O POVO - Caderno Vida & Arte
Fortaleza, 27 de Maio de 2003


Metaliteratura não por acaso

Jorge Piero
Articulista do Vida & Arte

A Editora Rocco acaba de lançar A Suavidade do Vento, de Cristovão Tezza. O romance transporta o leitor para alguns instantes estereotipados, porém imprescindíveis, que se constroem como uma poderosa metáfora da vida de um anônimo escritor - professor de português - jogado em um mundo absurdo, em região próxima a Foz do Iguaçu
É provável que já se tenha pronunciado algo muito parecido com estas sentenças; tomo-as, aqui, por verdadeiras e minhas: a literatura é a disciplina comum de todas as coisas; e a melhor maneira de esfregar o nosso cérebro é sofrê-lo no dos outros... A partir dessas proposições, passemos a um rápido jogo de imaginação: como se estivéssemos à beira de uma estrada, frente a uma planície vermelha e vazia, cansados, penetremos em um sonho, no qual o motivo de desejo seja a literatura e o seu instigante e cerebral sofrimento de realização. De outro ponto de vista, tomemo-nos como severos especuladores da consciência criativa e partamos para um confronto: as obviedades sejam descartadas, as firulas e os artifícios lingüísticos sejam abominados, e a sinceridade artística não seja apenas o simulacro de uma repetição. Pronto. Assim, estamos aptos a percorrer o caminho traçado pelo catarinense Cristovão Tezza, na segunda edição, revista - a primeira é de 1991 - de A suavidade do vento (Editora Rocco, 2003).

O autor, como prenúncio do que virá, não por ele, mas por uma falha técnica da editora, já se apresenta dúbio à primeira análise - pela ficha catalográfica, nasceu em 1952, e pela breve biobibliografia na orelha do livro, é de 1956. Talvez alheio a isso, Tezza vive em Curitiba e tem publicadas várias obras, entre as quais podem ser destacados os romances Ensaio da paixão (1986/1999), Trapo (1988/1995), Juliano Pavollini (1989/2002), Uma noite em Curitiba (1995) e Breve espaço entre cor e sombra (1998), este último, vencedor do Prêmio Machado de Assis daquele ano. A suavidade do vento se divide em cinco movimentos: Prólogo, Primeiro Ato, Entreato, Segundo Ato e Cortina. É uma narrativa que transporta o leitor para alguns instantes estereotipados, porém imprescindíveis, posto que se constroem como uma poderosa metáfora da vida de um anônimo escritor - professor de português - irremediavelmente deslocado e jogado em um mundo absurdo, em região próxima a Foz do Iguaçu, no Paraná.

No curtíssimo Prólogo, encontramo-nos diante daquele cenário, à beira da estrada. O ano é 1971. Um narrador, em primeira pessoa, estaciona seu ônibus velho, como se o transporte fosse o arcabouço das idéias. É dele que surgem ''figuras incompletas: um bando trôpego de vento''. Os atos se abrem. É possível pensar que estamos perdidos, mas, aos poucos, vamos descobrindo os horizontes. Com a Cortina, voltamos ao ônibus e acompanhamos a viagem, supostamente menos irreal. O livro existe, melhor dizendo, os livros existem. Josilei Maria Matôzo é o vulto magro que vai ganhando nitidez e volume pelas mãos de um narrador impiedoso, muitas vezes, mas que se diz amigo. É ele a personagem que gosta de ouvir Pink Floyd, aprecia beber uísques contrabandeados do Paraguai, vive a consultar o I-Ching e, paranoicamente, convive com monstrinhos imaginários. É ele o autor de A suavidade do vento, cuja obra assina como J. Mattoso, que é corroído pelo narrador, ironicamente, quando se refere à grafia do próprio nome, por lhe parecer ''um atentanto à profissão de professor de língua portuguesa''.

Na verdade, encontramos uma personagem que se corporifica, porém, sem se apresentar una, pois assume vários nomes: o de família, Matôzo, que representa o ser deslocado na comunidade, o solitário, o paranóico, o obsessivo; outro, Matozo, sem o acento circunflexo, manipulado pelo narrador, amigo do Gordo, do Galo, Estêvão (a quem o narrador parece ter resolvido doar aquele acento), quase amante da prostituta paraguaia Madalena, apaixonado pela aluna Bernadete etc; e o falso J. Mattoso, pseudônimo que o aflige e liberta.

Entre essas construções, avalia-se o sofrimento do ato de escrever, do processo doloroso que, aparentemente, conclui-se com o final do texto. Para o escritor, o melhor lugar é o da escrita. O mundo exterior é poluído pelo mercado, pela falsa glória, pelos minutos de fama. É com essas marcas que Cristovão Tezza destaca o contraste entre o ser real e a sua representação, vida e obra. O ser está exposto, enquanto, paradoxalmente, a sua mimese se protege na gaveta. Porém, assim, a dor não se justifica, a arte não existe. Para o escritor-personagem, melhor solução teria sido a inexistência da sua própria obra... A suavidade do vento é um título dentro de um título; constrói-se a partir de um autor real e de um imaginário; faz com que um narrador se transforme em outros. Tudo isso transparece como em um jogo metalingüístico muito bem urdido. Da mesma forma obsessiva de sua personagem, Tezza parece perseguir em seu texto o ''ponto ótimo'': ''todos os espaços têm um ponto ótimo, a arte é descobri-los''.

Dessa forma, triunfa, não a ciência, como em determinado momento lemos na obra. A suavidade do vento não trata de revelar absurdos, mas vai além de uma hipótese e de um mundo possível: a verdadeira literatura não é um acaso, é uma descoberta, suave, como o vento.

Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura

JORGE PIEIRO ESCREVE MENSALMENTE NESTE ESPAÇO
jorgepieiro@secrel.com.br.

SERVIÇO:
A suavidade do vento - Cristovão Tezza. Editora Rocco (www.rocco.com.br), 2003. 212 páginas.

TRECHO

''...e assim para trás, dia a dia. Ponha-se de fundo o disco do Pink Floyd, algumas consultas ao oráculo, e a mimese estará quase perfeita.E para completar o tédio, os monstros se acalmavam! Bichos espantosamente suscetíveis, como sensitivas, eles adivinhavam apreensivos que cada tarde que Matozo arrastava datilografando A suavidade do vento - uma datilografia penosa mas excitante, dedo a dedo, linha a linha - representava uma nova parede na fortaleza que o amigo erguia em torno de si. A lentidão deliberada, cigarro a cigarro, com que ele passava a limpo aquelas páginas ocultava o temor de terminá-las, quando teria de voltar às exigências concretas do cotidiano, cruamente, sem válvula de escape. Porque não lhe ocorria mais nada para escrever! À noite, bebendo, descobria-se assustado autor de uma obra única: a suavidade do vento era ele; terminada, ele terminaria junto; a obra se revelava o torto caminho pelo qual ele, nascendo de um limbo, chegava a algum lugar com contorno próprio. Lia em voz alta (por exemplo: Domingo é o dia maldito da Criação) e imediatamente o mundo aprisionava-se num sistema fechado de referências; sólidas, precisas, as coisas ganhavam sentido sob o seu olhar único. E era esse olhar manuscrito, só ele, que criava a realidade! A paixão segundo Matozo intimidava os monstros, que empalideciam dia a dia. Nem se aproximavam, porque era bem possível que ele, em estado de graça, ainda passasse a mão distraidamente naquelas cabeças rugosas e pontudas, num carinho demolidor''.




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