iniciativas",
seu envolvimento e gradativo assumir da função,
desdobrando-se então em detetive - sempre confrontando
fatos e situações em seu "fichário",
"computador" ou "filtro mental" - e em psicanalista
- liberando os fantasmas da privacidade de cada um, como Izolda,
Hélio, pai de Trapo, pais de Rosana; de outro lado, o entremear
de textos de Trapo - cartas, poemas e contos. Em tudo vai claramente
predominando a cena dramática, o diálogo quase permanente,
o que evita qualquer distanciamento, desenrolando-se a cena sempre
em presença, aqui e agora.
A competência do romancista impõe-se irrecusavelmente
nesse desenrolar dramático, em que personagens entram sucessivamente
no palco, atuam, se caracterizam viva e vigorosamente, preservam
suas cosmovisões diversificadas, sem nenhuma necessidade
de narrador intervencionista a descrevê-las. Aliás
o bakhtiniano romance polifônico, com seu entrecruzar de
muitas "vozes", está muito bem exemplificado
na narrativa de Tezza, pela montagem harmonizante entre registros
tão diversos como: o velho e sistemático professor
de língua e literatura, aposentado e viúvo; a fogosidade
vital reavivada de Izolda, mulher popular e de pouca cultura,
mas bem vivida e de fina percepção psicológica,
adquirida como dona de pensão; o trágico e complexo,
pragmatista e convencional mundo familiar do "grosseiro"
empresário Fernando e do promotor Fontes; e todo aquele
fervilhante universo jovem do bar Bodega, sobretudo o pulsar irreverente
e inconvencional doa vida e da arte em Trapo/Paulo.
Essa polifonia de vozes pode processar um múltiplo revezamento
de tonalidades, de cena a cena, desde a frieza, a ironia, a irreverência
até a sentimentalidade e a tragédia. Isso porque
o narrador básico, Manuel, não impõe sua
voz monológica, mas se abre ao dialogismo permanente, pois
ele mesmo admite que "nunca sou eu - sempre os outros por
trás de mim" (p. 195) e ele, mesmo angustiando-se,
atende ao impulso de "sair de mim mesmo para o mundo dos
outros" (p. 90). Em meio a tudo, o professor/narrador precisa
conservar amplo jogo de cintura para, na sua idade, circular com
desenvoltura entre meios, mentalidades e linguagens de tanta diversidade.
Trapo emerge como figura que, não obstante a presença
de seus textos, vai-se delineando "in absentia", apenas
na visão dos outros, o que mais carrega sua ambigüidade.
Ele é jovem, insubmisso, renovador, quer matar a poesia
a porrada e tornar-se o maior escritor do mundo. Seu romance com
Rosana por vezes parece puro relacionamento platônico, pretexto
para criação literária (não fosse
a tragédia evidente), resultando até mesmo num poema
de nomes, como um pequeno inventário já pode sugerir:
Rosana, Rosa, Rosante, Rosânida, Rosaflor, Rosance, Rosálida,
Roseira, Rosapânico do Trapo, Rosabrupta, Rosaminha...
Paralelamente, o poeta "romântico" revela uma
aguda consciência poético-social, sobretudo nas acusações
dirigidas abertamente aos órgãos oficiais de cultura
e ao monstro devorador que é o Sistema. De modo geral,
transparece um confronto entre literatura, arte, poesia - de um
lado - e negócios, posição social, pragmatismo,
de outro.
Enfim, "Trapo" inscreve Cristovão Tezza entre
os romancistas brasileiros de primeira linha, pela estruturação
estética da narrativa, pela densidade polifônica
obtida, pela convicção com que as personagens se
impõem, pela naturalidade com que o palavrão se
incorpora à linguagem literária, pela intensa vibração
da vida que obtém e por outras tantas razões que
cada leitor especificará na sua concretização
pessoal da narrativa.
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