|
REVISTA LETRAS - EDITORA
DA UFPR
Nº 39 - 1990 - p. 9-19
COMPOSIÇÃO E CONFISSÃO:
OS DOIS PROCESSOS DE JULIANO PAVOLLINI
Rosse Marye Bernardi
Universidade Federal do Paraná
Em termos composicionais, em Juliano Pavollini, romance
do escritor paranaense Cristovão Tezza, temos uma narrativa
em primeira pessoa (Icherzählung de tipo confessional), elaborada
em uma linguagem de marcas sociais específicas.
Segundo o teórico russo Mikhail BAKHTIN, cujos postulados
teóricos são utilizados como substrato para nosso
trabalho, "a estória de um narrador, enquanto substituto
composicional do autor, é análogo à estilização."
Nesta concepção, considera-se que o autor cria,
estilizando, o discurso de um outro, dotando este discurso de
um conjunto de procedimentos estéticos que o fazem expressão
de um ponto de vista específico sobre o mundo. Juliano
Pavollini, ao se autonomear, relativiza o mundo que o cerca, singularizando-se
em uma maneira de pensar, viver, falar, ver e representar, diferente
inclusive da voz do autor que não o representa objetificadamente
como um discurso dentro do discurso, mas o manipula como um discurso
de dentro para fora, revestindo-o, no próprio ato de criação,
de sua compreensão a avaliação. É
esta refração das intenções do autor
que dá ao discurso características bivocais - uma
vez que nos obriga a sentir a nítida distância que
existe entre o verdadeiro autor, com a forma arquitetônica
de sua visão artística e o suposto autor, que ganha
vida no momento em que esta forma se singulariza na composição
romanesca.
Em Juliano Pavollini, a situação narrativa,
o ato de narrar, ganha verossimilhança e originalidade
em relação à tradição do romance
memorialista em que se insere, a partir dos enunciados "Clara
pede que eu comece pela infância. Bem, eu tinha tudo para
dar certo, exceto a família." (p.9) que inauguram
o texto. Instaurado assim o pretexto narrativo, a escrita flui,
recuperando memórias passadas, sintetizando a infância
na figura do pai - "Um homem de gestos previsíveis,
de pouca fala e de uma emoção sufocada - mas não
ausente." (p. 10). Meia dúzia de páginas bastam
para nos fazer sentir ainda a presença-ausente da mãe
- figura sem voz - as irmãs como baratas em pânico,
e o aprendizado da mentira e da culpa, entre surras e rezas.
A família deixará marcas indeléveis na alma
e na linguagem de Juliano, cuja precoce sensibilidade adivinha
a insensibilidade paterna frente a seus desejos e sonhos. Fugir
deste universo estagnado, com sua moral opressiva e sua pobreza
triste, é uma obsessão que a morte providencial
do pai transforma em realidade: "Foi uma bela comunhão
com o meu pai, com o meu pai morto: a independência feroz."
(p.l6).
A sua ânsia de liberdade relativiza todos os valores e Juliano
não recua nem mesmo diante do roubo. Com seus dezesseis
anos, "alguns exemplares de Seleções, Miguel
Strogoff, de Julio Verne, uma pilha de figurinhas" (p. 17),
ele, sem olhar para trás, salta definitivainente para o
outro lado da vida, ao encontro do destino que o levará
à prisão.
É neste espaço que a psicóloga Clara, em
estágio no presídio, o encontra. O desejo profissional
de entender o outro, de avaliá-lo, gera o pedido inicial.
Enquanto subtexto ou pré-texto, teremos, portanto, as seções
analfticas entre Clara e Juliano, e não será difícil
para o leitor, co-participante desta interação lingüística
especial que é o texto literário, desdobrar, reinventar
as cenas, ao embalo de algumas sucintas informações
narrativas: "Clara conversa comigo, faz anotações
(...)" (p.88); ou "Clara sorri, anotando (...) Clara
ri solto, agora." (p.65).
