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O ESTADO DE S. PAULO -
CULTURA
São Paulo, 12 de outubro de
1991
A TRAGÉDIA DO NONSENSE
Personagens marcados pelo isolamento moral
conferem ao livro de Cristovão Tezza,
"A Suavidade do Vento", um clima que lembra o subjetivismo
de Virginia Woolf e de Clarice Lispector, musas inspiradoras do
autor
LÊNIA MARCIA MONGELLI
Desta vez, o prêmio que permitiu a Cristovão Tezza
a criação de seu novo romance, A Suavidade do
Vento, veio pela Bolsa Vitae de Literatura, concedida em 1990.
Se a premiação o alegrou, não deve, contudo,
tê-lo surpreendido, habituado que está ao reconhecimento
público de seu trabalho desde, no mínimo, 1982,
quando o Ensaio da Paixão foi um dos laureados no
Concurso Nacional de Romance. Antes, já havia publicado
Gran Circo das Américas (1979) e O Terrorista
Lírico (1981). Portanto, era um escritor de certa forma
experimentado quando Aventuras Provisórias lhe deu
o segundo lugar no Concurso Petrobrás de Literatura de
1987. De lá para cá, Trapo (1988) e Juliano
Pavollini (1989) só fizeram aprimorar sua poderosa
voz ficcional e garantir-lhe a posição de destaque
que vem ocupando em nosso panorama literário.
Nascido em Lages/SC (1952), mas residindo há muito tempo
em Curitiba, onde é professor da Universidade Federal.
do Paraná, a prosa de Cristovão Tezza tem parentescos
marcantes com a de alguns companheiros de ofício, modernos
e contemporâneos, nacionais e estrangeiros num leque de
apelos que a torna dinâmica e fascinante: o gosto pela notação
de trivialidades cotidianas, à Dalton Trevisan; o pendor
para o fantástico e o absurdo de certa imaginação
hispano-americana; o subjetivismo obsedante e autodestrutivo de
uma Virgínia Woolf ou de uma Clarice Lispector, etc. Aliás,
esta última foi a musa inspiradora de A Suavidade do
Vento, quase inteiramente decalcado de A paixão segundo
GH., titulo várias vezes repetido ou insinuado pela personagem
central. Contudo nenhum desses resíduos de leitura compromete
ou sufoca a pessoalísslma trajetória romanesca de
Cristovão Tezza, marcada quase sempre por um acento trágico
que beira o nonsense (Trapo, Juliano Pavollini) ou por
aquela ironia entre cômica e sarcástica, reverso
freqüente da mesma moeda (Aventuras Provisórias).
Nesse mundo de contrastes, os seres resvalam do certo para o errado,
do bem para o mal, da alegria para a tristeza sem aviso prévio,
sem explicação racional, movidos por impulsos que
confundem os limites e liberam toda a sorte de conflitos. A luta
entre o homem e as forças sociais é apenas reflexo
da que ele trava consigo mesmo, mais densa e mais dolorosa.
Digamos que em A Suavidade do Vento Cristovão Tezza
retoma o tema do isolamento moral de seus protagonistas e leva-o
às últimas conseqüências, agora sob a
forma de uma timidez quase patológica, doentia, muito semelhante
à que conduziu o jovem poeta Trapo ao suicídio ou
à solidão irremediável do velho professor
Manuel. A novidade está na arquitetura da trama, onde se
tem não só uma história dentro de outra,
mas um curioso caso de desdobramento de personalidade, dupla direção
que foi harmonicamente equilibrada. Como um Pirandello que se
põe a observar suas criaturas, Tezza concebe a obra como
uma peça dramática, dividida em Prólogo,
Primeiro Ato, Entreato, Segundo Ato e Cortina. Tudo começa
com o Narrador estacionando "seu velho ônibus à
beira da estrada", de onde sai "um vulto magro e enfumaçado",
névoa que aos poucos vai ganhando consistência. Junto
com outros vapores que se vão desprendendo, formam o grupo
de "atores" que irão representar a "peça"
iniciada já na pógina seguinte, curlosamente em
moldes de narração tradicional. Ao fim, terminada
a "encenação", todos retornam ao velho
ônibus, comentando com o autor-narrador os acidentes no
percurso da "montagem". Ali, dentro do ônibus,
demonstram o impossível: "queriam continuar sendo
o que não eram mais", e vão de novo desaparecendo,
com o ônibus chegando vazio a Curitiba, proveniente de um
vilarejo na fronteira com o Paraguai, onde se desenrola o drama.
Ou seja: vidas efêmeras recolhidas à carcaça
de um ônibus, como se nunca tivessem existido ou fossem
apenas projeção do dramaturgo amargo que as concebeu.
É bem a óptica de Cristovão Tezza.
E que vida é essa, que se reduziu a tão pouco? A
de um pobre e provinciano professor, Josilei Maria Matôzo
(o erro de grafia é usado como recurso de caracterização),
que acalenta como único devaneio tornar-se escritor, pela
publicação de A Suavidade do Vento, produto solitário
de uma sórdida vida de reclusão. Editar o livro
significada tornar-se J. Mattoso, respeitado no colégio,
respeitado no Bar de Snooker, respeitado no Rotary e, enfim, respeitado
por si mesmo. Mas o infeliz Mattoso não contava com o obstáculo
intransponível: a obra publicada obrigava à sua
distribuição, ao controle de vendas, ao contato
com os amigos, à abertura para novos espaços - ao
abandono do quarto-refúgio. Esforço impossível
- o de ver-se sob outra roupagem, como a heroína de Clarice
Lispector - que reconduz J. Mattoso à antiga máscara
de Josilei Maria Matôzo, pela destruição dos
exemplares da obra editada. Solução que ele próprio
classifica de covardemente reconfortante.
Mais uma vez, parece que Cristovão Tezza usou seu indiscutível
talento para inquirir, com a seriedade costumeira, sobre o esforço
de sobreviver por caminhos destroçados.
Lênia Marcia Mongelli
é professora de Literatura Portuguesa da Universidade de
São Paulo.
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