CORREIO BRAZILIENSE
Brasília, 6 de outubro de 1991.


ARMAZÉM LITERÁRIO

ANGÚSTIAS E SONHOS DE UM PROFESSOR INSIGNIFICANTE

Regina Dalcastagnè
Especial para o CORREIO

A Suavidade do Vento, de Cristovão Tezza, narra a incapacidade de um homem diante da própria vida

Um homem escreve um livro, e nele encerra sua terrível insignificância, sua completa inaptidão para a vida. Incapaz de manter um relacionamento amigável e descontraído na escola onde trabalha, ou no bar que freqüenta quase todas as noites, ele se esconde atrás da suposta superioridade de ser um escritor numa terra de ignorantes. Josilei Maria Matôzo, ou J. Mattoso, como assina sua obra, é um desajeitado professor de Português em um lugar qualquer do interior paranaense nos primeiros anos da década de 70. Abandonado numa terra quente, onde o barro "vermelho, grudento, invencível" toma conta de tudo, ele aguarda o desenrolar de sua própria história. Quem o largou ali, pra que encenasse sua tragicomédia, foi outro escritor, também paranaense, também professor de Português - Cristovão Tezza. O livro, que na verdade é dos dois, chama-se A Suavidade do Vento, e acaba de ser lançado pela Record.

Extraordinariamente tímido, a ponto de atravessar a rua para não ser obrigado a enfrentar o alegre matraquear de suas alunas, Matôzo faz o possível para evitar qualquer relação mais íntima na cidade. Para ele, é um sofrimento mortal ter que entabular um diálogo com quem quer que seja. Sem naturalidade, Matôzo ensaia cada gesto, imagina cada palavra, mas não consegue pronunciá-las. Uma enorme barreira o separa das pessoas, impondo-lhe uma solidão imensurável. Humilhado em sua insignificância, em seu despreparo para a vida, escreve um livro que deveria redimi-lo, transformando-o num grande homem, modificando toda a sua medíocre existência. Não é o que acontece.

Gargalhadas

Trancado em seu quarto imundo, habitado por garrafas de uísque quase sempre vazias e por irrequietos monstrinhos que se divertem atormentando-o, Matôzo investe tudo o que lhe resta na concepção de seu livro. Quando termina, já se sente um novo homem, diferente daqueles que o cercam, daquilo que sempre soube ser. Muda seu nome, envia os originais para uma editora paulista e se coloca ainda mais distante da gente do lugar.
Depois que o livro é publicado, anda com um exemplar dentro de um envelope amarratado durante dias, procurando ter a quem ofertá-lo. Ninguém parece muito interessado. E a barreira cresce. Torna-se intransponível no momento em que é publicada uma matéria sobre o livro - cheia de mentiras inventadas por ele próprio - numa revista de grande circulação. Todos passam a evitá-lo e Matôzo não vê como se aproximar daqueles que um dia ao menos lhe foram amigáveis. A vingança do livro, da notoriedade vislumbrada, se perde completamente e ele se descobre ainda mais só.
Depois de ver as pessoas eliminadas de sua vida ele se escora definitivamente em seu livro, em suas pretensões absurdas. Chega a pintar uma paisagem para pendurar no lugar da janela. Até mesmo o mundo o sufoca, com seu barro vermelho e seu pó asfixiante. Os monstros do seu quarto, felizes com seu desespero, saltam, no ar, dando cambalhotas e soltando terríveis gargalhadas.

Só a negação de tudo, do livro, do nome, da matéria na revista, da diferença, pode fazer com que Josilei Maria Matôzo sobreviva à sua própria história. O sacrifício se torna inevitável e Matôzo opta, enfim, por se enquadrar, por ser aquilo que esperavam dele, um insignificante professorzinho do interior que vai às festas dos alunos, escreve uma coluna sobre gramática no jornal da cidade e passa as noites corrigindo provas ou jogando general no bar da esquina.

