O fotógrafo, de Cristovão Tezza

Editora Rocco

Cristovão Tezza finalmente quebra um jejum de seis anos sem publicar ficção – O fotógrafo é seu primeiro romance desde 1998. Durante esse hiato, seu prestígio só aumentou: o autor recebeu o Prêmio Machado de Assis – concedido pela Fundação Biblioteca Nacional –, teve suas principais obras reeditadas pela Rocco, tornou-se doutor em literatura pela Universidade de São Paulo e foi amplamente elogiado em decorrência da publicação de sua tese de doutorado, sobre Bakhtin e o Formalismo Russo. Portanto, a espera pelo novo romance foi longa, mas fundamental, pois Tezza volta à literatura como um escritor ainda maior. O engenhoso e extremamente bem escrito O fotógrafo é a maior prova disso.

A história se desenvolve ao longo de um único dia na vida de cinco personagens, na Curitiba de 2002, às vésperas da eleição presidencial. A narrativa principal acompanha o fotógrafo sem nome do título. Ele se dispõe a seguir Íris, uma bela jovem, e fotografá-la em segredo pelas ruas. O homem misterioso que o contratou para o serviço paga 200 dólares por cada filme não revelado com fotos da moça. Embora o trabalho seja relativamente fácil e o dinheiro seja bom, o fotógrafo falha logo de cara – sentindo-se atraído pela jovem, ele vai ao seu apartamento e se apresenta a ela com uma desculpa qualquer, a fim de vê-la mais de perto e fotografá-la como um artista, não como um paparazzo.

Assim que termina a sessão de fotos, o fotógrafo corre para seu laboratório particular, ansioso para revelar o filme. A revelação é um processo delicado, que requer técnica – a imagem não se materializa de repente no papel, ela surge aos poucos, cercada de mistério e expectativa, pois nunca se sabe exatamente como ficará a foto. A mecânica do novo romance de Cristovão Tezza é mais ou menos a mesma: os personagens são revelados gradativamente, ganhando uma impressionante profundidade com o avançar da narrativa. Para que eles sejam compreendidos, não basta acompanhar o que se passa em suas mentes, é preciso também vê-los passar por diversas situações, descobrir o que os outros pensam deles, conhecer seus familiares. A solidão de um personagem pode dizer muito sobre o outro.

O leitor flagra Lídia, a mulher do fotógrafo, traindo o marido com seu professor, Duarte, cuja esposa é, por acaso, a analista de Íris, uma jovem que prefere se prostituir a depender do pai. O texto revela os pensamentos ora de um, ora de outro, numa rede muito bem tramada. Várias ações simultâneas são mostradas, uma de cada vez, num vai-e-vem de pontos-de-vista construído com perfeição. E embora O fotógrafo não seja propriamente uma história de suspense, não há como o leitor não ficar ansioso para saber o que vai acontecer em seguida. Mais do que isso: “ver” o que um personagem está fazendo gera uma grande curiosidade de saber o que está se passando com os outros naquele mesmo instante, ainda que numa parte diferente da cidade.

Entrevista com o autor

Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952, mas fez de Curitiba, onde vive há mais de 30 anos, sua cidade de adoção e pano de fundo de seus romances. É doutor em literatura pela Universidade de São Paulo e professor do Departamento de Lingüística da Universidade Federal do Paraná. Embora a maior parte de sua obra seja composta por romances, Tezza já atuou como poeta, contista, ensaísta e dramaturgo, e tem uma biografia rica: nos anos 70 participou de uma comunidade alternativa de teatro popular nos anos 70 e foi mochileiro na Europa. De volta ao Brasil, chegou a abrir uma oficina de consertos de relógios para sobreviver. Seu livro Breve espaço entre cor e sombra foi o vencedor do Prêmio Machado de Assis de melhor romance do ano de 1998, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional, além de ter ficado entre os três finalistas do Prêmio Jabuti. Ensaio da paixão , outro belo trabalho seu, conquistou o Prêmio Cruz e Souza e recebeu menção honrosa no Concurso Nacional do Romance. Em 2003, sua tese de doutorado virou livro, Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo, amplamente elogiada pela crítica. Todos os títulos citados foram publicados pela Rocco, além de Uma noite em Curitiba, Trapo, A suavidade do vento e Juliano Pavollini.

Seu romance anterior foi publicado em 1998. Como foi esse longo período longe da ficção?

Foi um período em que dei atenção exclusiva ao meu trabalho na universidade. Decidi fazer finalmente o doutorado e mergulhar um bom tempo na teoria. Acho que foi um bom intervalo, pensando a literatura sob outra perspectiva. Como também gosto da atividade crítica, não sofri muito. O resultado está em Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo, publicado pela Rocco. Mas tenho muito claro que teoria e ficção são duas atividades perfeitamente distintas.

