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Jornal do Brasil - Caderno Idéias
Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2007.
Só a pureza suporta a dor
Cristovão Tezza, cuja obra completa será publicada pela Record, publica novo romance
Ney Reis
Poeta e jornalista
Narrativa na terceira pessoa - como se fosse possível algum distanciamento no relato autobiográfico. O personagem volta a 1980, na Curitiba onipresente, quando ainda é um homem despreparado para ser um homem e um escritor praticamente sem obra a exibir. A adolescência se prolonga até os 28 anos - confessa - conservando um idealismo mais parecido com um ingênuo complexo de superioridade. Mas, ao mesmo tempo, com a força considerável de quem sonha e acredita em utopias. Escritor iniciante e desconhecido, desempregado, tudo ainda por fazer e conquistar, ele vive um casamento acanhado com uma mulher que o sustenta.
Pois bem: quem poderia estar mais preparado para ter um filho com síndrome de Down - um mongolóide, como se dizia na época? O executivo sisudo e grisalho? O profissional liberal pragmático? O acumulador compulsivo e workaholic? O investidor da Bolsa? Todos esse homens concretos, monolíticos, sem tempo a perder? Claro que não. Ele era o pai ideal para Felipe: o poeta e escritor sonhador, inseguro, mas corajoso em sua ignorância da vida real. Não dizem que Deus (se existisse, diria o autor) dá a cruz de acordo com quem a vai carregar? Pois é: só a pureza suporta certos tipos de dor. E os dois nascem juntos - ele pela segunda vez.
Esta é a linha-mestra do mais recente livro de Cristóvão Tezza, O filho eterno, que marca a volta do autor, de 55 anos, à Record - que, juntamente com esse relato comovente e lúcido, relança outras obras conhecidas do catarinense (de Lages) radicado em Curitiba: Trapo (1988); Aventuras provisórias ( 1989) e O fantasma da infância(1994).
O filho eterno cai como uma bomba no colo do pai, que já fazia planos e imaginava cenas em que ele e seu garoto se completariam à perfeição na camaradagem inigualável do pai carinhoso, didático e seguro com o filho protegido e curioso. Fantasiar era o forte do pai escritor e poeta, que vivia de bicos como revisor, tradutor, autor free-lancer, e era ajudado pela mulher. Felipe, entretanto, vem ao mundo para mostrar como nenhuma imaginação é tão poderosa quanto a vida. E como as pessoas podem se surpreender com elas mesmas, descobrindo uma força e uma paciência inquebrantável diante das provações.
Tezza nos presenteia com um relato fiel das dificuldades que se multiplicam ao longo de seu convívio com o filho e as também inúmeras pequenas vitórias nesse caminho. Ele mesmo, agora como personagem, vai demolindo, ao longo do texto, seus castelos de areia existenciais, seus moinhos de vento filosóficos e intelectuais, sua arrogância disfarçada em timidez e polidez de homem culto, refinado, diferente da maioria.
Os 26 anos de experiência com o filho são também de transformações para ele: a vida em comunidade na adolescência, o grupo de teatro hippie; a experiência como ilegal na Alemanha, lavando pratos, arrumando quartos de hospitais, entre outras atividades braçais, para juntar dinheiro; e as desventuras de escritor com 30 e poucos anos e alguns livros na gaveta, até chegar, anos mais tarde, a uma estabilidade confortadora, mas também limitada como professor de uma universidade pública - o contra-cheque infalível no fim do mês e outras benesses da carteira assinada, enquanto o reconhecimento e o prestígio de escritor bem-sucedido não chegam.
Aliás, Cristovão Tezza já os têm em boa medida. Está longe de ser uma daquelas promessas literárias que despontaram para o anonimato. Ao contrário, foi construindo sua carreira com a meticulosa competência do professor que é (na UFPR), tendo recebido prêmios importantes por alguns de seus livros, cujo tema central é a solidão moral e o choque do homem que imagina controlar sua vida e seus impulsos com a realidade surpreendente, anárquica e arrebatadora. Em termos atuais: a vida é um Airbus com o reverso travado, numa pista escorregadia, mas com uma generosa área de escape...