Compaixão

Matôzo é herdeiro de uma angústia tão antiga quanto o próprio homem; daquele sentimento de impotência, daquela insignificância que gerou uma das maiores personagens da história da literatura - Akáki Akákievitch, o pequeno funcionário público russo que passa a vida inteira economizando para comprar um capote e que, depois de adquiri-lo, é desgraçadamente roubado. O conto, escrito por Nikolai Gógol na primeira metado do século XIX, chamava-se O Capote e seu infeliz protagonista inluenciou toda a literatura russa posterior a ele, incluindo nomes como Dostoiévski e Tchekhov.

Assim como Akáki Akákievitch, Matôzo tropeça nas palavras, na lama, nas pessoas, na vida. Enquanto um joga todas as suas expectativas num capote de lã, o outro se agarra como pode a um livro. Mas nem o capote, nem o livro os redimem, não os tornam aceitos. O único sentimento que ambos podem despertar é o de piedade - a compaixão daqueles que de alguma maneira acabam se identificando com seus tropeços amargos, com sua eterna inaptidão. Afinal, não são poucos os que não conseguem suportar a própria incapacidade de enfrentar o mundo tal como ele é, desprovido dos sonhos grandiosos e das ilusões mais baratas.

A Suavidade do Vento

A suavidade do vento de Cristovão Tezza, não o de J. Mattoso, sobre o qual pouco se diz - é um romance extremamente moderno, embora filiado a uma longa e antiga tradição literária, que pode começar com Gógol e chegar até Clarice Lispector, constantemente citada pelo protagonista. Abandonado à própria sorte por um narrador que vez ou outra reaparece no livro, num tributo ao meta-romance que nem sempre funciona a contento, Matôzo encena sua patética história. O enredo do livro não é mais do que um fio, tênue, a conduzir o drama da existência humana que ele personifica. Como todas as outras personagens do livro, Matôzo não possui passado nem futuro; o narrador simplesmente solta suas criaturas, "um bando trôpego de vento", num cenário feito de calor e de barro vermelho para, ao final, recolhê-las, deixando que se desfaçam suavemente, "diluindo as formas, evanescentes, ressonantes, translúcidas".

Crítica avaliza a competência

Antes mesmo de ser escrito, A Suavidade do Vento recebia o aval de três dos maiores nomes da crítica brasileira contemporânea. Roberto Schwarz, Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr., como membros da comissão julgadora da Bolsa Vitae de Literatura, aprovaram em janeiro do ano passado o projeto de romance apresentado por Cristovão Tezza. Quando enviou seu projeto, o escritor era mais do que uma promessa. Os sete livros anteriores já haviam firmado Tezza como um dos mais competentes ficcionistas da nova geração.

Ele estreou em livro em 1979, com o romance Gran Circo das Américas, editado pela Brasiliense. Seus três livros seguintes - dois romances e um volume de contos - foram publicados por editoras pequenas do Paraná. O reconhecimento nacional veio com Trapo (Brasiliense, 1988), história de um poeta curitibano e suicida de 20 anos (no qual o falecido Paulo Leminski se reconheceu). É uma experiência de metaliteratura; o romance se constrói sobre o espólio literário de Trapo e o relato de um velho professor, nas mãos de quem vão parar os originais.
Aventuras Provisórias (Mercado Aberto, 1989), outro romance, foi premiado no Concurso Petrobrás de Literatura Brasileira de 1986. Também em 1989 saiu Juliano Pavollini (Record), "memórias" de um jovem delinqüente. Depois de fugir de casa (rumo a Curitiba, claro), ser adotado por uma dona de bordel e fazer carreira como arrombador de casas, Juliano está na cadeia e relembra seu passado. Juliano Pavollini é o livro que sela a maturidade de Cristovão Tezza como romancista.

Entre os escritores de sua geração, ele se destaca por recusar um "minimalismo" formalista que, na maior parte das vezes, apenas mascara a falta do que dizer. Atualmente, Tezza inicia um novo romance, com o título provisório de O Fantasma da Infância. O livro já tem endereço certo para ser publicado: a Editora Record, que decidiu abrir um espaço entre seus incontáveis best-sellers e investir no autor curitibano.


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