A notícia
Joinville, 1 de março de 1992
Ficção: intertexto dos monstros
Lauro Junkes
Há poucos meses comentei o apaixonante
romance Trapo, de Cristovão Tezza. Ao iniciar,
depois, a leitura de seu último livro, "A Suavidade
do Vento" (Record, 1991), parecia que aquele complexo jogo
da estrutura romanesca havia cedido lugar a uma narrativa linear,
comandada por um eu-narrador-encenador expositivo e orientador,
tradicionalmente intervencionista, conduzindo com segurança
(tateante) sua personagem: a história de Josilei Maria
Matôzo (J. Mattoso ou simplesmente Matozo), na sua trajetória
banal e solitária de professor de segundo grau numa cidadezinha
do oeste paranaense. A figura do professor impõe-se inicialmente
com manejo totalmente perceptivo do narrador, crescendo aos
poucos em autonomia. Embora professor, de certo nível
intelectual, quando a solidão não o fecha no seu
mundo pessoal, encontra-se com amigos, populares, no Snooker
Bar, no "jogo de general" ou na aleatoriedade do Cassino.
Mas, aos poucos, manifesta-se a complexidade das estruturas,
dos relacionamentos, das aparências solidificadas, até
explodir o drama arquitetônico, a própria construção
da ficção, concentrando-se o autor-criador e a
personagem autor na criação da obra literária
- o romance "A Suavidade do Vento". Matozo, em seu
universo pessoal, conduz-se pela consulta do "I-Ching"
(que fornece o título do romance), pela leitura identificadora
de "A Paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector,
companhia inseparável, intertexto essencial. Constituem,
ainda, contexto envolvente a música de Pink Floyd, a
passageira emergência do quadro surrealista de Bosch,
de certo modo perenizado nos monstros, e a busca obsessiva do
"ponto ótimo", entre o verde e o azul, ilusoriamente
perenizado na tela pintada.
A personagem do professor, não obstante sua quase ingênua
simploriedade, foge desde logo a qualquer consistência
constante e a originalidade criativa do romance de Tezza, sobrepondo-se
ao de J. Mattoso, explode, vigorosamente na medida em que se
expande a meta-narrativa, avultando mais a problemática
de como se faz um romance do que o próprio romance.
Sem menosprezo a habilidade sutil da criação de
uma personagem como Matozo - tímida, desastrada, desligada
do contexto real para consubstanciar-se na obra que cria, mas
ao mesmo tempo azucrinado cruelmente pelos monstros fantásticos
e volatilizando-se a busca ilusória da legitimação
de sua existência nos outros, o mérito essencial
desta narrativa de Tezza parece concentrar-se no seu agudo enfoque
da condição da arte, do romance, da criação
ficcional: como surge esse mundo novo - esse mundo paralelo
que agride o real - como tomam consistência as personagens,
quais as restrições e atritos, como se dá
o convívio do "imaginário" com o "real"?
Não se localiza, em parte alguma, a própria leitura
do livro por Matozo, sua composição verbal; mas
o problema coloca-se com o "parto" dessa gestação,
sua materialização no mundo concreto, seu aparecimento
na sociedade, no confronto com o "outro". Por isso,
J. Mattoso, a certa altura (p.98), está literalmente
na situação de "hipótese". Nascerá
a criação concebida, aceita pelo "outro"?
Consolidar-se-á o autor-criador? Esse nascimento é
torturante, com a "lâmina" dilacerando, pois
nele "tudo depende dos outros" e "um livro é
um ato de agressão, uma perigosa alternativa ao mundo
supostamente real" (177).
A questão candente que se levanta é: qual é
a função do autor, ou melhor, qual é a
identidade do autor? Matozo empenha-se cabalmente em consolidar
seu livro ("este aqui sou eu", p. 108), desconjunta
seu nome, sua personalidade, seu ofício de professor,
sua relação social na consistência da sua
criação, sente o fisgar do "torcicolo",
convive atrozmente com seus fantasmas (toda sorte de interferências
críticas que se materializam), monstros repelentes e
intrigantes, que desafiam e atormentam. O romance, então
na concretude de sua feitura, levanta séria interrogação
ao ensaio teórico de Barthes: "O autor está
morto". Desapareceu o autor? Dissolveu-se ele na figura
do narrador? Subsiste apenas então como enunciador de
relato ou impõe gradativamente, para recorrer a termos
de Bakhtin, o "criado" sobre o "dado"?
Já pronto o livro, escrito e publicado, Matozo "descobriu,
estranhando, que já era a obra de um outro" (145);
na sua "resenha crítica" sobre o romance, Tony
Antunes afirma de boca cheia que "não há,
definitivamente, nenhuma relação entre o autor
e a obra" (151), mas, ao mesmo tempo, sente que "pela
primeira vez na vida, graças a Tony Antunes, ele tinha
contorno" (160), além de o pensamento lhe mostrar
que Matôzo nem Matozo nem Mattoso existiriam sem a espreita,
o tormento e a instigação dos monstros (166).
O que é, então, a obra de arte? O que é
seu autor? Desafiadoramente parece tudo regredir então:
J. Mattoso, isto é, Jordan, não é Josilei
M. Matôzo, dentro do seu "projeto de reconstrução
completa da vida", que o faz "renascido do inverno",
descansando com o paradoxo de Clarice: "por não
ser, eu era" (188-9), apagando-se simultaneamente com os
monstros-fantasmas, para voltar o "professor" do "diálogo"
com os "outros" e ao "jogo interessante"
(que) é conversar!" (192).
Da aparência inicial quase ingênua, cresce o romance
para revelar um final de arquitetura narrativa inusitada e um
questionamento denso da consistência ficcional. Na ambigüidade
desse quadro, será tudo uma farsa, uma encenação
permeada de ironia? Desfaz-se, enfim, o autor na negação
e retratação de tudo o que "aparentou"?
Parece que o fulcro central alicerçava-se no problema
da criação imaginária, interfundindo-se
com o dialogismo sempre inevitável, a incontornável
relação eu/outro, projetando-se tudo em permanente
intertextualidade, tão solidamente manifestada no contraponto
do romance de Clarice Lispector.
A divisão da narrativa, na terminologia da representação
teatral, sobretudo com a abertura-prólogo e o desfecho-cortina,
insinua com aguda perspicácia a essência do estatuto
da ficção: o narrador-encenador chamando as personagens
à existência, conduzindo-as para o palco-cenário,
configurando-se o seu frágil e inconsistente ser, para
tudo, enfim, após o clareamento (fade in) e brilho, diluir-se
no escurecimento (fade out) sugestivamente cinematográfico,
processo semelhante mesmo ao da leitura que, lentamente, desperta,
evoca, confere vida a um mundo para novamente diluir-se tudo.
No habilidoso jogo arquitetônico dessas estruturas em
que o narrador envolveu a personagem-"autor" e o autor
envolveu o narrador-personagem-autor, não pode admitir-se
a atitude passiva dum leitor ingênuo, na linha de estrutura
de Matozo, mas exige-se a inteligente atividade estruturadora
dum leitor competente, "ideal", ou "modelo",
de um "superleitor", cuja enciclopédia esteja
competentemente informada para responder aos inesgotáveis
questionamentos técnico-formais ou sócio-existenciais
emergentes da segurança do romance. Esta é rápida
leitura preliminar. Só a figura dos monstros propiciaria
substancial e denso ensaio. Leitores inúmeros nele adestrarão
seu gosto e saber!