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REVISTA LETRAS
Publicação do Curso de Letras do Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.
Nº 37 - 1988 - pp. 293-304
TEZZA, Cristovão. Trapo. São Paulo, Brasiliense,
1988.
Elisa Campos de Quadros
A publicação de Trapo pela Editora Brasiliense
é auspiciosa por várias razões. A literatura
brasileira anda francamente em baixa no mercado editorial. Os
editores preferem investir em obras e autores cuja vendagem já
vem assegurada pelo sucesso fora do Brasil. Além disso,
este novo livro traz um sopro original e embora estivesse pronto
desde 1982, não perdeu nada de sua atualidade enquanto
ficou em compasso de espera para publicação. Perdemos
nós os leitores que não pudemos apreciá-lo
antes.
Trapo é diferente, agarra o leitor em laços de terna
e comovida simpatia, porque, cheio de humanidade, mistura amargura
e humor em dosagem perfeita. Servido por esplêndida técnica
narrativa, moderna e ágil, o texto apodera-se verdadeiramente
do leitor, que passa a comungar, de estalo, com os dramas dos
poucos personagens que habitam aquele espaço ficcional.
Aliás, também a crítica especializada não
lhe regateou aplausos. "Rara competência", escreveu
a seu respeito o crítico carioca Esdras do Nascimento,
no jornal O Globo. "Dono de uma narrativa saborosa e envolvente"
afirma, em artigo, a revista Veja. "Sua narrativa é
fluente e sedutora" comenta o Prof. Carlos Alberto Faraco
em O Nicolau. "Cristovão Tezza se realiza no romance"
confirma Adélia Maria Lopes, entrevistando-o para o jornal
O Estado do Paraná.
Tezza não é um escritor principiante, muito pelo
contrário, avolumam-se já os títulos de sua
autoria: O Terrorista Lírico, A Cidade Inventada, Gran
Circo das Américas, Ensaio da Paixão. Tendo
sido premiado em concurso da Petrobrás, terá proximamente
sua obra Aventuras Provisórias lançada pela Editora
Mercado Aberto. Atualmente está às voltas com sua
mais recente criação, Juliano Pavollini.
Realmente o autor possui grandes méritos literários,
mas é em Trapo, particularmente, que demonstra sua
agudeza, penetração e inteligência, com pleno
domínio de recursos expressivos, ao selecionar os dados
essenciais de sua criação e deles dispor a seu talento.
A temática da obra é de natureza eminentemente urbana.
O mundo urbano, povoado de pessoas voluntariosas, violentas e
obstinadas, é o palco onde, inconsciente ou, pelo menos,
involuntariamente, os seres destroem a própria e a alheia
felicidade. O tratamento dessa temática é marcado
pela capacidade singular do escritor de devassar a condição
humana na sua miudeza cotidiana. Ressalta ai a preocupação
em sondar, explicar e desvendar mistérios e inquietações,
incertezas e conflitantes forças que desnorteiam o espírito
dos indivíduos e alteram os rumos de cada destino. São
reflexões sobre a vida, o mundo, a grandeza e a mesquinharia.
O metabolismo do romance é imposto por um espírito
notoriamente anticonvencional. Em vez de reproduzir a história,
narrando-a, o narrador cria. Uma criação que se
faz espontânea, a partir de cada lance. Uma descoberta leva
a outra, um fato pedindo o seu desdobramento ou sugerindo a presença
de uma variante. Ao final do livro, o leitor percebe que o que
acabou de ler é o projeto de um romance esboçado,
pelo narrador, durante a narrativa. A obra fora concluída
e... ja lida.
Numa magistral análise do comportamento e dos estados de
alma, Cristovão Tezza traça os perfis psicológicos
de um rapaz e de um velho professor, opondo em discursos distintos
suas distintas personalidades. Com o emprego de interessante processo
narrativo e lingüístico, a obra alterna em contraponto,
duas narrativas. Uma, de caráter episódico, é
construída pelo registro das desvairadas cartas de Paulo,
jovem rebelde que se autodenominava Trapo e que se suicidara.
