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Revista Linha Mestra - nº 5
http://www.alb.com.br/revistas/revista_05/indice_05.asp
Dezembro de 2007

UM AUTOR, UM NARRADOR E NENHUM HERÓI
Marisa Lajolo 

 
O menino Felipe é a personagem a pretexto da qual Cristóvão Tezza escreve O filho eterno. Personagem ou pessoa de verdade? Sugestão discreta da orelha do livro dá a entender que se trata de uma história real. Teria recorte autobiográfico a acurada e tensa narração dos vinte e cinco anos de vida do pai de um filho – o menino Felipe - que no dia em que nasce é diagnosticado como portador da síndrome de Down.

A curiosidade do público é legítima: afinal, leitores gostam mesmo de saber a veracidade do que lêem, sobretudo quando a história é boa. Mas a reposta à pergunta é secundária para o reconhecimento da qualidade excepcional do livro. O leitor não larga a história de como um pai aprende a conviver com seu filho diferente. Com esse pai, transita da dolorosa consciência do desejo de que o filho morra, para a aceitação da criança e o sempre contido mas finalmente conquistado amor por ela.

A cronologia do livro é sinuosa: o registro do tempo da vida com Felipe é recortado por episódios da juventude do protagonista, suas idas e vindas on the road. O pai de Felipe, nos anos setenta do século passado tinha uma face política e outra boêmia, quase hippie e meio revolucionário, numa clandestinidade subsidiada da qual o narrador – implacável - aponta a ingenuidade e a bisonhice.

Entre vagos estudos em Coimbra e o emprego clandestino na Alemanha, entre o estabelecer-se como relojoeiro e um arrastado curso de Letras que enfim lhe garante um primeiro emprego (de professor), o narrador apresenta ao leitor uma personagem que é o avesso de herói, escritor de estréia sempre adiada, militante sem causa. O desmanche do heroísmo atinge todos os planos da vida do pai do Felipe, mas é sua figura que ocupa linhas e entrelinhas das mais de duzentas páginas do livro. Num universo predominantemente masculino, a mãe e a irmã de Felipe são presença discreta na história, desenhadas com economia de traços. A cena é definitivamente masculina e é numa dicção cortante e irônica de homem-sensível-mas-que-não-dá-o-braço-a-torcer que o narrador conta sua história.

Sua história dele, narrador ?

Não: sua história alheia, história de um ele.

Vem da lucidez cortante com que o livro investiga atos, emoções e sentimentos do pai de Felipe, da forma fria como devassa aos leitores sua condição miseravelmente humana, cheia de medos e vazia de certezas, um dos fatores de envolvimento apaixonado com a leitura do livro. O leitor chegado a citações pode olhar nos olhos de Tezza (a orelha da quarta capa fornece seu retrato para quem não visitou a www.cristovaotezza.com.br...) e devolver-lhe o lance baudelairiano, confessando-se seu hipócrita leitor, seu irmão, seu igual...

Isento de qualquer traço de sentimentalismo ou comiseração, o discurso do narrador sobre o pai deste filho-eterno surpreende. À medida que a leitura transcorre, arrastado pela análise seca de sentimentos íntimos e emoções abortadas, engolfado na narração de episódios prosaicos, o leitor começa a perceber que há algo de muito novo e muito bonito na voz que narra a história.

Essa novidade é o ponto de vista do qual é narrada uma história, com um enredo de voltagem emotiva tão elevada: o pai de Felipe não tem nome e jamais usa a primeira pessoa. Narração sem eu , de diálogos raros, já ao simples olhar para as páginas do livro o leitor se dá conta que o que o espera é uma prosa corrida, dividida em vinte e cinco capítulos que, como manda a boa tradição editorial, começam sempre numa página ímpar. Com isso, na edição que li, algumas páginas em branco à esquerda favorecem o respiro (gráfico) que a narração proscreve: a voz narrativa sem pausas mergulha o leitor no cotidiano miúdo e na metafísica graúda do pai de um menino Felipe com trissomia do cromossomo 21.

Trata-se de uma voz narrativa implacável: contando a história como sendo a história vivida por alguém – um ele e não um eu – o narrador manifesta no entanto uma intimidade em relação aos pensamentos mais inconfessados da personagem, que deixa o leitor desconfiado: será que este narrador não está falando de si mesmo ? A questão pode ocupar a cabeça do leitor por algum tempo, e, se se tratar de leitor paciente, ele talvez volte atrás algumas páginas para conferir: é mesmo uma história em terceira pessoa ?

É.

É uma história em terceira pessoa.

Mas é uma história em terceira pessoa que em certos momentos trata o ele como tu, ou seja, o protagonista pai-do-Felipe desliza para uma segunda pessoa, interlocutora explícita, sendo nesta condição interpelado a queima-roupa pelo narrador. Assim por exemplo: “O problema é justamente o contrário: não há explicação alguma. Você está aqui por uma soma errática de acasos e de escolhas, Deus não é minimamente uma variável a considerar, nada se dirige necessariamente a coisa alguma, você vive soterrado pelo instante presente, e a presença do Tempo – essa voracidade absurda - é irredimível, como queria o poeta. Vire-se. É a sua vez de jogar. Há um silêncio completo à sua volta”.(p. 93)

A estratégia dá certo. Dosado com sabedoria ao longo do livro, o procedimento evita qualquer derramamento sentimental e completa a blindagem do protagonista, a quem é decisivamente negada a posição de sujeito da história narrada. É nesse intervalo das pessoas da narração - melhor dizendo, nesse intervalo das vozes narrativas - que o livro se alça à condição de obra prima, um daqueles livros que deixam o leitor de olho parado, olhando para o nada e ruminando com seus botões que a vida vale a pena.

E, no caso deste Filho eterno, meditando que o menino Felipe, se existe (e entrevistas do autor informam que ele existe),nesta vida que pela segunda vez lhe dá seu pai, oferece aos milhares de leitores de Tezza ( o livro já está na segunda edição) a rara chance de uma aventura literária maravilhosa. Parodiando Drummond, a aventura de ingressar, pelo reino das palavras, em mundos e em vidas em estado de dicionário aos quais cabe a ele – leitor - atribuir sentidos.