É a provável dificuldade da comunicação
oral ou talvez a pressa em desvendar e ser desvendado que leva
à sugestão do texto escrito, que se duplica:
Faço duas versões de mim mesmo: para meu uso
- gosto de escrever - e para Clara que gosta de ler. (p.
139).
No entanto, esta explicação simplista para a dupla
escritura de suas memórias ganhará novas dimensões
no discurso fragmentado de Juliano, cujos enunciados ora revelam
o valor da linguagem enquanto meio de comunicação
e arma persuasiva: "Minha palavra é minha sedução
- a cada capítulo estou mais próximo da liberdade,
Clara tem poderes no presídio." (p. 113) - ora esclarecem
o desejo de amor e ternura, que brota, pela sua recorrência,
como um verdadeiro leitmotiv: "Não gosto de lembrar,
mas Clara insiste. Aparentemente ela gosta muito do que escrevo,
mas eu preferiria que fosse eu o amado. E assim: escrevo para
ser amado." (p. 72).
O texto entregue a Clara nós só o conhecemos no
avesso do texto que Juliano escreve confessadamente para si mesmo.
O que não nos impede de sabê-lo estruturado em função
do destinatário, do discurso refletido do outro, do medo
de avaliações e julgamentos. Como sujeito do discurso
temos, indiscutivelmente, um Juliano cuidadoso da linguagem, preocupado
em podar excessos, movido por um duplo desejo de sedução
- convencer a psicóloga e agradar à mulher. Por
isso, é um texto de características altamente lúdicas,
fazendo do jogo sutil entre verdade/mentira, omissão/confissão,
um dos seus motivos centrais. A história deste jogo e suas
implicações ideológicas constitui-se em um
dos núcleos de sentido do texto que nos é dado a
conhecer e que Juliano escreve na solidão do presídio,
distante quatro anos dos acontecimentos que o fizeram prisioneiro.
Inicialmente, o discurso recupera o passado na relação
de causa e efeito dos acontecimentos. No ônibus que o traz
para Curitiba após a fuga, ele encontra Isabela, que o
olhar do adolescente vê num deslumbramento que contrasta
com o olhar maduro do narrador:
Não era tão bela, mas isso só sei agora,
quando não tem mais importância. (p.22).
Naquele momento, porém, Isabela é uma presença
e uma voz acalentada nos sonhos da infância, e ele a sente
como uma cúmplice que o envolve com a doçura do
perfume e a segurança da beleza. As palavras cochichadas
ressoam compreensão: "ela desculpava minhas mentiras,
ela sabia que eu estava fugindo, ela sabia tudo. Eu vou cuidar
de você. Vou tratar desse ferimento. Por favor, não
se mova." (p.21) - E na sua imaginação febril,
a realidade se contamina com a fantasia, dando contornos heróicos
e românticos à fuga, enquanto o texto, se redimensiona
no cruzamento de várias linguagens, que incluem fragmentos
de "Fugindo da Rússia", que Juliano lê
num velho exemplar de Seleções, e a avaliação
impiedosa ou irônica dos próprios atos.
Ao final da viagem, a figura grotesca do policial Rude se incorpora
ao texto e ao universo de Juliano como um personagem de DICKENS,
que o ameaça veladamente. A mão firme de Isabela
é o gancho que o impede de afogar-se no terror. A prostituta
transforma-se, assim, no mundo de mentiras que se instaura, na
tia e na magnífica Rainha que o aprisionará em seu
castelo - um velho Bordel encravado numa rua suspeita de Curitiba.
Instalado num sótão (onde impera uma imensa e absurda
cama com um dossel vermelho), Juliano acorda, intuindo vagamente
que seu mundo ia agora além do permissível, mas
sentindo-se protegido pela primeira vez na vida:
Que me interessavam os limites? Eu estava livre, era o que
supunha. Não sei se Clara concordará. mas para
uma criança é apenas a sensação
imediata que conta. (...) O Parente, as surras, a morte eram
coisas de um mundo já enterrado. Agora sim, aos dezesseis
anos e dois dias, a vida era minha. (...) Isabela cuidaria de
mim. Oliver Twist, João e Maria, Pinóquio, nenhum
deles teve a sorte que eu tive. Era a lady no promontório
a proteger o pirata. (p.31).
