  | 
              
               
               BRAVO 
              Nº 67 - abril de 2003  
               
                A BREVE CIVILIZAÇÃO 
              A Suavidade do Vento, de Cristovão Tezza, 
                põe em evidência a literatura de um Brasil ao mesmo 
                tempo primitivo e letrado 
              Por Luís Augusto Fischer 
              Há um Brasil centenário, forjado no miúdo 
                dos míticos 500 anos, que fala pela língua abundante 
                de um Antônio Vieira e de um Gilberto Gil; ou pelas palavras 
                cadenciadas de um Gonçalves Dias e de um José Sarney; 
                ou pela prosa sumarenta de vida cotidiana de um Manoel Antônio 
                de Almeida e a de um Carlos Heitor Cony; ou pela poesia medida 
                de um Cláudio Manoel da Costa e a de um Carlos Drummond 
                de Andrade. E há um Brasil bem mais recente, muito mais 
                jovem em matéria de escritura, que ainda agora tenta domesticar 
                a língua à sua maneira, às vezes na linguagem 
                da vanguarda, às vezes em registros mais simples. Um Brasil 
                que há bem pouco tempo está aprendendo a escrever-se. 
                Deste recorte de país faz parte Cristovão Tezza, 
                de quem a Rocco está reeditando agora o romance A Suavidade 
                do Vento (210 págs.), parte de um projeto editorial 
                que inclui o relançamento de toda a sua obra. 
               Nascido em Lages, em Santa Catarina, e radicado desde a infância 
                em Curitiba, no Paraná, Tezza é um dos representantes 
                dessa novidade histórica, membro de uma geração 
                de escritores que meditam sobre esse pedaço recentemente 
                civilizado do país, publicam regularmente e são 
                lidos por público volumoso. Mesmo assim, são escritores 
                com pouca acolhida justamente naquele Brasil mais antigo e tradicional 
                - Salvador, São Luís, Rio de Janeiro, Minas Gerais. 
                Por quê? É que Tezza, ao lado de José Clemente 
                Pozzenato, Charles Kiefer, Deonísio da Silva e outros formalmente 
                mais sofisticados como Luiz Sérgio Metz e Wilson Bueno, 
                põe em evidência um mundo simultaneamente primitivo 
                e letrado, numa combinação que a literatura dos 
                centros urbanos antigos desconhece. 
                 
                A literatura de Tezza pertence a esse mundo que tem 150, no máximo 
                200 anos de vida urbana e tendencialmente civilizada; é 
                uma sociedade que conheceu com menos intensidade os horrores da 
                escravidão, marca funda e indelével do Brasil tropical, 
                e que acolheu o grosso da imigração européia 
                dos séculos 19 e 20; é uma cultura com poucos resquícios 
                da velhice americana, com os índios devidamente dizimados, 
                mas com a pujança da juventude da imigração, 
                com suas colônias a produzir os grãos da fortuna 
                de nossas contas externas; é um mundo marcado por algumas 
                metrópoles cosmopolitas crescidas de supetão e muitas 
                cidades pequenas e cheias de pó e de gente que baixa a 
                cabeça, trabalha e só agora, tocada pelas convenções 
                urbanas, passa a ganhar registro escrito, na forma do romance. 
                 
                Que seja na forma do romance, nada a estranhar. A vida dos colonos, 
                tanto em seu processo de conquista da terra, quanto em seu deslocamento 
                histórico para a cidade, é matéria propícia, 
                que atende ao requisito romanesco, seja com certo sopro épico 
                - para além da saga tradicional de alto padrão de 
                um Erico Verissimo, ou da recente, singela e televisiva de uma 
                Leticia Wierzchowski (A Casa das Sete Mulheres), seja com 
                aquele aspecto problemático, de um personagem desesperado 
                em busca de valores autênticos num mundo degradado. Nesse 
                Brasil que se estende do interior do Rio Grande do Sul ao Acre, 
                sempre pelo Oeste e longe do litoral, convivem a natureza em estado 
                mais ou menos bruto, da pequena propriedade colonial ao latifúndio 
                da soja, com certas práticas intelectuais exigentes, herança 
                direta da ética do imigrante, para quem o ler e o escrever 
                eram e são decisivos, no passado por causa da esclarecida 
                tradição protestante de grande parte deles, que 
                incentivava a leitura direta dos textos sagrados, no presente 
                pela vontade de "subir na vida", de "ser alguém" 
                - expressões talvez fenecidas nos centros urbanos velhos, 
                mas vigentes nesse mundo, que ainda se expande economicamente. 
                 
