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Jornal da Tarde
São Paulo, 5 de novembro de 1988
O mundo do romance (II)
Wilson Martins
Visto na perspectiva de sua história crítica, o
romance brasileiro situa-se em plano de qualidade e volume que
se compara vantajosamente com o dos demais países americanos,
juntos ou separados, sem excluir os Estados Unidos; lido na produção
corrente, ele sugere o desalentado epigrama segundo o qual todo
o seu futuro estaria no passado. Trata-se, bem entendido, de uma
depressão cíclica, normal e previsível no
desenvolvimento das literaturas, confirmando mais uma vez a lei
evolutiva outrora detectada pelo injustamente menosprezado Ferdinand
Brunetière: não há lugar, na criação
literária, para o florescimento simultâneo de mais
de um gênero; as épocas de esplendor teatral são
comparativamente pobres em poesia e ficção, as recíprocas
sendo igualmente verdadeiras no que se refere às demais
possibilidades.
O romance brasileiro não está imobilizado na impotência
absoluta, mas na repetição incoercível, oscilando
desordenadamente entre dois pólos magnéticos esterilizadores:
de um lado, a ruminação convencional e anacrônica
de fórmulas esgotadas, como em Ivan Bichara Sobreira (Tempo
de servidão), Geraldo França de Lima (A janela
e o morro) ou Elisa Lispector (Além da fronteira),
todos publicados em 1988 pela editora José Olympio - e,
de outro lado, a busca frenética da originalidade gratuita
e arbitrária, como em Hugo Almeida (Mil corações
solitários. São Paulo: Scipione, 1988), vencedor,
este último, do Prêmio Bienal Nestlé de Literatura
Brasileira, cujas comissões julgadoras, em todas as categorias,
mostraram-se este ano compreensivelmente atraídas, à
falta presumível de jóias autênticas, pela
bijuteria literária. Assim, entre os contistas, o primeiro
lugar foi conferido a Marcos Gagno por um pastiche mecânico
de Guimarães Rosa (A invenção das horas),
apresentado como "livro que nasce clássico",
enquanto Antônio Barreto foi o poeta vitorioso (Vastafala),
pois, segundo Ledo Ivo, relator da comissão julgadora,
"impõe-se como uma voz nova na poesia brasileira",
graças à sua descontração, descondensação,
desconcentração e desestruturação
- e ainda com a alegria do seu mal dizer e as galas e graças
de sua criativa galhofa. Tais elogios negativos soam antes como
outros tantos "deslouvores" ou galhofas criativas. São
também edições Scipione, 1988.
Tudo é possível, mas, voltando ao romance, há,
pelo menos, dois autores dentre os que apareceram no mesmo período
em que podemos depositar tentativamente as nossas esperanças:
Aércio Flávio Consolin (Vôos do coração.
Campinas: Pontes, 1988) e Cristovão Tezza (Trapo.
São Paulo: Brasiliense, 1988), ambos literariamente imaturos
(o que nada tem a ver nem com a idade, nem com as experiências
anteriores), hesitantes e desajeitados, mas revelando desde logo
o instinto narrativo e o olho ficcional sem os quais tampouco
poderá existir romancista digno desse nome. Qualidades
nativas que faltam, precisamente, a Geraldo França de Lima
e Ivan Bichara Sobreira: estes "contam histórias"
por escrito mas não escrevem o romance e, como diria Rilke,
não morreriam se deixassem de escrever. Ora, o romance
só pode configurar-se como tal se for obra de estilo, nos
dois sentidos da palavra, quero dizer, enquanto texto literário
de alta qualidade, em que nenhum deles se distingue, e enquanto
técnica propriamente dita, que vai da naturalidade dos
diálogos à verossimilhança das situações,
passando, claro está, pela invenção da intriga
e pelo interesse humano. Quanto a Elisa Lispector - repetindo
o que ocorre com outra Lispector ainda mais célebre - reescreve
o que se tinha por "romance psicológico" na década
de 30, em contraposição ao "romance social"
ou documentário dos nordestinos. É o romance de
pura ruminação interior, sem o travejamento dos
fatos que a justifiquem e expliquem para dar-lhe realidade.
Agrilhoando-se desnecessária e inexplicavelmente num título
infeliz e numa capa mais sugestiva de subliteratura que de literatura,
Aércio Flávio Consolin estruturou o romance como
uma sucessão de contos justapostos, precariamente unificados
pela figura do protagonista no processo perturbador da educação
sentimental. Contudo, podemos situá-lo em bom lugar na
estante dos nossos estudos da infância e adolescência
em modesta cidade do interior, com os seus preconceitos (insidiosamente
solapados pelo cinema local), o grupo escolar com os pequenos
dramas sufocados, o centro de predomínio moral e religioso
representado pelo vigário (também "contestado"
implicitamente pelo cinema e pelas transformações
fisiológicas da meninada), as lutas da vida pela vida num
família de classe média urbana, e assim por diante.
Aí estão os elementos do mítico "grande
romance brasileiro" que todos desejam escrever e todos gostariam
de ler - mas sem o misterioso fator aglutinante que poderia elevá-los
à categoria de texto literário que se impõe
e permanece. Aércio Flavio Consolin é nome a guardar,
como costumava dizer Sérgio Milliet para contornar as suas
perplexidades de crítico, embora não se possa garantir
que a posteridade guarde o romance entre as suas obras significativas.
É certo, por outro lado, que tampouco se poderá
garantir o contrário.
Alguma coisa nova, realmente nova, na temática, no estilo
e na criação dos personagens foi introduzida por
Cristovão Tezza, em quem o instinto literário é
tanto mais inegável quanto pode ser responsabilizado pelo
excesso caricatural na configuração dos protagonistas
e pelas lufadas de fantasia juvenil que contrabalançam,
enriquecem, mas também comprometem, aqui e ali, o indispensável
tropismo realista da narrativa. Não resistindo aos seus
impulsos sardônicos, à visão irônica
e ao que se poderia chamar, à falta de melhor termo, a
sua "ideologia de romancista", o autor "perde-se",
às vezes, no excesso de literatura, assim como, no cinema,
os personagens desaparecem quando caminham na direção
dos holofotes acesos. Em uma palavra, ele tem os defeitos de suas
qualidades, defeitos poucos, acrescento desde logo, e, em certo
sentido, inconseqüentes, em face de qualidades inegáveis.
Contudo, o simples fato de que escritores experimentados como
Elisa Lispector, Ivan Bichara Sobreira e Geraldo França
de Lima não hajam superado a fronteira invisível,
e aliás movediça, que separa a subliteratura da
literatura, sejam quais tenham sido os seus esforços bem
intencionados, cria uma conjuntura em que Cristovão Tezza
e Aércio Flavio Consolin tendem a beneficiar-se com o benefício
da dúvida e a indulgência do julgamento. Trapo
será, nesse conjunto, o único "romance do nosso
tempo", falando um idioma narrativo que evidencia sem remédio
o correspondente anacronismo dos demais.
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