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Correio Braziliense
Brasília, 15 de setembro de 2001
A vida é filme
Reedição de Juliano Pavollini,
de Cristovão Tezza, traz de volta livro dos anos 80 que
funciona como romance de formação repleto de influências
do universo pop
Stefania Chiarelli
Especial para o Correio
Na cela de uma cadeia, um homem relata sua história à
psicóloga que o visita uma vez por mês. A infância
na cidade do interior até o desfecho do crime que o levou
àquela situação é o espaço
de tempo relatado pelo personagem de Juliano Pavollini,
de Cristovão Tezza. Não se trata de final feliz.
Portanto, essa informação o leitor já tem,
desde o início, sem que isso prejudique de forma alguma
o interesse despertado pela trama. Pelo contrário, ele
será seduzido justamente pelo modo como o protagonista/narrador
do romance vai lidar com toda a sua experiência, vista de
uma perspectiva de quem conhece diretamente a história,
mas que já está distanciado daquilo que viveu.
Juliano Pavollini foge de casa aos 16 anos, após a morte
do pai, em cidadezinha do interior do Paraná, nos anos
60. Vai parar em Curitiba, protegido pela prostituta Isabela,
dona de um bordel que vai abrigá-lo por dois anos. Acaba
se apaixonando por Doroti - colegial cujo nome provém de
uma homenagem ao filme O Mágico de Oz -, por quem nutre
ideais de amor romântico. Vivendo entre prostitutas e fazendo
sua iniciação sexual com a proprietária do
prostíbulo, Juliano fica dividido entre as transgressões
da marginalidade e os valores da vida burguesa. Entre a prostituta
Isabela e a angelical Doroti. Entre os pequenos furtos que realiza
e o trabalho de datilógrafo em um escritório de
advocacia.
''Acho que as coisas aconteceram mais ou menos assim'', afirma
Juliano. É desse narrador não muito confiável
que resultam instigantes elementos a se pensar. Um deles é
a presença de uma visão que traz a incompletude
como a tônica dominante, ou seja, o reconhecimento da insuficiência
do conhecimento, que é construído de forma precária,
sem a pretensão de estabelecer verdades absolutas. Juliano
é personagem que se debate em conflitos permanentemente.
Indaga: ''Quem, olhando para trás, diria: eu sou aquele
ali?''.
O outro ponto é o da transitoriedade desse saber. Até
porque se trata de um narrador que passa por intenso processo
de mudança, que sai da adolescência e entra na idade
adulta. O que o configuraria, de certa forma, em protagonista
de um Bildungsroman, ou romance de formação. As
idéias de homem em processo de iniciação
e de metamorfose estão onipresentes na narrativa. E corroboram
a idéia de um narrador repleto de dúvidas. ''(...)
mas isso só sei agora, quando não tem mais importância'',
afirma Juliano. Essa travessia, entretanto, não resulta
em um homem melhor ou mais completo, mas apenas em um indivíduo
marcado pela constante reflexão.
Leitor voraz de aventuras, Juliano se imbui da tarefa de narrar
suas memórias para a psicóloga Clara, e a tentativa
de organizar esse relato é o que estrutura a narrativa.
De Bat Masterson a Billy the Kid, de Mazzaropi a Irmãos
Metralha, suas referências estão impregnadas de citações
a filmes e personagens que fazem parte do repertório de
um jovem dos anos 60. Nesse processo de interferência da
literatura e do cinema em sua vida, Juliano vai tentando encaixar
a todos que o cercam em tipos das histórias que já
leu. Em meio ao sótão sórdido que ocupa no
prostíbulo, vilões, princesas e rainhas são
invocados para ilustrar uma vida que quer ser vivida como filme.
Publicada pela primeira vez em 1989, e agora reeditada pela Rocco,
essa obra do escritor e professor da Universidade Federal do Paraná
tem a marca nítida do estilo que vem apresentando ao longo
de suas outras publicações. Trapo, de 1988, Uma
Noite em Curitiba, de 1995, ou Breve Espaço entre Cor e
Sombra, de 1998, são apenas algumas delas. E a cidade de
Curitiba mais uma vez convida a uma visita pelas páginas
de Tezza.
Stefania Chiarelli faz doutorado
em Estudos da Literatura na Pontifícia Universidade Católica,
do Rio de Janeiro. Publicou O Cavaleiro
Inexistente de Italo Calvino - Uma Alegoria Contemporânea
(EDUCS, 1999).
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