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JORNAL DE BRASÍLIA
Brasília, 12 de agosto de 1988
Mais sabor ao bolo oco da literatura
Carlos Tavares
Aparentemente uma mera tentativa de fragmentar o discurso ficcional,
fugir do ramerrão textual em que mergulharam escritores
de uma geração marcada pelo esforço de inovar
ou copiar antigos mestres da literatura nacional ou estrangeira.
À primeira vista um simples exercício metaliterário;
desejo de traduzir o ceticismo e o delírio de uma geração
dispersiva, aérea e sem ideais, a não ser a própria
agonia, a droga, a melancolia fria e nublada de uma Curitiba repleta
de transeuntes vagotônicos e angustiados.
Mas em Trapo (Ed. Brasiliense. coleção Circo
de Letras, Cz$ 1.785,00). do curitibano Cristovão Tezza
(O terrorista lirico, A cidade inventada e Ensaio da paixão),
afora todos esses elementos, em geral usuais e correlacionados
com os grandes temas do romance, da poesia, da obra de arte em
si, que são a morte, a loucura, o amor, a vida, sobressai-se
o punho poético de Tezza. catando nos blocos da rocha bruta
da criação, aquilo que Mallarmé chamava 'pedras
de toque".
Amontoando-se as arestas da matéria utilizada por Tezza
(uma incursão na autocrítica, na autobiografia e
na determinação de criticar um grupo de escritores
brasileiros que se perderam na sede do vanguardismo e nos superficiais
embates com o imaginário) nos escaninhos dos rascunhos
de sua viagem pelo romance moderno, nota-se que a sua gramática,
semântica abrupta e ambígua impregnando-se na postura
límpida. modesta e racional do professor Manuel, narrador
da história, em contraponto com o desvario verborréico
de Trapo, um projeto de poeta perdido na poeira das buscas, foi
o caminho que o escritor encontrou para questionar os vários
aspectos da obra de arte, e também da vida.
Um professor de segundo grau aposentado. viúvo e sedentário;
a dona de uma pensão que tem tudo para ser a mãe
de uma legião de solitários edipianos: um jovem
problemático, sensível, com cancha de poeta e a
própria literatura são os ingredientes básicos
dessa poção romanesca sulina que veio a lume mês
passado para dar mais sabor ao bolo literário do país.
Trapo é uma verdadeira colcha de retalhos de temas e referencialidades.
Como exemplo de um desses tecidos, o da consciência da gratuidade
da droga como alternativa para suportar-se a vida e uma leitura
dos males que o 'sistema", ou a família, sociedade,
impuseram ao jovem dos anos 70/80, Tezza tece a sua visão
com... "a alegria de simulacro das noites muito tristes,
a corrida sem chegada de todos os loucos do mundo - oh irmãos
da burguesia, carinhosos filhos da droga e da burrice, herdeiros
às avessas dessa obra monumental! Fazei vosso trabalho,
estou convosco! Desmontai a pirâmide com vossos cascos inconscientes,
sede a contrapartida destes rumos programados, filhotes de papai,
galinhas de mamãe, destroçai sem saber o Grande
Oco...".
Utilizando a técnica da intertextualidade, do monólogo
interior e da diluição dos gêneros literários,
Trapo percorre a trilha romanesca do que há de mais moderno
na literatura sem se deixar cair na mesmice chata e enfadonha
dos imitadores do fluxo da consciência e da narrativa não
convencional. Para salvar-se do corriqueiro e não chover
no molhado, Cristovão Tezza investiu na forma, na prosa
poética e densa, enfeitando o roteiro do professor solitário
e do poeta suicida, com entradas metafisicas e existencialistas,
de uma maturidade literária quase ímpar no time
dos escritores brasileiros dos 30 aos 40 anos.
A Tezza quase nada escapa nas 207 páginas de Trapo. Através
do posfácio de Paulo Leminski o leitor se inteira de uma
série de autores da literatura beat norte-americana que
influenciaram o curitibano: o gosto pelo grotesco, o lado estúpido
da existência; a forma crua de tratar os personagens etc.
Mas não é isso. Trapo é uma história
rica em densidade psicológica. indo às raias da
catarse e do desnudamento dos traumas freudianos, um vôo
pelos esgotos do âmago e a expulsão de dezenas de
monstrengos do sótão do ego.
O personagem Trapo não aceita a família que para
ele representa o sistema e o mal, Para "matar" o pai,
que considera frio e corrupto. homenageia o conto O cobrador,
de Rubem Fonseca, e se entrega aos carinhos e cuidados de lzolda,
a maquilada dona da pensão em que mora. É Izolda
quem resgata os escritos de Trapo - cartas, poemas inacabados,
bilhetes, frases soltas, contos e trechos de romances, e entrega
ao professor Manuel, a quem persuade para publicar o livro do
suicida ou escrever algo biográfico sobre ele, um jovem
de 21 anos que mete uma bala na cabeça.
O livro de Tezza questiona a obra inacabada, a função
da literatura e a divisão dos gêneros, passeia pela
angústia do autor anônimo e sem editor e pela antiga
batalha de elaborar uma obra de arte singular, que se destaque
depois de um Proust. Joyce. Rosa, Pessoa. Frases como estas confirmam
a intenção do autor: "...a poesia, vítima
do desprezo universal"; "Ninguém lê edições
do autor'; "Escrever é coisa de tarado"; '...A
vanguarda de ontem olhava cinqüenta anos na frente. A vanguarda
de hoje olha cinqüenta anos atrás"; Não
suporto mais o anonimato. O tempo de Kafka já, passou",
etc.
Embora muito longe de ombrearse a um Borges, Cortázar,
Dionélio Machado. Guimarães Rosa, Murilo Rubião
etc. Cristovão Tezza acena com uma maturidade literária
das mais promissoras. Trapo é um hino à solidão,
uma reverência à consciência da difícil
tarefa de criar, uma crítica ao modernoso e à modernidade,
um extenso verso em prosa.
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