O ESTADO DE S. PAULO
São Paulo, 20 de outubro de 1990


FICÇÃO LÍRICA E MEMORIALISTA

Lênia Márcia Mongelli

A julgar por Aventuras Provisórias (2º lugar no Concurso Petrobrás de Literatura 1987 - categoria novela), por Trapo (1988) e por Juliano Pavollini (1989), o destino literário de Cristovão Tezza parece solidamente definido, numa trajetória que vem sendo reconhecida e premiada desde o Ensaio da Paixão (um dos laureados no Concurso Nacional de Romance, prêmio Cruz e Souza de 1982), que se segiu a Gran Circo das Américas (1979) e O Terrorista Lírico (1981). Nascido em Lages/SC em 1952 e residindo há muitos anos em Curitiba, onde é professor da Universidade Federal do Paraná, só indiretamente a ficção atraente e madura de Tezza tem o gosto da cor local: embora seus heróis sejam curitibanos e transitem por espaços familiares ao autor, nomeados com a minúcia de quem catalogou cada canto da cidade, os dramas que vivem não têm fronteiras, alçados à categoria de uma urbanidade dolorosa e abstrata, sina de cidadãos anônimos pinçados como que ao acaso por um observador arguto.

Exímio criador de diálogos rápidos, concisos, cheios de expectativa, que vão pouco a pouco revelando as personagens e montando a trama, a prosa de Cristovão Tezza flui com tensa precisão, num jogo de metáforas que caminha da rasteira objetividade à rarefação de efeitos, do nítido ao nebuloso, da imediatez à vaguidade, sempre consoante os estados d'alma das personagens, narradores de primeira pessoa cujas "palavras constroem o mundo" - afirmação que é quase profissão de fé, tantas vezes posta por Tezza na boca de Juliano, João (Aventuras Provisórias) ou Manoel (Trapo). Visão de mundo escancaradamente poética, onde se alia a finura do senso de realidade e da captação do pormenor à subjetividade da recriação, o pendor de Tezza é para a escrita de feição memorialística, com enredos que se constroem de fragmentos, de lembranças que ficaram dos destroços de sonhos desfeitos, como se a única vida fosse a que pudesse ser posta no papel e ali adquirisse consistência. A terna e comovida adesão do autor a seus protagonistas-escritores-poetas falidos evidencia-se pela crítica contundente ao Sistema que lhes ceifou as oportunidades e frustrou a inspiração, por razões que podem insistintamente ser atribuídas à incompreensão da família, à indiferença da sociedade, à incompetência dos críticos ou à mesquinharia do mercado editorial. Prensados entre a necessidade de exprimir-se e a falta de condições para realizá-lo, os narradores agarram com unhas e dentes a "chance" oferecida por Tezza, num discurso pleno de ansiedade, de desespero, de paixão, fidelíssima ilustração do "extravasei-me para me sentir" de Fernando Pessoa. Se escrever é libertação, Trapo ou Juliano encaram a tarefa com a devoção dos suicidas.

Apesar desse compromisso indisfarçável com o "caso individual" de suas personagens, os romances de Cristovão Tezza não enveredam pelo sentimentalismo vulgar nem se perdem em confissões circunstanciais. Procurando dar aos fatos o sentido profundo que têm e que muitas vezes passa despercebido ao olhar comum, as cenas vão se somando como num paciente quebra-cabeças, onde cada detalhe é indispensável ao efeito final e a solução resulta da somatória de dados. Trama de tendência policialesca, há sempre uma surpresa reservada para o desfecho, suspense que via de regra se resolve em sentido contrário ao esperado e/ou desejado pelo leitor, em franco apelo às funções catárticas da literatura. Mesmo quando o drama é suavizado por sarcástica ironia, como em tantas páginas de Aventuras Provisórias, o fato de o ridicularizado ser o mesmo que ridiculariza, apanágio da primeira pessoa, instaura o patético que nos torna mais próximos da miserável condição humana.