Na casa de Isabela, dividido entre o paraíso do sótão,
com seus velhos livros e o inferno da sala onde se engalfinham
as prostitutas e a velha Déia - sob a vigilância
da Rainha, Juliano vai se auto-educar, alimentando-se ao mesmo
tempo de vícios e sordidez (que tanto podem chegar pela
leitura excitante do "Livro proibido", pelas palavras
lascivas de Débora, ou pelo discurso provocador de Odair)
-quanto de poesia, que ele produz e declama no salão do
prostíbulo, ante o inesperado ciúme de Isabela.
Na dolorosa solidão que se conserva intacta, apesar das
tentativas de, por qualquer meio, conquistar ou impor-se ao outro,
Juliano faz para si mesmo o lúcido discurso da avaliação
da aprendizagem:
Aprendi todos os pequenos negócios de cada dia, os
com dinheiro e os sem dinheiro. Apreendi a mulher, que desceu
à terra com seus contornos espessos e timidos. Talvez
não tenha aprendido a amar, quem sabe porque descobri
que só eu tenho importância no mundo inteiro: é
tão custoso saber, é tão violento aceitar!
Aprendi, também, que há um mundo dos meus significados,
que não ocupa espaço, mas está em toda
parte; e que há um mundo estrangeiro, dos significados
alheios que está em parte aiguma mas ocupa todos os espaços.
Tudo é forma mental, e tão lapidado a cada dia,
no seu rumo próprio e único, que é um espanto
que as coisas do mundo tenham alguma semelhança com o
cinema que fazemos dela. (p.64)
Mas esquece de acrescentar que, neste curto espaço de
tempo, perdem densidade as fronteiras entre certo e errado, na
mesma medida em que sua sensibilidade descobre ou vai aprimorando
a mentira, o medo, o autoritarismo, a dissimulação
- e todos os demais dons que a sociedade impõe aos indivíduos
no difícil aprendizado da sobrevivência. Como, no
meio de tanta sordidez - uma parte de Juliano se mantém
intacta como um ninho de porcelana (apropriando-me do belo leitmotiv
do autor) onde se aninha a ternura que ele vai dedicar a Doroti,
só encontra resposta na atitude solidária do autor
em relação a suas criaturas, seres que se fragilizam
na ânsia de amar.
O sistema composicional da obra, embora uma autoconfissão,
não se organiza como o espontâneo jorrar de uma consciência
que se deseja conhecer, mas como um processo mnemônico,
provocado por uma orientação de fora para dentro,
uma vez que o narrador escreve movido pelo já referenciado
pedido de Clara e todo o seu estilo será determinado por
esta motivação. Assim também a seqüência
da obra - dividida externamente em quatro partes: "Dezesseis
anos"; "Dezessete anos"; "Dezoito anos"
e "Fim" - segue internamente uma espécie de ordenação
e delimitação temática vinculadas à
cronologia das seções de análise entre a
psicóloga e seu paciente:
Clara não parece satisfeita, o que me põe
em guarda. Ela quer que eu escreva momentos específicos,
não generalidades. Seria mais útil, ela esclarece,
profissional. Instantes que marcaram. Poderei me lembrar deles?
E claro que sim - e sigo o ótimo conselho de minha psicóloga
que a cada 30 dias me visita. (p.66).
Assim, de cada encontro, Juliano sai com uma nova orientação,
um novo pedido que direciona o mergulho no interior de si mesmo,
dragando lembranças que se transformarão em discurso
iluminador.
No entanto, este procedimento narrativo sofre pelo menos uma interrupção
bastante original na sua seqüência. A primeira parte
do livro - "Dezesseis anos" - divide-se em dez pequenos
capítulos, dos quais o nono apresenta uma total alteração
do ritmo e da visão da narrativa. Até então
o discurso, como salientamos, se organizava em primeira pessoa,
respeitados todos os limites que esta opção implica.
