Jornal de Letras
Lisboa - 20 de dezembro / 2 de janeiro de 2006/07, p. 20

(Des)amores em Curitiba

PIRES LARANJEIRA

Tezza: 54 anos, 12 livros de ficção, três de ensaio, habita em Curitiba, capital do Paraná, onde é docente universitário. Tanto o fotógrafo protagonista quanto a sua mulher, Lídia, «sonham» sempre com algo que, na re­alidade, não é (ainda) concreto. E a força do desejo de algo por que se anseia, mas que vai parecendo bastante improvável. Assim se instala, no romance, um romance falhado, cujo amor o tempo gastou. Ambos sentem atracção amorosa por outros, abrindo-se, em definitivo, uma crise conjugal que evolui em águas tranquilas, como se uma melancolia - própria de uma cidade como Curitiba - atravessasse toda a narração. E outras crises pessoais se cruzam com as deste casal, numa trama não tão complexa como parece à pri­meira vista (densidade construída também pelo modo poliédrico de narrar), mas muito densa de emoções e afectos. Mas, para usar uma expressão do pensamento do professor Duarte, própria do tempo em que fora militante pró-marxista, será que o romance se pode caracterizar como «coisa de pequeno-burguês entediado»? E um romance sobre a classe média urbana e suas inquietações amorosas e existenciais, o fastio da profissão, a luta pela sobrevivência, a falta de horizontes, o choque de mentalidades e, em pano de fundo muito subtil, a cidade grande, com sua vida ha­bitual (a universidade, o cinema, a livraria) e seus pequenos indícios de «devastação», suas luzes, sombras e bares na madrugada.

Em relação ao protagonista-fotógrafo, há um trecho, sensivelmente a meio da narrativa, que poderia bem servir de quase-resumo da sua situ­ação, afinal um quase-núcleo da intriga afectiva, sentimental e profissional, uma petitebiografia dele: «juntando os cacos: a chave da infância, o amor de Lídia, o nascimento de Alice, a frustra­ção do fotógrafo, o almoço de sábado, o contrato dos 200 dólares, os fotogramas de íris, o encontro com a prostituta, o sorriso do deputado, o folheto de madame Susana (.. .) Lidia na praça, sorrindo para outra pessoa» (pág. 124). O romance assenta na técnica do fluxo de consciência de vários protagonistas, e não apenas o que dá título à narrativa, que contribuem para a sensação de complexidade de sentimentos e acções, embora estas sejam limitadas, em torno do umbigo da cidade. Romance moderno numa Curitiba bem longe dos cenários do escritor-ícone dali, Dalton Trevisan. Uma rede de relações afectivas entre um fotógrafo, uma modelo episódica que se sente meio prostituta, um professor e sua aluna casada que o deseja, mais sua mulher, psicanalista, as­sistente psíquica da modelo. Certa atmosfera existencial, numa metrópole grande, cinzenta e fria (um Brasil diferente, para quem não é na­tivo), com modos de vida frustres (a modelo sem dinheiro e sem amor, o fotógrafo apático e sem brilho especial) e conflitos graves de gerações (o fotógrafo e a modelo vs respectivos pais), são motivos suficientes para apreciar melhor a ideia de que a narrativa e a vida real brasileiras não passam necessária e obrigatoriamente pelo «tro­picalismo» de Jorge Amado, pelo «armorialismo castiço» de Suassuna ou pela «novela nova» de Ipanema: há mais «mundos».

O discurso faz avançar a lenta acção psico­lógica e espiritual a golpes de palavras comuns, trabalhadas com rigor e agili­dade estilística. Cruzam-se desejos, sentimen­tos, recordações, melancolias, frustrações com inegável agilidade e conhecimento da mente moderna de gente entre os 30 e os 45 anos. A simplicidade da linguagem contribui para sentir os meandros dessas relações humanas (amor, traição, traumas, recalques, etc.) como próximas de nós, leitores urbanos do mundo. O modo de contar, misturando falas várias, aqui e ali, simulando passar em directo da mente de uma personagem para outra (baralhando, às vezes, a percepção do leitor), usando bastante os travessões, para intercalar exemplificações, descrições, pensamentos, avaliações, deitando mão quer do estilo clássico de narração, quer de outro mais experimentalmente discursivo e visual (lembrando Saramago), o narrador como que sugere a não homogeneidade do fluir da vida, mas a sua realização por saltos imprevistos e indecisos. E sobretudo vamos vendo como o percurso de cada personagem vai cruzar-se com o de outras, uma a uma. E um modo de escrever que remete para o gosto de criar ambientes não pormenorizados, em que o fulcro é o estado psicológico de crise (conjugal, sexual, monetário, etc.) das personagens típicas dos grandes meios urbanos (professores, psicanalistas, fotógrafos, modelos, estudantes) e de sectores sócio-profis­sionais da modernidade avançada, numa cidade moderna, mas periférica em relação aos centros do mundo.

Comparando, é mais inventivo e psicologica­mente denso do que um livro de que se apresen­tará aqui uma leitura, de Miguel Sanches Neto, Um amor anarquista, sobre uma colónia anar­quista de origem italiana justamente a poucos quilómetros de Curitiba, no século XIX. Sendo metafisicamente subjectivo, com traços depressi­vos, angustiado e à beira do abismo, justifica-se essa densidade assente em circunvoluções da história, da narração e dos pensamentos.

É uma narrativa mais «interna», enquanto a de Sanches Neto fica mais próxima do realismo descritivo, respeitando o modo de evocação his­tórica. Romance intelectual sobre a vida urbana da classe média brasileira ligada às actividades intelectuais, artísticas, com status mediático, tem algo a ver com Budapeste, de Chico Buarque e não tanto com romances «da provincia», como O amanuense Belmiro, de Ciro dos Anjos, ou mesmo Hilda Furacão, de Roberto Drummond.


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