GAZETA DO POVO
Curitiba, 15 de abril de 1996

A INSUSTENTÁVEL SUAVIDADE DO VENTO

Miguel Sanches Neto

A leitura de toda a produção de Cristovão Tezza nos mostra que ele parte de uma literatura mais ingênua, crente nos sonhos de mudança imediata do mundo, para um adensamento de tensões: a literatura deixa de ser uma arma na mão de um escritor dublê de revolucionário - concepção muito cara a todos que passaram pelas experiências sufocantes do período militar -, para se tomar, numa fase de maturidade marcada pela desintoxicação ideológica, que poderia ser pensada a partir da publicação de Trapo (1988), na consciência da fatalidade do ato de escrever. Ele já não escreve contra algo, mas para exorcizar os seus fantasmas mais íntimos. A este período pertencem as suas obras mais bem realizadas. Não quer dizer que Tezza tenha abandonado os seus temas e suas experiências alternativos, mas sim que eles aparecem agora com menos romantismo, sob um olhar estético. Os anos loucos da ditadura militar continuam sendo a baliza histórica para tudo que este escritor escreve, é sua marca registrada e o centro de sua cosmovisão: "...pessoas desvinculadas do sistema de produção... marginais, hippies, desocupados em geral. Esse miolo parece que permaneceu na minha literatura, como se essas pessoas reservassem o que há de melhor na espécie humana. Uma reserva de revolta" (Jornal do Bancários, 1988).

A Suavidade do Vento (1991) é o momento, na sua bibliografia, em que técnica e tema aparecem num casamento perfeito. Este livro é uma espécie de síntese de todos os recursos e assuntos de Cristovão. Daí podermos considerá-lo uma sorte de eixo de sua produção. Se no nível estrutural encontramos a sua opção pela narrativa dupla, ou seja, por uma história dentro de outra história, no nível temático aparece a dificuldade do relacionamento humano, que é o seu assunto mais recorrente.

Cristovão trabalha com uma narrativa dupla que de certa forma tem suas raízes nos experimentos teatrais do tempo do Centro Capela de Artes Populares. Há urna supra-história, a de um autor que leva suas personagens para uma encenação ao ar livre, que contém uma outra história: a do inseguro professor Matôzo. A primeira funciona como um parêntese narrativo: ela abre o romance (prólogo) e a fecha (cortina). A divisão das partes deste romance - que contém ainda um "primeiro ato", um "entreato" e um "segundo ato - deixa evidente a sua filiação à dramaturgia. A história parentética trata de um escritor que vive uma experiência cinematográfica. Ele é o motorista de ônibus que leva os seus passageiros/atores para a representação de uma história que está em sua cabeça. O ônibus e a viagem são metáforas do ato criativo: o escritor traz consigo personagens que aos poucos vão passando da indefinição para a definição, ganhando consistência, até se tomarem seres com espessura humana. Assim, a partir do "primeiro ato", os diáfanos personagens que o escritor motorista libera de sua mente-ônibus entram em cena legando às sombras a situação inicial do criador que contempla suas criaturas. O escritor vai aparecer oculto na voz do narrador onisciente da história interna. Somente no final da narrativa ele ressurge para recolhcr os personagens que, na viagem de volta a Curitiba, se desmancham no ar.
Esta história parentética tem um caráter metalingüístico que faz com que A Suavidade do Vento seja também um estudo sobre a arte de escrever.

A representação teatral ao ar livre promove a abolição das fronteiras entre o público e os artistas e, conseqüentemente, da realidade e da ficção. Esta é a característica do teatro comunitário de Wilson Rio Apa que aparece devidamente incorporada neste romance de Tezza. Em Ensaio da Paixão (l986), Cristovão materializou as lembranças deste período de sua vida. Agora ele não se prende às histórias encenadas e vividas pelo Centro Capela de Artes Populares, como no romance de 1986, mas dá foros romanescos a recursos cênicos utilizados naquela experiência teatral.

