Diário Catarinense
Florianópolis, 9 de julho de 2005

Há um peso na nitidez da foto

Em O fotógrafo, Cristovão Tezza combina personagens que usam de leveza e dureza na revelação de seus sentimentos

JÚLIA STUDART

Foi a partir de uma matéria que li sobre Richard Serra, um dos grandes escultores hoje, que pensei no quanto e no tanto de peso que pode ter essa narrativa de Cristovão Tezza. Penso nas esculturas desmesuradas de aço, na durabilidade, na oxidação disso, do quanto desaparece, envelhece ou se deteriora com a passagem do tempo - os anos. Mas ainda um peso que não cabe na leveza que traz junto, no equilíbrio, na medida certa, quando parece se retira toda a idéia de pesado, da densidade das peças. E é quando alguma tensão salta do trabalho. E Serra nos conduz a um passeio por dentro, pelos entres das peças que começam a perder o seu peso na proporção que sobem, absolutas.

Também a narrativa de Tezza tem um peso. Um peso de tempo, do que se gasta, de algum cansaço e uma outra inércia. Feito as esculturas de aço de Serra. Mas também uma leveza que salta, da nostalgia, um sentir-se parte "desta gravura antiga, amarela e gasta nas bordas", da escolha dos enquadramentos, da delicadeza que acompanha toda tentativa de um olhar mais generoso para a cidade, para o outro, para dentro. E então compreender, aqui, que cada vagar pela cidade, essa Curitiba que atravessa toda a narrativa de Tezza, pode ser leveza e peso ao mesmo tempo. Mesmo numa história que se dá em tempo tão curto, um único dia. O que podia ser trivial, no sempre o mesmo discurso amoroso, no dentro da casa, na vizinhança, na rua, no desbotamento das relações; no romance ganha um peso outro pela força do discurso, do texto de fôlego curto, do inusitado, dos encontros e desacertos, de alguma sensualidade, da foto, de um erotismo fascinante. Uma fissura que irrompe, que vem com a solidão ou, mais ainda, com a precisão dela. O que a narrativa parece prescindir, repetindo insistente, "a solidão é a forma discreta do ressentimento". Personagens que silenciam as aflições, mentem e fingem muito. Mas que também se doem. E há, decerto, ainda uma dureza quase cortante naquilo que conseguem dizer deles mesmos ou do outro, que, de alguma forma, passa pela vida, pelas escolhas. Uma pausa: "Pensou em casa (aquela tensão surda que se arrastava há meses)".

Cristovão Tezza comemora. De um jeito seu muito discreto, quase silencioso. O fotógrafo (Rocco, 224 págs., R$ 27), este seu último livro, que se passa em Curitiba no tempo das eleições presidenciais de 2002, foi eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor romance publicado no Brasil em 2004. O escritor, que nasceu em Lages, interior de Santa Catarina, e que muito cedo foi morar em Curitiba, cidade de toda sua formação literária, escreveu ainda um livro de contos, A cidade inventada, e publicou mais de 10 romances, entre eles Trapo, Juliano Pavollini, Uma noite em Curitiba, A suavidade do vento e Breve espaço entre cor e sombra. Este último ganhou o prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro como melhor romance de 1998.

O fotógrafo é um livro grave e delicado ao mesmo tempo. Um peso, uma leveza de texto. Pequenos quadros fotográficos que emolduram e recortam a vida de cinco personagens. Ora em foco ora distorcidos pela lente, maior, que aproxima, afasta, retira, num simples giro da objetiva. Cinco formas e nomes de olhar a solidão: Mara, Duarte, Lídia, Íris e O fotógrafo. Este que ganha para fotografar secretamente Íris, uma mulher extremamente desejável por quem ele se apaixona e que faz análise com Mara, freudiana heterodoxa que acredita tudo se reduzir mesmo a sexo. Mara é mulher de Duarte, o professor de Literatura, discreto, por quem Lídia, mulher do fotógrafo, se envolve. Enfim, aqui, há sempre um peso na nitidez da foto, na cena, nesse desvelado do tempo e das relações afetuosas que se quebram, que se questionam, que se morrem. Outra pausa: "Lembrou de Mara, sua mulher, aos 42 anos, e de suas três filhas, não como punição, mas para completar o quadro do que estava acontecendo, naquele exato silêncio: o desejo".

A narrativa tenciona uma e outra idéia de tempo, a exemplo das esculturas de Richard Serra. O tempo que escapa, deforma, desbota, feito fotografia, o instante, as relações de muitos anos, os cansaços todos, as mentiras, e um outro que supõe alguma permanência, no instante fotografado, no jogo claro e escuro revelado, na composição, no recorte de cidade "eternizado" na foto. Como no desejo do fotógrafo: "As coisas devem durar". Um certo olhar amoroso que insiste submerso no "buraco medieval" onde revela os negativos, revela Íris, nos rolos de filmes, na foto perfeita, "como uma vingança infantil contra o exército digital: esta foto não precisa ser recortada", apenas o tempo do revelador, o sacudir leve do tanque, a ventilação, a contagem dos minutos, e o que se transforma dentro - os grãos de prata selando, fixando o tempo.

Júlia Studart desenvolve pesquisa em Comunicação e Semiótica, PUC-PR. Trabalha com textos e tradução.


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