Aqui, porém, quem narra não é mais um narrador
em primeira pessoa, mas uma terceira pessoa, mudando inclusive
o objeto da narração. Neste momento, o suposto-autor
desfoca a ótica de si mesmo e a direciona para a intimidade
de Rude e Isabela, não recuando diante de portas fechadas,
e adquirindo o status da onisciência que não se concretiza
totalmente apenas porque em relação aos sentimentos
que Isabela nutre por Juliano, o mistério não se
desfaz, nada se antecipando em relação aos acontecimentos.
A imaginação de Juliano, neste sentido, não
ultrapassa o limiar da consciência da mulher: "Isabela
acendeu outro cigarro, pensando em Juliano." (p.54) - não
ousando adivinhar-lhe a qualidade dos sentimentos (aliás,
se tal ocorresse, a narrativa perderia um dos seus trunfos). Consciente
das implicações deste capítulo no tocante
à verossimilhança interna da narrativa, Cristovão
TEZZA sabe tirar dele o máximo de efeito artístico.
Assim, os enunciados que finalizam o capítulo:
Clara perguntará: Como você sabe que Isabela
pensava em você? Como você sabe o que ela pensava?
Como você sabe o que Rude pensava? Eu responderia: Ora,
porque sou um mentiroso. Não. Melhor deixar essas páginas
comigo. (p.54)
fazem um sutil e implícito cruzamento semântico
entre os vocábulos "mentir" e "imaginar".
Juliano, no plano da vida reconquistada pela memória, se
reconhece enquanto um manipulador de mentiras - um dos motivos
de suas culpas e autocríticas; visto como suposto-autor
(neste momento colado ao verdadeiro autor do texto), o seu discurso
adquire um tom metalingüístico - abrindo-se num evidente
diálogo com posturas teóricas sobre a criação
artística. Neste sentido, 'mentir" é o mesmo
que "imaginar" (ou, ainda, o mesmo que o "fingir"
pessoano), qualidade inerente à criação e
desenvolvimento de todo texto literário.
No discurso de Juliano Pavolliru, como já salientamos,
a referência a Clara é bastante freqüente. No
entanto, o papel da psicóloga no discurso não se
limita ao de um simples referente, transformando-se em vez disso
numa espécie de virtual voz avaliativa, cuja constante
manifestação propicia o sofisticado dialogismo da
narrativa. Assim, no seu todo, o discurso de Juliano neutraliza
a aparente orientação monológica, voltando-se
a sua consciência para a consciência do outro, num
diálogo implícito mas sempre presente. Este processo,
trabalhado com maestria pelo escritor, dá à narrativa
uma notável particularidade artística, propiciando-lhe
um ritmo interior extremamente denso, comprovando que a relação
do indivíduo consigo mesmo não se separa da sua
relação com o outro. Os exemplos neste sentido são
inúmeros, mas basta-nos citar uns poucos para comprovar
nossa afirmação com relação à
constante polêmica sobre si mesmo que Juliano desenvolve
com a hipotética voz de Clara:
"Clara talvez seja aí a raiz das minhas culpas e
dos meus crimes, mas não estou inclinado a aceitar esta
mecânica simples" (p.l6), escreve o herói ao
comentar a sua fuga. Já no momento embaraçoso em
que relata a sua iniciação sexual - nos braços
de uma Isabela ambígua e misteriosa que se entrega na escuridão
do sótão, ele acrescenta:
A bem da verdade, Clara, não é bem assim:
há atrapalhos súbitos, desajeitos táteis,
o tempo não coincide com o espaço, a alma fica
em outra parte e de repente volta - mas também o sexo
é mental, se você me entende. Quem recupera alguma
coisa em si mesma, assim, intocada? (p. 107).