Da história do surgimento dos personagens passamos para a deles. Matôzo é um prosaico professor de gramática que gasta sua vida entre a escola, o boteco e o seu quarto - habitado por monstros que o atormentam. O seu maior problema é a insegurança no relacionamento humano. Esta insegurança, que se manifesta de várias formas, cria uma couraça que o isola. Mesmo já estando em idade madura, o personagem é virgem. A virgindade é uma conseqüência desta sua dificuldade de convívio com o outro, O nome ridículo e graficamente errado (Josilei Matôzo) é outro problema. Josilei está sempre fugindo das pessoas, temendo o confronto. No entanto, mesmo na concha de seu quarto, ele ainda se vê cercado por uma pequena multidão de olhos zombeteiros, representados pelos monstros, todos de ordem imaginária, que o atormentam. Não existe nada de fantástico nestes seres, eles têm uma condição virtual no romance. São a materialização da brutal insegurança do personagem. Dividindo o mundo de Matôzo em dois: o público, em que ele foge (inclusive através da embriaguez) do confronto com o outro, e o privado, o seu quarto, veremos que estes monstros são uma extensão do espaço externo. A mente do acossado cria estes seres que constituem um olhar indiscreto sobre as suas misérias. E, enfim, a projeção do público no privado, operada por uma mente que sofre o trauma da perseguição. Matôzo é pois um produto do sufoco político dos anos 70.

Neste seu mundo à parte, emparedado entre a solidão e o olhar indiscreto, Josilei escreve um romance e se embebeda. A literatura para ele é como a sua obsessão pelo ponto ótimo: o desejo de uma tranqüilidade espiritual.

Uma vez concluído o romance (temos uma terceira história, a criada por Matôzo, também de natureza metalingüistica), Josilei sente uma leveza nunca experimentada. A súbita segurança que conhece é representada através da sorte no jogo. Ganha diversas vezes no bar, tantas e tão seguidamente que os parceiros resolvem acompanhá-lo a um cassino paraguaio, onde ele fatura muito dinheiro e depois perde quase tudo.
Cultivando o seu romance, fruto de sua interioridade, ele consegue encarar as pessoas. No entanto, esta transformação será momentânea. O autor arca com os custos editoriais do livro, faz a distribuição pela cidade, tendo que entrar em contato com as pessoas que começam a desprezá-lo. Percebe então que o sonho da superação das misérias através da literatura desemboca numa humilhação mais profunda. A suavidade revela-se confronto.
Este confronto é intensificado depois da publicação de uma entrevista mentirosa que Josilei dá a uma revista de Curitiba. Todos os seus conhecidos viram a cara para ele. Resta-lhe apenas sair da cidade. Mas acaba encontrando outra saída. Escreve uma carta para a revista dizendo que tudo não passou de um engano. Como ele assina a sua obra com o nome artístico de J. Mattoso, o que era uma tentativa de enobrecimento, credita o livro e a entrevista a um outro autor. Assim consegue ter o apreço dos habitantes da cidade. O livro não serviu para nada. Matôzo teve que renunciar a ele para garantir a sobrevivência.

A história de Josilei transcorre num período crítico da ditadura militar: 1971 e 1972. Mas não há referências a qualquer ato de resistência e perseguição. Percebemos um clima tenso apenas nas atitudes defensivas de Matôzo. Ele, que está constantemente fugindo das pessoas, preocupa-se com o que podem pensar de seu desajuste. Sendo um corpo estranho na pacata cidade, a relação do professor com a sociedade local reproduz as tensões entre a ordem imposta pela ditadura e os elementos dissonantes. Mas isso fica apenas sugerido.
A vida de Matôzo tem um sentido questionador e desestabilizador. Trabalha apenas meio período, vive sozinho e não possui ambição econômica nem social. Ele é um elemento em desacordo com o meio e o fato de ser professor o torna perigoso para a sociedade, pois constitui-se num poderoso foco de contaminação. A sociedade tenta excluí-lo através da calúnia, acusando-o de vender provas e de ser homossexual.

