JORNAL DO BRASIL - Idéias / Livros
Rio de Janeiro, 3 de março de 1990


RITO DE PASSAGEM

Personagem sai da adolescência, entra na vida adulta e muda o tom da narrativa

Ney Reis

Da Bíblia aos filmes de bang-bang, passando pelas novelas de televisão e pela cabeça de todo adolescente rebelde, há sempre alguém disposto a dar no pé da casa paterna para tentar vida nova noutras terras - a Prometida, inclusive... Graças a Deus (ou a quem de direito), porém, a boa literatura não é a arte de se contar uma grande história, mas a melhor maneira de se contar qualquer história. Neste seu sexto livro, e terceiro lançado por uma grande editora, o catarinense radicado em Curitiba, Cristovão Tezza, 38 anos, consegue provar isto ao fazer de alguns clichês ficcionais e de uma mistura de estilos e gêneros um bom livro.

Se for verdade tudo que diz o personagem-título do livro - um notável mentiroso - a história de Juliano Pavollini começa no dia de seu décimo-sexto aniversário, quando a morte do pai lhe rouba a festa e ao mesmo tempo liberta-o do incômodo exemplo de "íntegra mediocridade" a que estava condenado em seu pequeno vilarejo. Ao invés de ficar triste, Juliano vê no acontecimento sua grande chance: rouba a carteira de um tio durante o velório e, com o dinheiro de seu primeiro delito, foge de ônibus para Curitiba. A seu lado, na poltrona vizinha, está a bonita Isabela, uma mulhe madura que deslumbra o menino fugitivo, se aproxima dele e resolve "adotá-lo" na nova vida. Juliano é hospedado na estranha casa de sua nova Rainha, onde há muitas mulheres bonitas, vestindo saias curtas e decotes ousados convivendo numa espécie de aparente "matriarcado". Trata-se, na verdade, de um bordel, o que só mais tarde ele descobre. Há também um homem gordo e forte - "Lorde" Rude - que dá proteção às moças em troca dos favores sexuais da Rainha-cafetina. O cenário está montado: o "castelo", a "rainha", as "criadas", o "vilão" e o "herói" (ele, Juliao). Não é à toa que clássicos infanto-juvenis como Pinóquio e Oliver Twist são citados mais de uma vez no livro. Mas o clima é "proustiano", com a narrativa - na primeira pessoa - num tom memorialístico, vasculhando os conflitos íntimos, as recordações e as descobertas do personagem-título. Algo como No caminho de Swann sem o singular aprofundamento psicológico de Proust.

A esta altura o livro, dividido em quatro partes, já se deixa entrever o desfecho trágico da história, graças à introdução da personagem Clara, a quem Pavollini se referecomo uma espécie de biógrafa-terapeuta de penitenciária. Há três planos narrativos: o passado rememorado, o presente de Clara e o tempo interior do narrador (o monólogo íntimo de Juliano). Tudo corre numa suavidade "proustiana", como já foi dito, até a aparição, na página 72, do personagem Odair, um pequeno marginal que parece ser a misturade Macunaíma e Pixote... Ladrão por esporte, desajustado por temperamento e gozador por absoluta falta de caráter, Odair inicia Juliano na delinqüência e muda completamente o tom e o ritmo do romance. Parece que os personagens, e não o autor, possuem o controle do enredo. Passa-se do cacoete "proustiano" a um realismo "bukowskiano", ou a la Rubem Fonseca (o de Feliz ano novo), como preferirem. O livro começa a ser freqüentado por palavrões e Juliano se multiplica: malandro, tímido, pervertido, inseguro, intelectual e virgem, tudo cabe em sua imagem. Durante um assalto com Odair, ele invade uma casa vazia e se apaixona pelo retrato da filha do proprietário (Doroti, a pureza em pessoa). Daí em diante, o herói-sem-caráter vive atormentado entre a possibilidade de dois mundos antagônicos e atraentes - a vida radicalmente prazerosa do bordel, com sexo, delitos, cerveja, boemia, ou o sonho da união com Doroti (a quem ele conhece pessoalmente alguns capítulos adiante), cheia de filhos, churrascadas e com um emprego honesto.

Festejado pela revista Veja de 24 de agosto de 1988 como "um raro caso de autor que se configura como promessa concreta de literatura", o professor universitário de Língua Portuguesa, ex-hippie e ex-marinheiro mercante Cristovão Tezza é mesmo uma boa surpresa. Seus livros anteriores - A cidade inventada (1979), Gran Circo das Américas (1980), O terrorista lírico (1981), Ensaio da Paixão (1986) e Trapo (1988) - receberam muitos elogios, revelando o autor como um bom contador de histórias e um frasista de estilo. Neste Juliano Pavollini, há verdadeiros achados "de efeito", tais como: "O poder da mulher é superior ao poder de Deus. E as mulheres existem... Neste livro, que ora parece um romance policial, ora um romance psicológico e ora um livro de memórias, há uma perfeita combinação de ingredientes manjadíssimos (conflitos familiares e íntimos, descoberta sexual, delinqüência, ambição, crítica de costumes) que já foram assunto de Freud a Janete Clair. Mas a graça está na maestria com que o texto é construído. O desfecho trágico é preparado em doses "homeopáticas" e, quando acontece, causa muito mais alívio que dor. "Avanço dia a dia no labirinto da minha história, sempre dupla: o texto que eu escrevo não é o que eu vivi, e aquele que eu vivi não é o que eu pensava, mas não importa - continuo correndo atrás de mim e esbarrando numa multidão de seres. É neles, só neles, que tenho algum esboço de medida", resume o personagem-título a certa altura do livro. Melhor "sinopse" é impossível.


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