E é este dialogismo que leva Juliano a aprofundar-se nos
acontecimentos, buscando-lhes as causas e as explicações,
que vão ao mesmo tempo debuxando e dando contornos cada
vez mais nítidos ao Juliano da memória, que se constrói
em meio às contradições que o cercam, como
a imagem refletida de todas as duplicidades: assim, o amante da
dona do bordel é também o namorado de uma Doroti
idealizada, com quem ele sonha uma romântica vida em comum,
enquanto assalta casas, escreve poemas, lê Sherlock Holmes
e ama "Isabela duas vezes por semana, sem palavra e sem aviso,
obediente, feliz, temeroso. (p.113).
No tecido narrativo da obra em análise, a voz hipotética
de Clara pode, muitas vezes, ser considerada como a voz duplicada
do próprio narrador, uma vez que ela se desenvolve completamente
dentro dos limites de sua autoconsciência. É este
o caso dos exemplos há pouco citados. Em outros momentos,
porém, a voz de Clara é uma presença objetificada,
parte integrante de um diálogo concreto, referenciado pelo
discurso, que lhe enfatiza a capacidade de avaliar e propiciar
ao narrador novas descobertas sobre si mesmo.
Fiquei aflito quando ela me disse que terminou o estágio,
mas ela mesma se apressou em acrescentar que quer continuar
trabalhando comigo. Pergunta se eu concordo, e eu concordo imediatamente.
São ótimas as visitas. Ela me traz romances e
contos. Eu pedi livros de psicologia, queria saber de Freud,
Jung. Reich, que conheço de orelha, mas ela pondera que
ainda não seria conveniente.
- Nem aquele da interpretação dos sonhos, de que
você me falou? Tenho sonhado muito.
- Continuo achando que não é bom
Ela é muito cônscia da sua responsabilidade profissional.
- Freud dizia que o paciente é a pessoa menos adequada
para ver a si mesma.
- Sei. (p.l39).
À medida que transcorrem os meses na prisão, a
narrativa também avança, aprofunda-se, e amiudam-se
as visitas da psicóloga que pede referências mais
concretas, ansiosa pela revelação, sentimento que
atinge também o leitor. Mas a confissão se faz lenta
e gradualmente, num processo que gera um duplo efeito, criando
a necessária dose de suspense e a amadurecida compreensão
dos próprios atos. A distância temporal entre o presente
e a época factual não é muito grande. No
entanto, entre o adolescente que vende a alma em troca de proteção
e o jovem que se transforma num assassino, há uma distância
cheia de dúvidas e inquietações que o narrador
tenta desvendar no momento da escrita:
Hoje, na paz da cadeia, tenho uma noção claríssiaia,
e dolorosa, do grau de iniqüidade que vivi naquela tarde,
iniqüidade e mesquinhez que eram de certo modo a marca
de minha vida. Um indivíduo, digamos, torpe para dizer
o som exato. (...)
Clara diz que eu não sou assim, ou, pelo menos, não
sou mais assim, o que é menos uma afirmação
e mais uma esperança. (p.167- 8).
A consciência da falta de unidade do sujeito, das diferenças
que o tempo acarreta no indivíduo é, inclusive,
um aspecto semântico altamente reincidente na obra, atingindo
seu ápice no momento em que Juliano reconhece o relativismo
de todas as coisas, o texto e a vida se espelhando metaforicamente
na impossibilidade de uma versão definitiva:
Avanço dia a dia no labirinto da minha história,
sempre dupla: o texto que ela lê não é este
que eu escrevo. O texto que eu escrevo não é o
que eu vivi, e aquele que eu vivi não é o que
eu pensava, mas não importa -continuo correndo atrás
de mim e esbarrando numa multidão de seres. E neles,
só neles, que tenho algum esboço de medida.
(p.113).
Também com relação a Isabela o texto vai
desencavando imagens sucessivas, tentando apreendê-la para
além do mistério que a faz ser mãe, amante,
protetora e inimiga, seres em desencontro com a expectativa do
Juliano do passado:
O que Isabela queria de mim? O que ela sentia por mim? Por
que a proteção? Eu nunca soube exatamente: o que
houve depois (Clara saberá) é uma outra história
que ainda não existia naquele impulso amoroso. (p.57).