Embora Matôzo não tenha nenhum projeto político consciente, é possível pensá-lo como um contestador do sistema. Assim, a sua história pessoal tem uma afinidade com os questionamentos que alimentaram a geração florescida no período da ditadura. A discordância entre o professor e a comunidade coloca em cena o atrito entre o sistema e os desajustados. Cristovão está no seu território de sempre. A Suavidade do Vento pode ser lida como uma metáfora das relações de poder entre a coletividade e os indivíduos em desvio durante a ditadura.

O universo de Matôzo, assim como ele próprio, é incompleto. Um bom símbolo de sua vida é a sua casa, que ainda não está terminada e permanece na mais completa desordem. A insegurança em relação ao mundo se faz representar pela ausência do corrimão da escada que leva ao seu pequeno aposento. Vive, por isso, em constante perigo de queda. Ele também é um ser incompleto (virgem e solitário) que busca, através da criação literária, preencher o vazio que sente e assim se redimir. Quando acaba de escrever A Suavidade da Vento, que tinha sido a razão de sua vida durante cinco anos, sente-se totalmente vazio. Busca então uma outra ocupação, desiludido com o rumo que o seu livro, já impresso, havia tomado. Começa a pintar uma paisagem vista da janela, que ele chama de 'ponto ótimo'.

O 'ponto ótimo', uma de suas obsessões, é o local, a posição em relação ao ambiente. que lhe permite sentir uma certa estabilidade. No bar, na festa. no quarto. onde quer que esteja, ele procura sempre o ponto de equilíbrio. O "ponto ótimo" tem um poder estabilizador enquanto as dores de coluna e os torcicolos (sem nenhuma causa física) refletem o atrito com o meio. Estas dores, depois da rendiçáo do candidato a. escritor, desaparecem.
Vendo o seu livro tornar-se inócuo, ele recorre à pintura como uma tábua de salvação. Ânsia de equilíbrio. No final, quando se ajusta aos horizontes da cidade, rasga a tela, Só existe instabilidade enquanto ele resiste a se entregar. aos valores do sistema.

Josilei ficará em nossa memória como uma dolorosa imagem da impossibilidade de concretizar os sonhos num mundo que exige do indivíduo, sob pena dc exclusão, um enquadramento nas malhas da regularidade. Abrindo mão de seu livro, de sua carreira como escritor, da mudança para Curitiba, da redenção através da literatura, ele se deixa moldar. Se no início era um ser incompleto, que buscava a integridade através da literatura, no final ele se acomoda à condição de mutilado. Abandonando o projeto de se manter à parte devido à imposiçâo de um policiamento coletivo constante, Josilei consegue eliminar os seus monstros e se sentir aceito pelos habitantes do lugarejo. Mas o preço desta aceitação é alto: a desistência do que havia de mais autêntico nele. A revolta silenciosa do professor é vencida pelos olhos implacáveis da opinião pública. Como não pensar no conselho que Brás Cubas recebe de seu pai? "Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião de outros homens". Josilei renuncia às suas verdades íntimas, conflitantes. para corresponder à idéia que os outros fazem dele.

Há uma mudança que, aparentemente é positiva. Ele deixa de ser tímido, escorregadiço, isolado e esquisito para se tornar respeitado. confiante e desembaraçado. Em vez de fazer literatura ele se contenta com escrever sobre gramática num periódico local.

As relações entre censura e desvio servem para retratar, de forma indireta, o momento histórico. O tema do romance é uma metáfora da passagem dos projetos de vida altemativos para o tempo dos projetos burgueses. Neste romance, Cristovão reata de maneira mais distanciada e metafórica o eixo de sua cosmovisão (os anos de ditadura): o drama de Matôzo está inserido neste horizonte, mas é também o drama atemporal de quem tem que optar entre a revolta e a contemporização.



voltar