                A Suavidade do Vento é mais do que exemplar disso 
                - é o próprio enunciado disso, ainda que de forma 
                indireta, e em ótimo nível de realização 
                literária. Imagine-se a seguinte combinação: 
                professor de cidadezinha interiorana muito pequena, mas com pretensões 
                de escritor, que lê com intimidade Clarice Lispector, de 
                cuja obra guarda trechos de memória. O professor se chama, 
                para sua vergonha, Josilei Maria Matôzo. É professor 
                de Português e tem esse nome, com esse acento. Um solitário, 
                um quase fantasma de si mesmo, que dá aulas pela manhã 
                e à tarde bebe desesperadamente, fuma muito e come pouco, 
                vive em estado precário, joga um pouco com os ralos amigos 
                do bar, uma ou outra vez vai até os cassinos que há 
                ali na vizinhança, no Paraguai. Uma pobre alma atormentada, 
                cuja ilusão maior está em publicar um livro escrito 
                pacientemente por anos, uma fraca ficção subfilosófica 
                chamada A Suavidade do Vento. 
                 
                Para publicar, só pagando; e será em editora da 
                distante e inatingível São Paulo. Não tem 
                dinheiro, faz vergonhas nesta matéria, pedindo emprestado 
                sem pagar, mas a ilusão da transcendência pela literatura 
                parece tornar irrelevante a realidade. Ele paga a edição, 
                assinando-se, com elegância, J. Mattoso, mas seus tormentos 
                se acentuam. Para começar, o livro é horrivelmente 
                feio, sem nem sequer a nobreza física dos bons livros. 
                Depois, na cidadezinha ninguém o lerá adequadamente 
                - de suas relações, apenas uma ou duas almas teriam 
                capacidade de compartilhar as agruras de sua vida, naquele fim 
                de mundo bruto, próprio para conquistadores pioneiros e 
                não para temperamentos meditativos. O futuro civilizado 
                demora muito a chegar, e Josilei, ou J., que noutro momento se 
                apresenta ainda como Jordan, não tem como esperar. Aí 
                é que Curitiba aparece como a esperança, o local 
                em que seu talento será reconhecido. 
                 
                Não será, é claro, porque a cidade grande, 
                como Matôzo descobrirá logo, é apenas o fim 
                da linha das ilusões de superar aquela mesquinharia interiorana 
                tão opressiva (a lembrança aponta logo um parente 
                literário ilustre, o Naziazeno de Os Ratos). Vencer 
                Curitiba é absolutamente impossível para um errante 
                oriundo daquela ética estreita, suja do pó vermelho 
                da terra e do verde opressivo da natureza. Não há 
                lugar para Josilei, aquele que quer viver algum valor autêntico, 
                quer a intensidade genuína da literatura, quer o contrário 
                do horizonte culturalmente opressivo para as almas sensíveis 
                como a sua. As alternativas do professor são o suicídio 
                ou o retorno, outra forma de morte, que Matôzo prefere, 
                imaginando desfazer seu sonho, negar sua sede de elevação 
                e mergulhar novamente na mediocridade. Não admira que a 
                leitura de A Suavidade do Vento seja pesada - mas altamente 
                compensadora para o leitor. 
                 
                Cristovão Tezza está descobrindo, na prática, 
                a língua e a narrativa que podem relatar, para os leitores 
                de qualquer Brasil, este específico pedaço do país, 
                a um tempo próximo e remoto. Por não ter a autopiedade 
                que muitas vezes põe a perder os relatos que se ocupam 
                deste universo, e por aliar a adequada linguagem a uma ótima 
                inventiva (sabe disso quem leu algum de seus outros romances, 
                como a longa confissão edipiana de Juliano Pavollini 
                ou a rara combinação de cartas juvenis com memória 
                de um velho professor em Trapo), Tezza está inscrevendo 
                seu nome na pequeníssima galeria dos romancistas imperdíveis 
                do país em nosso tempo. 
                 
                 
                   voltar 
                 
                 
               |