Outra, de caráter orgânico, constituída pelos
eventos que se passam com o pacato e acomodado Prof. Manuel, desde
que entra em contato com os escritos do jovem suicida.
As personagens, muito bem delineadas, não são introduzidas,
apresentadas. Aparecem "ex-abrupto", expõem ação
e pensamento, julgam-se e são julgadas. São surpreendidas
como são, sem o interesse de torná-las heróis
ou anti-heróis. São personagens divididas entre
o desespero, a volúpia sincera do amor, o comodismo insípido,
o abismo moral e a perplexidade. Percebem ser, o que não
desejavam ser, concluíndo que viveram uma vida opaca, destituída
de grandeza.
A herança literária de Trapo chega ao Prof. Manuel
por intermédio de Izolda, mulher de modos rudes e aparência
vulgar, dona da pensão onde o rapaz viveu e morreu. O velho
professor, posto em desassossego pelos escritos, olha-os inicialmente
com timidez e desconfiança, depois com admiração
e amor. Começa a valorizar a vida quando espreitado pela
morte do jovem. Trapo passa a integrar e transformar a existência
do professor. Manuel desperta para conhecer a sua própria
solidão, o que o leva a redimensionar o ramerrão
cotidiano. Nesse estado de espírito caminha por dentro
de si mesmo, auto-analisa-se, recompõe várias etapas
da jornada de sua trajetória. Recapitula, evoca, critica-se,
vai do seu ego ao dos outros. Enxerga-se tal como é: um
tipo produzido aos milhões de exemplares. Um sujeito de
existência cinzenta, alimentado por esperanças e
anseios que a vida, lentamente se empenhou em sufocar.
Além de sua sincera paixão por uma jovem misteriosa,
cuja voz jamais se ouve na narrativa, os escritos de Trapo encerram
praticamente toda sua biografia. A existência atribulada
de um rapaz de 20 anos, amante da literatura, criador da "mata
poesia" e do "Realismo Fossálico". Um jovem
que prega, acima de tudo, o direito de ser o que é e como
é. Um insubmisso à ordem imposta e às limitações
que contrariam a natureza humana. As cartas expressam um protesto
veemente contra a estupidez dos homens em suas várias manifestações.
Em versos tradicionais ou de vanguarda ou ainda desenvolvendo
extravagâncias filosóficas, numa linguagem, às
vezes, estapafúrdia de poeta drogado, Trapo se rebela,
principalmente, contra a sociedade institucionalizada que não
escuta nem, se escutasse, entende os sonhos, os anseios, o inconformismo.
Em vida o jovem debateu-se contra disciplina hipócrita,
o moralismo de fachada, a mediocridade burguesa da vida cotidiana
numa cidade fechada e preconceituosa como Curitiba. Gota a gota
os textos destilam os horrores dos tormentos interiores, dos ódios
cultivados reciprocamente e que provocam a também recíproca
destruição. Trapo não se reconcilia com a
vida: morre. Suicida-se misteriosamente. Sua imolação,
porém, não é vã. Os escritos que deixa
transmitem o perigoso poder da palavra. Constituem o sortilégio
mediante o qual Manuel se transforma, muda o seu destino e aproxima-se
de Izolda. A literatura é "uma arma e, do mesmo modo
que o revólver, mata, assalta, corrompe e faz justiça
com as próprias mãos", diz Paulo em uma carta.
A aproximação absolutamente casual de Trapo, Prof.
Manuel e Izolda, representa a busca da justa proporção
que, afinal, a palavra escrita oportunizou.
Essa narrativa densa e bem construída, confirma a vocação
de bom escritor de Cristovão Tezza. Dá prazer ao
leitor mais exigente. Ë mais do que uma boa construção
sobre uma boa idéia. Dispensa genealogia e pósfácio.
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