O Globo – Prosa e Verso
Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2004

Fotos da ironia e da esperança

Novo romance de Tezza forma painel de imagens captadas de diferentes perspectivas

Flávio Carneiro

Apesar do título, o novo romance de Cristovão Tezza se constrói não a partir de um mas de três fotógrafos.

O primeiro deles é o protagonista da história, um jornalista de 40 anos, em Curitiba, às vésperas da eleição presidencial que elegeria Lula. Inseguro, insatisfeito com seu trabalho e sua vida afetiva, o fotógrafo aceita uma proposta de trabalho diferente: fotografar uma jovem, a pedido de um homem misterioso. Dividido entre a realidade e a fantasia, o fotógrafo se move com dificuldade no mundo real, e apenas se sente seguro quando amparado por sua câmera.

Sua câmera o orienta como um astrolábio orientava os antigos navegadores, e de tal modo o fotógrafo depende do seu precioso instrumento de leitura que, sem ele, não consegue se guiar pelos labirintos de um cotidiano cada vez mais assustador. Leitor de imagens, fotografar é seu “modo de entender as coisas”, como ele mesmo afirma. E entender não apenas o passado e o presente mas também o futuro, num exercício que pode quem sabe ser resumido numa de suas crenças, a de que o bom fotógrafo não olha exatamente para o seu modelo, mas para a fotografia que ainda não existe ali.

Anônimo, o fotógrafo de Tezza está sempre à margem, fora da foto, tanto no campo profissional (é quase um desconhecido) quanto no amoroso (para a esposa, é apenas uma sombra do passado). Como um fantasma, ele caminha pela cidade, imaginando cenas, diálogos, personagens, inventando um mundo onde possa caber melhor. E onde possa estar com a mulher que vai fotografar, a bela e atormentada Íris (cujo nome é um signo talvez um pouco óbvio demais).

No nível simbólico, porém, há um segundo fotógrafo: o narrador. Agora se utilizando não de uma máquina fotográfica mas de palavras, este narrador onisciente — e anônimo, como o protagonista —, “fotografa” o próprio fotógrafo e aqueles que o cercam, invadindo seus pensamentos, medos, desejos, trazendo à luz as imagens reprimidas em função das conveniências sociais. Nesse sentido, o romance dialoga com o ensaio, como boa parte da ficção brasileira das últimas décadas, e dá vazão, a partir do que falam, pensam e imaginam os personagens, a elucubrações diversas nos campos da filosofia, da política, da psicanálise, da literatura.

É este segundo fotógrafo que conduz o romance. Não por acaso, à certa altura, um dos personagens, professor de literatura na universidade, afirma estar absorvido por um trabalho sobre a figura do narrador — “que afinal é o que importa”. O recado parece claro: é o narrador que dá ao romance de Tezza seu teor de originalidade. A história em si, centrada em personagens comuns e com uma trama banal, adquire intensidade dramática pelo modo como é contada. Vidas pequenas, anônimas, são alçadas ao primeiro plano pela objetiva do narrador e ganham uma dimensão diferente, nos fazendo ver o que escondem de ironia, desacerto e, num certo sentido, esperança.

Alternando constantemente seu foco, o narrador vai fazendo girar a ciranda de personagens, levando o leitor a visitar o mundo particular de cada um. Sem aviso prévio, a narração passa de um a outro e deste ao seguinte, numa espécie de travelling que mostra ora o que se passa por fora — seus rostos no espelho, seus corpos, as ruas por onde andam —, ora o que vai por dentro daqueles de quem se conta a história, ou as histórias. E como não tem nome nem participa daquilo que conta, o narrador é também, a seu modo, um outro fantasma. É desse lugar móvel que ele faz as fotos de cada um e, juntando-as num intrincado painel, vai montando seu relato.

Cristovão Tezza apresenta ao leitor outras fotos possíveis

Num terceiro círculo, há um derradeiro (ou primeiro, dependendo de como se vejam as coisas) fotógrafo: o autor. E se agora já não se trata de um anônimo, como os dois anteriores, este terceiro fotógrafo não perde contudo sua condição de quase invisibilidade. Ao optar por uma escrita neutra, sem experimentações formais e sem aquela desagradável intromissão, na narrativa, da voz autoral — mais conhecida como a “mensagem” do texto —, o autor como que desaparece de cena, deixando apenas, como marca de sua passagem, o nome na capa do livro.

Ao montar a história da forma como o fez e ao criar um narrador como este, Tezza, no entanto, vai deixando transparecer aos poucos um outro ensaio fotográfico, para além dos retratos de sentimentos fortes — medo, insegurança, solidão — levados a cabo pelo narrador. Sem que se anuncie explicitamente, ou seja, sem que o narrador o explicite, Tezza vai apresentando ao leitor outras fotos possíveis.

Algumas delas mostram, como num close, uma das faces da cidade de Curitiba no início do século XXI. E outras captam certo clima reinante no país às vésperas da eleição presidencial de 2002. Nesse caso, o interessante é a sugestão de espelhamento entre o que vivem os personagens, em seus dramas particulares, e o país como um todo. A sensação de medo e euforia pela proximidade da mudança, que faz os personagens se sentirem vivos, excitados, se aproxima daquilo que experimenta grande parte da população, na expectativa do que virá com a eleição do novo presidente.

Condensando narrativa tão múltipla no espaço de apenas um dia, Tezza confere mais intensidade ao relato, já carregado pela tensão da espera (de um novo país, um novo amor, uma nova vida).

É da combinação entre esses três fotógrafos — personagem, narrador e autor — que o romance faz surgir seu auto-retrato, exposto agora ao leitor, a quem caberá, como sempre, o retoque final.

FLÁVIO CARNEIRO é escritor e professor de literatura da Uerj


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