A outra história ganha forma no desejo de libertar-se
da proteção e do amor de Isabela, da sordidez de
Odair, das revelações tenebrosas de Lord Rude e
recomeçar vida nova longe do bordel, ao lado de Doroti,
na colina verde dos seus sonhos. Mas quanto maior o desejo de
libertar-se, mais fortes tornam-se os vínculos que o aprisionam
ao meio em que vive. De repente a idéia do assassinato
de Odair brota como uma solução. O acaso o livra
deste crime, mas não o livra da culpa nem do confronto
com Isabela, traída pelo desprezado Rude.
O momento é inoportuno, mas Juliano não recua:
Ela estava pintada a rigor. Na meia-luz, brilhava a magnífica
decadência da minha Rainha. Beijei-a, sem convicçao.
Em pouco tempo haveria outro séquito de súditos
ajoelhados a sua volta. Ela não sentiria a minha falta.
Isabela não precisava de ninguém. (p.l69).
Esses pensamentos não encontram eco na voz e na atitude
de Isabela. "Silêncio. Eu sorri minha gosma, cheio
de teias na alma, um homem abjeto, pior que todos os piores vagabundos
que alguma vez passaram pela vida de Isabela." (p.171) -
é a terrível compreensão do Juliano que narra
com a lente da crítica e da distância. Naquele dia,
porém, o dos seus dezoito anos, a voz era de um outro Juliano:
Quem aquela puta pensava que era? Eu queria vê-la
morta, ve-la suprimida, da vida e da memória. Eu desejei
que os policiais tivessem matado Isabela com um tiro na testa.
Por que só eu tinha a obrigação de compreendê-la?
Por que ela não podia me compreender?
Porque era sua mãe, cochichou Clara tão baixinho
que não sei mais se é a voz dela ou se é
a minha própria. Em qualquer caso, recostei um resto
de empáfia na minha cadeira e empinei o queixo. Agora
eu queria feri-la - mas ainda era um pedido de paz. (p.171).
À medida em que ele narra, tudo se clarifica - "Ali
estava eu bufando, o grande Juliano Pavollini, o assassino de
mim mesmo, com um gargalo à mão para espetar a barriga
dos meus fantasmas." (p.172).
Isabela, a mãe/amante, assassina do próprio filho
recém-nascido, tem na morte a única possibilidade
de libertar-se.
Feita enfim a confissão, desfazem-se todas as distâncias.
Para o novo Juliano há o fim do texto, mas o começo
da vida - um renascer. Não há mais o jogo passado/presente,
nem a duplicidade do texto escrito em oposição às
seções entre a psicóloga e seu paciente.
Tudo é dito num presente que redime e liberta a alma. Clara
não é mais apenas uma voz objetificada nem tampouco
a duplicação da autoconsciência de Juliano
Pavollini. Ela está ali, presente, como uma nova esperança.
Estas modificações se refletem nas marcas estilísticas
do texto criado por Cristovão TEZZA, um escritor que, com
a magia de sua arte, nos auxilia a desvendar a complexa alma humana.
RESUMO
Juliano Pavollini insere-se na tradição do romance
memorialista, caracterizando-se com uma autoconfissão.
Este trabalho, baseado nos pressupostos teóricos de Mikhail
Bakhtin, busca mostrar como o processo composicional da obra vem
determinado pela intensa participação do discurso
do outro (a psicóloga Clara) - neutralizando-se a sua aparente
orientação monológica. Neste sentido, o discurso
e a consciência do suposto-autor voltam-se para a consciência
do outro, num diálogo implícito mas sempre presente.
Este processo, trabalhado com maestria pelo escritor Cristovão
Tezza, dá à narrativa uma notável particularidade
artística, comprovando que a relação do indivíduo
consigo mesmo não se separa de sua relação
com o outro, que lhe determina, inclusive, a evolução
temática da autoconfissão e do autoconhecimento.
Letras. Curitiba, n.39. p. 9-19
- 1990 - Editora da UFPR 19
voltar
|