Como se percebe, o leitmotiv da ficção de Cristovão Tezza é a solidão moral de seus protagonistas, seres cindidos entre a enormidade dos sonhos, maiores que toda uma vida, e a estreiteza do dia-a-dia, sucessão de trivialidades. O descompasso entre querer e poder, entre planejar e realizar ou entre pensar e dizer traduz-se em hediondas transgressões às normas éticas e sociais, a repelir os que se queriam próximos, a provocar o ódio quando se anseia por amor, a trazer a guerra em lugar da paz. Canhestras, inábeis para agir porque rebentos de uma estrutura sócio-familiar que lhes podou pela raiz todos os impulsos de auto-afirmação, essas personagens ensimesmaram-se doentia e irremediavelmente, numa difícil se não impossível relação com o outro, em que pese a incontrolável necessidade de procurá-lo para evitar o mergulho sem volta na noite do ser. É como se todos estivessem no limiar da loucura e os crimes que cometem fossem apenas um sinal da fragilidade dos elos que os mantêm ligados ao mundo "normal". Daí os paradoxos - uma das forças da criação de Cristovão Tezza - tornando relativos todos os valores e inconsistentes quaisquer limites, mundividência com que já estamos familiarizados, cidadãos do século XX posteriores a Nietzche, a Freud, a Sartre, etc.

A galeria de tipos que contracenam com esses heróis falhados, megalômanos da palavra, são freqüentemente, como era de esperar, projeções fantasmáticas de forças inconscientes oprimidas, como se sua existência "concreta" estivesse condicionada a estados de espírito perturbados: quem não verá em Pablo, o Puro, marginalizado em comunidades rurais e dado a metafísicas contemplações, o "duplo" dum João pequeno-burguês, pra quem tudo é "provisório" porque não consegue se fixar em nada, preso à mãe que execra mas de quem não se libertou? E a cafetina da tia Isabela, protetora ocasional do adolescente Juliano, recém-fugido de casa, e com a qual ele mantém até o fim um relacionamento dúbio, não se enquadraria com perfeição no que Jung chama de anima, metáfora da difícil harmonização dos contrários de que somos feitos? Se todos esses espectros são personificações de conflitos mal resolvidos, não se estranhe que as histórias terminem em tragédia e morte: a desgraça externa apenas reflete a devastação interior, a falta de saída, pois, segundo o sexagenário e inexperiente Professor Manuel, "estamos sempre inapelavelmente no meio, esforçando-nos, furibundos, por alguma espécie de grandeza".

Todos vivem sob o signo do medo - eis o segredo mais íntimo que Cristovão Tezza vai desencravar de insuspeitos escaninhos mentais de suas personagens. Não o medo, identificável, de punições vindas de fora (da polícia, dos amigos, dos pais); mas aquele medo muito maior de fraquejar perante a vida, de recuar ante os obstáculos e de acovardar-se à iminência do perigo. A conseqüência imediata desse terror denso e vago são muitas vezes grotescos arremedos de bravura, como expressar-se por palavrões, roubar residências, embebedar-se ou cuspir no chão - protestos impotentes de quem não sabe o que fazer. Como se há de entender o impulso que leva o moço Juliano Pavollini a denunciar-se à amada Doroti como participante do assalto à casa dos pais dela, mesmo antevendo nessa confissão heróica o ruir de castelos? Em que compartimento da alma arrasada se aninham restos de incólume honestidade, de uma pureza que resuma a heranças primordiais? A ficção de Tezza, desnudando esses resíduos, ladeia a psicanálise.

Por isso suas personagens, odiosas aos olhos do mundo, impermeáveis às fronteiras entre certo e errado, têm uma magnitude que as transcende, a suscitar solidariedade e respeito, sem sombra de pieguismo. O próprio autor denuncia sua ternura em belíssimas páginas perpassadas de lirismo, como a narração de Trapo sobre a morte de certo galo de estimação, primeiro e definitivo erro cometido por um pai insensível às fantasias do garoto de cinco anos. Ou como a descrição do primeiro encontro entre Doroti e Juliano, quando o mundo todo emudece para ceder voz a um diálogo que seria insosso se não fosse o puro arrulho de namorados, tanto mais falantes quanto mais inseguros do que dizer. São exemplos, segundo Tezza, de que nem todo está perdido sob a aparente sordidez humana.
Em suma, o jogo infindável de máscaras, é como se poderia definir o universo movediço de Cristovão Tezza. Num estilo extraordinariamente eloqüente e atento a derramamentos, ergue-se com seriedade e convicção de que à literatura compete o resgate de quem somos, para além do bem e do mal.

Lênia Márcia Mongelli é professora de Literatura Portuguesa na USP
e autora de Poesia Arcádica.




voltar