Toda fotografia mostra apenas um detalhe de uma realidade muito maior. E O fotógrafo mostra apenas um dia na vida de seus personagens. Existe esse paralelo?

Não pensei nisso, mas faz sentido. Bem, o dia do romance pode ser compreendido não como uma única foto, mas como uma seqüência articulada de conjuntos de fotografias.

Por que você quis que toda a história se passasse num único dia? Foi complicado lidar com esta proposta?

Não foi de fato uma proposta – no projeto inicial o tempo do livro seria outro. Mas nas primeiras 30 páginas percebi que o livro começava a se concentrar em torno de um único dia, e eu senti que seria isso mesmo, que aí estava a força do romance.

Quanto tempo você levou para escrever o livro? Não é curioso que se leve tanto tempo para criar uma história que se passa em apenas um dia?

Acabo de conferir no manuscrito: comecei o livro em 15 de agosto de 2002 – assim que encerrei e defendi minha tese de doutorado, como quem precisa “respirar” – e terminei dia 21 de março de 2004. Foram quase dois anos em torno de um único dia... Bem, o tempo da ficção é outro, é claro – um minuto pode levar 30 páginas, e 7 anos às vezes se resolvem em duas linhas. E sempre escrevi ficção devagar.

Certa vez, você disse que a primeira frase de um romance guarda toda a sua essência. No caso de O fotógrafo, a primeira oração é “A solidão é a forma discreta do ressentimento”. De que forma ela funcionou como ponto de partida do romance?

Para mim, descobrir a linguagem é a mágica difícil que me permite começar um romance, mesmo que eu já tenha toda a sua estrutura na cabeça. Solidão e ressentimento se articulam como uma espécie de mote do romance, sob cinco olhares diferentes. A primeira frase, que me libera a escrita, deve me dar ao mesmo tempo o tema e a sua linguagem. Esse tema é retomado em vários momentos diferentes, na voz de diferentes personagens.

O fotógrafo ficou muito diferente de seu projeto original?

O projeto de um romance sempre se inicia, para mim, em uma imagem e uma tensão. Tudo que eu tinha era um fotógrafo, numa esquina, secretamente à espera de uma jovem. Em camadas, essa imagem inicial – aliás, um lugar absolutamente comum no imaginário contemporâneo – foi se desdobrando em diferentes pontos-de-vista, todos em torno do mesmo miolo narrativo. A intuição fez o resto, como sempre – em um determinado momento, passei a ser conduzido pelo meu próprio ponto de partida.

Quando começou a escrever o livro, você ao menos já sabia o desfecho que ele teria e qual seria o perfil psicológico de cada personagem?

Eu tinha uma vaga idéia do que aconteceria nos meses seguintes com o fotógrafo e a sua jovem perseguida – mas o livro, de fato, acabou antes, resolveu-se inteiro naquele dia circular. O perfil dos personagens vai se fazendo no ato da escrita. Eu tinha uma imagem mais ou menos nítida do universo social do fotógrafo, o ponto de partida – daí porque o momento presente concreto (isto é, um dia do ano de 2002, com as eleições presidenciais em breve e várias referências históricas precisas) acaba criando exigências formais mais ou menos inescapáveis.

Por que o nome do fotógrafo não é revelado, ao contrário do que acontece com os outros personagens?

Não sei. Nas duas ou três vezes em que tentei nomeá-lo, nenhum nome encaixava – era como se ele se reduzisse inapelavelmente. Mas o deputado (que num momento do livro ele vai fotografar) chama-o por um nome errado, o que achei interessante.

É verdade que você fez laboratório como fotógrafo para criar seu personagem? Qual a importância disso no resultado final?

Sempre gostei muito de fotografia e cheguei a estudar alguma coisa, com a minha velha e clássica Olympus OM-1. Aprendi algumas noções simples de fotografia, nada mais que isso. Isso teve uma importância apenas incidental no livro, uma breve familiaridade. O livro não é sobre um fotógrafo, no sentido técnico da palavra; é sobre alguém que, por acaso, é fotógrafo, que vive da fotografia. Bem, para falar a verdade é também sobre o olhar fotográfico, essa coisa misteriosa. De certa forma, o livro foi escrito como quem fotografa.

Você usa bastante o computador, para lazer, pesquisa e informação. No entanto, escreve seus romances a mão. Por quê?

Sou apaixonado por computadores. Abro um jornal ou revista e vou direto às notícias de informática. Todo dia tenho de me policiar para não perder o pouco tempo que me resta entre a universidade e os livros no desvario da internet. Mas a ficção não tem pressa – escrevo 15, 20 linhas manuscritas por dia. E gosto de lidar com as folhas escritas, com o próprio desenho da escrita. Por um lado é a força do hábito – sempre escrevi a mão, desde o primeiro livro, ainda por influência da comunidade alternativa em que vivi nos anos 70 da minha formação. Por outro, é um modo agradável de ficar sozinho.


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