Diário Catarinense
Florianópolis, 16 de dezembro de 2006
Caderno de Cultura, p. 3

UM OLHAR ESPECIAL

Regina Carvalho*

 Por causa de seu doutorado, Cristovão Tezza passou quatro anos sem produzir ficção. Sua tese, irretocável, como tudo que ele escreve, foi publicada pela Rocco em 2003 ( Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo) e o levou a ser considerado uma das maiores autoridades mundiais no estudo de Mikhail Bakhtin. Seu envolvimento com isso ocasionou quatro anos de silêncio na sua produção ficcional, mas não no interior desse catarinense de Lages. E como saber que universos se gestam no silêncio de um escritor? Na seqüência, Tezza levou mais dois anos preparando este O Fotógrafo, lançado discretamente, quase sem repercussão, e se afirmando aos poucos, com firmeza, por seu próprio mérito. Primeiro, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Depois, indicações para outros prêmios. Agora, o Prêmio da revista Bravo! E o romancista de Curitiba alcança, enfim, o reconhecimento público que sua obra merece.

Há, nos livros anteriores de Tezza, um certo sentimento épico, uma revolta com a sociedade que se lhe apresenta, com o homem que o ser humano consegue ser. Há a revolta do criador utópico, que não encontra jamais sua utopia , sabendo o quão pouco a palavra significa, mas assim mesmo insistindo nela. Porque não se conforma com o que a vida oferece, porque não se conforma com o que o homem é, quando poderia ser mais e melhor. Porque sonha, e sonha grande.

Dizer isso não significa, porém, que em O Fotógrafo Tezza tenha desistido do homem e do sonho. Muito pelo contrário.Só que, agora, as imagens que “chovem” na sua fantasia, usando os termos que Ítalo Calvino emprestou de Dante, passam pelo viés de uma grande angular, fazem zoom constante na alma das personagens e, no espaço de parcas 24 horas – o mesmo espaço temporal coberto por Joyce em Ulisses – desnudam o cotidiano de seres que não se vêem quando se olham: se interpretam . E se interpretam a partir do que vêem não vendo, porque seu olhar é pura fantasia, puro viés, puro desespero existencial. Afinal, situar uma narrativa em 24 horas é puro recurso estratégico: em 24 horas permanece todo o passado e se pode visualizar o que virá.

A partir do título – não é o título que nos empresta a chave? – e da personagem-titulo pensa-se que o olho especializado do profissional deste olhar de luz e sombra vai nos levar a um esclarecimento de cada um dos outros. Acredita-se, ingenuamente, talvez, que por sua própria especialidade um fotógrafo seja aquele que tem um olho mais aguçado, aquele que vê melhor Mas é dele o olhar mais fantasioso, mais interpretativo, mais deformante – como o de qualquer artista. E pelas outras personagens se distribui esta mesma deformação, cada uma delas enquadrada por seus próprios focos distorcidos: em Íris (sintomático nome!) , o amor-ódio pelo pai; na esposa, as abordagens cegantes das teorias analíticas.

De fundo, o momento histórico das últimas eleições presidenciais, um fundo irônico, de mais uma utopia desmistificada, de mais um sonho pisoteado e perdido. E este fundo adquire uma importância maior, se olhado - e visto! – sob a perspectiva dos acontecimentos políticos mais recentes.

* professora do Curso de Jornalismo da UFSC, Mestre em Teoria Literária .


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