Em Trapo, que foi publicado originalmente em 1988 e projetou o autor nacionalmente, o leitor se depara com uma construção depois recorrente na obra de Tezza: narrativas paralelas que se chocam no final ou dois tempos que se entrelaçam. O jovem Paulo, poeta marginal que se rebatiza de Trapo, vive uma vida romântica como um boêmio intelectual existencialista. Usa drogas, bebe, dorme tarde, acorda tarde e se envolve com uma ninfeta tão anárquica quanto ele, chamada Rosana. Ele é filho de boa família, mas odeia o pai, que o ignora (aparentemente). Ela é filha de um severo promotor de Justiça e vive num "castelo com fosso e jacarés".
Seu relacionamento se aprofunda e as conseqüências são trágicas, tanto quanto previsíveis. Então, surge Izolda - a dona da pensão onde ele morava - que vai procurar um professor aposentado levando a obra completa do poeta (cartas, bilhetes, poemas, contos, a mesma anarquia de sua própria vida). Aos poucos, o professor vai se envolvendo com a obra e o destino de Trapo. E também com Izolda, a mensageira do caos, que soterrou sua vidinha insossa e a transformou em algo bem mais excitante.
Já as Aventuras provisórias trazem o reencontro do medíocre, mas bem-sucedido, João com um amigo de infância recém-saído dos porões da ditadura militar: o ingênuo (ou seria inepto) Pablo, cujo único projeto na vida era preparar uma existência alternativa numa comunidade riponga, construindo a modesta cabana para onde levará sua amada Carmem. O sonhador Pablo desconcerta João, desiludido afetivamente, com sua pureza. Ele o ajuda financeiramente e suas vidas começam a se misturar e se "contaminar". Ao final, mais uma pequena tragédia particular revelando grandes questões - esse o motor de Tezza - como a responsabilidade afetiva de quem parece se entregar ao outro sem no fundo se dar; ou os perigos de se enveredar por caminhos para os quais não estamos preparados; ou ainda a capacidade de renascer mais forte após uma espécie de quase-morte.
Há também ligeiras incursões de Tezza no universo fantástico, surreal. É o caso de O fantasma da infância, que se passa simultaneamente em Curitiba e Florianópolis e no qual duas histórias aparentemente paralelas e díspares se cruzam. Ou seriam a mesma história contada de duas realidades distintas - uma real e outra sonhada? Em ambas, o protagonista é o jornalista André Devine, apagado, decadente. Em dado momento, ele é seqüestrado por um milionário para escrever sua biografia e se envolve com a assistente deste - Vera, uma boa alegoria para verdadeira, seu significado em italiano. O curioso é que, na outra história, um mesmo André Devine é visto em fase próspera, mas tem a vida chacoalhada pela chegada de um amigo de infância, o ex-presidiário Odair.
A recorrência, nas obras de Cristóvão Tezza, do processo de desconstrução de vidas aparentemente tão sólidas quanto enfadonhas dá a pista de um teor autobiográfico que só agora ele escancara em O filho eterno. Mas, cá entre nós, a parte obscura e louca dos livros de Tezza é algo que os personagens, se tivessem autonomia, resolveriam em algumas sessões no analista... No fundo, são pequenos burgueses que soltam a franga, mas, com algum arroubo de lucidez, podem muito bem voltar para suas vidas de suéter vinho, calça de pregas, relógio com pulseira de couro e sapato marrom - enfim, a vidinha de classe média e sua rotina chocha, a segurança ilusória e o furacão que chega e detona tudo, como no ótimo Uma noite em Curitiba, de 1995. Confessa, Tezza, abre o jogo: no fundo, era isso que você queria!
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